Em sua trajetória profissional, na academia, a autora publicou diversos livros: Experimentando a vida: cotidiano, esperanças e sensibilidades (2008), Roteiro poético de Hilda Hilst (2009) e Sonho de um repentista versos do poeta logogrífico Canelinha (2009), todos pela Editora da Universidade Federal de Uberlândia (EDUFU). Pesquisadora dedicada, Enivalda Freitas fundou o grupo de pesquisa - POEIMA: Grupo de Pesquisa Poéticas e Imaginário,- onde produziu outros livros: Reflexos e sombras: arquétipos e mitos na literatura (2011) pela Cânone Editorial. Sua pesquisa de Pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) resultou na publicação da obra Flores de Perséfone: a poesia de Dora Ferreira da Silva e o sagrado (2013), pela Editora Cânone, com o patrocínio da FAPEMIG. Mais tarde, no ano de 2016, organizou Poesia com deuses – Estudos de Hídrias, de Dora Ferreira da Silva, que saiu pela Editora 7Letras, obra igualmente financiada pela FAPEMIG.
Enivalda Nunes Freitas e Souza [foto arquivo pessoal da autora] |
A leitura de Terra Traçados e Livros: nas
vozes da memória nos revela uma autora sensível e atenta aos problemas
sociais, econômicos e políticos da história recente do nosso país. Da trama,
por onde circulam matriarcas e patriarcas, emergem fatos e relatos históricos
aos quais a autora dá o devido acabamento. Então sua voz se mostra sensata e
preocupada com o desenvolvimento sustentável do país e com a melhoria da
qualidade de vida da população, sobretudo das classes sociais desprestigiadas.
A autora comenta: Não resta dúvida de que a escola pública no Brasil sempre foi
negligente para com a população menos favorecida. Acreditamos, também, que a
região em que nossos pais viveram, o sudeste goiano, estava, aos olhos da
capital, a caminho dos fundões do Brasil. Em suas grotas, em suas casas de pau
a pique, em suas fazendas sem nenhum adorno, a pobreza era multiplicada com a
falta de Educação. (SOUZA, 2021, p.52) No trecho em questão, a autora aborda
uma pesquisa realizada sobre o ensino, em Goiás, sua terra natal, durante as
décadas de 1940-1950. Nesse aspecto, ganha relevo a figura materna – Aldacira -
e sua trajetória, como mulher que lutou por melhorias para a família. Ressalta
sua inserção no mercado de trabalho: após aprimorar-se nos estudos, deixou o
trabalho a partir de casa, na máquina de costura, para trabalhar como
professora, no serviço público.
Enivalda Nunes Freitas e Souza [foto arquivo pessoal da autora] |
Emocionante e bonito é o trecho em que se faz menção à
luta da mãe para adquirir livros e materiais escolares para os filhos pequenos:
“Resfolegante, mas não arqueada, finalmente nossa mãe entrou em casa com o
pacote de livros didáticos dos três filhos menores. Como muitas vezes o fizera
em Iporá-GO, adquirira o material a prestações na Papelaria Rodarte” (Souza,
2021, p.45). A trajetória de luta de Aldacira reflete a realidade das mulheres
da classe trabalhadora no Brasil. Como professora, ela trabalhava em dois
períodos e, ainda assim, tinha que ter “jogo de cintura” para garantir que os
filhos pequenos tivessem condições materiais de permanecer estudando. A
desvalorização do trabalho docente, a tripla jornada das mães trabalhadoras, a
injusta distribuição de renda e outras mazelas sociais aparecem,
subrepticiamente, nesse trecho da narrativa. Entretanto, tal constatação não
reduz a importância do protagonismo feminino como fator determinante para as
transformações positivas que levaram a família a um patamar social e econômico
mais elevado. Das importantes reflexões que essa trama narrativa suscita, sem
dúvida, avulta a constatação da grande relevância da Educação, sobretudo da
Educação Pública para o desenvolvimento da nação.
A obra evidencia o poder que a escolarização
formal tem na transformação desse Brasil pobre e interiorano, muitas vezes
esquecido, pelas elites e pelo poder público. Nesse contexto, a escritora
revisita acontecimentos e cenários que envolvem a história da sua família.
