O ABISMO SUBLIME DAS ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO
A trajetória de vida de cada autora
desta coletânea nos interessa, nos faz crescer, nos fortalece, porque toda voz
que paramos a escutar se mistura a tantas outras e nos faz mergulhar, de forma
particular e especial, no profundo rio da Consciência Feminina, numa conexão
que vai além do humano, alcança esferas divinas outras, nos abraça, nos comove
e nos enche de inspiração e paixão pela vida.
{Marta Cortezão}
Pretendo apenas esboçar um desenho do movimento literário das Enluaradas, uma colcha de retalhos/mosaico, figuração das faces desdobráveis da figura feminina contida na obra Coletânea Enluaradas II: uma ciranda de deusas (2021), conduzida pela observação de que as letras podem alçar voos, regar os jardins das humanidades e, quem sabe impulsionar a escrita da mulher, de modo a plantar utopias e destilar sonhos. A coletânea conta com a participação de mulheres que residem em diversos países, como destacado no prefácio da obra, trata-se de: “[...] um movimento histórico de resistência feminina que surge das/nas margens do cânone, cuja prioridade é contribuir para a consolidação da mulher no espaço literário, divulgando a literaturas de autoras da contemporaneidade”. (CORTEZÃO, 2021, p. 08-09).
A seguinte frase de um vídeo no
facebook, dita por um homem, instigou-me à reflexão: “temos que ler mulheres
porque são boas, tem qualidade, não porque são mulheres”, não pretendo
discordar, muito pelo contrário, almejo, quem sabe, apenas levantar alguns
questionamentos para que possamos refletir sobre o lugar/espaço da mulher na
cena contemporânea: quais são os sentidos de “boas e/ou de qualidade” adotados
pelo olhar convencional? Como nós olhamos/sentimos a produção de autoria
feminina? Como se deu o percurso histórico/literário da mulher na trajetória da
produção escrita, especialmente no âmbito da literatura. E, ao considerar,
essas proposições ainda questiono: como podemos, se é que é possível,
conceituar “boas” e ou “de qualidade”, sem antes realizar uma leitura
criteriosa da produção?, e acrescemos ainda, “por que esconde seu bigode/na
lâmina afiada dos julgamentos?” (B. Raquel, 2021, p. 175), se “sei apenas que,
de tempos em tempos, me faço rosa/e nutro meus sonhos, de amor ou de vento”.
(MARQUEZI, 2021, p. 184) e que “cada portal que se abre a outras dá passagem!”
(PINHEIRO, 2021, p. 185).
Os questionamentos supramencionados
vêm ao encontro das abordagens das mulheres que participaram do Primeiro
Festival Literário de lançamento da Coletânea Enluaradas II/FLENLUA-2021,
mulheres que enfatizam o poder inenarrável da poesia e ressaltaram que a mesma
as salvaram de momentos de medo, de angústia, de desespero, de alegria, de
saudade e de si mesmas porque permite sonhar, caminhar por outros espaços e
fazerem-se livres das amarras patriarcalistas.
Pensar a produção de autoria
feminina a partir da coletânea consiste em descobrir os sentidos provenientes
da arte de enlaçar sorrisos, versos e prosas, a partir da essência de mulheres
que versam sobre suas (re)existências e, o melhor, mulheres que contam com a
generosidade de umas com as outras, no sentido de serem