Evoca as matriarcas, a avó, a mãe, as tias, reavivando, no decorrer da trama,
curiosidades e modos pitorescos de falar e de se comportar envolvendo pessoas
do seu convívio familiar. A maneira como são apresentadas as mulheres da
família revela a forte influência dessas personalidades sobre o psiquismo da
autora. No capítulo dedicado à tia Almira, lemos: "Que jeito inconfundível
de se expressar. Com que graça e eficiência ela usava o substantivo trambeco,
que significa “coisa”: “Fulano, pegue aquele trambeco pra mim!”. Não é um
neologismo seu, mas jamais ouvimos essa delícia de palavra da boca de outra
pessoa. Com esse substantivo, que se aproxima do “trem” mineiro, tia Almira
economizava tempo, ganhava tempo. As palavras e as pessoas... (SOUZA, 2021,
p.88) O modo goiano de falar e de se expressar, aqui representado pela fala de
tia Almira, aparece carregado de intencionalidades, evidencia uma espécie de
consciência semântica e pragmática no uso corrente da linguagem. A tia usava um
termo que poderia, talvez, ter sido cunhado por ela mesma ou ser de uso
exclusivo dela, com o intuito de subverter a lógica do próprio tempo. O
foco nas questões atinentes à linguagem é constitutivo do modo como atua essa
pesquisadora que, há anos, trabalha com as Letras e com as Literaturas.
Enivalda Nunes Freitas e Souza [foto arquivo pessoal da autora] |
Enivalda Nunes Freitas e Souza é intelectual que
adentra os mistérios da poesia, do mito, do simbolismo e das formas fugidias
para lançar luz sobre o que é profundo e belo, motivando estudantes,
professores, pesquisadores e amantes da literatura a se enveredarem pelo
caminho da leitura, da escrita e da sensibilidade poética. O resgate da
memória, a partir da pesquisa comprometida e da valorização das fontes vivas
carrega, para a superfície de seu texto, significativos debates em favor da
construção de uma nação menos desigual. Nesse aspecto, a promoção da saúde
pública como mecanismo para a melhoria da qualidade de vida da população ganha
relevo.
Os enredos revelados no decorrer da narrativa
esclarecem sobre o valor do SUS, Sistema Único de Saúde, principalmente para
parcelas da população brasileira com menor poder aquisitivo e/ou localizadas em
regiões menos estratégicas na comparação com os grandes centros urbanos. Aliada
às conquistas sociais advindas com a educação, a autora ressalta a importância
do SUS para a nação brasileira. Enivalda esboça um painel da precariedade da
saúde em nosso país a partir das doenças do patriarca quando criança e do sonho
de Aldacira, mãe de seis filhos, para ter acesso ao atendimento
médico-hospitalar, objetivo alcançado com o cargo de professora. Para mostrar
como era a saúde no Brasil antes do SUS, a narradora colhe, além das memórias
familiares, depoimentos de autoridades na área.
Desta forma, o livro é mais do que a história de uma família, é um registro do desenvolvimento do próprio povo brasileiro. E a autora, muito mais que uma pesquisadora comprometida, é uma intelectual antenada com os desafios sociais, econômicos e políticos do país; é uma escritora sensível e talentosa que, por meio da saga de seu clã, esboça um Brasil que precisa ser reconhecido e transformado para o desenvolvimento sustentável da nação. Enivalda Nunes de Freitas e Souza é, acima de tudo, uma mulher vencedora, protagonista de sua história, cujos traçados e livros admiráveis constituem importante legado para futuras gerações de mulheres, incentivando-as, com o seu exemplo e com o seu trabalho. Profissional competente que inspira as outras a transformarem desafios em mote para o trabalho produtivo e transformador com a docência, com a pesquisa, com o amor pela poesia e com a escrita literária.
Heliene Rosa e Enivalda Nunes Freitas e Souza [foto arquivo pessoal da autora] |
Para conhecer melhor a autora e o conjunto de sua obra, encontre-a nas redes sociais: Eni Freitas E Souza (@enifreitasesouza) • Fotos y videos de Instagram
Heliene Rosa |
Heliene Rosa é poeta mineira, professora e pesquisadora das poéticas
femininas. Escreve para o Blog Feminário Conexões e publica textos em
antologias literárias nacionais e internacionais. Além da produção poética, tem
publicações acadêmicas sobre a produção feminina na literatura e articula
projetos e eventos de leitura literária.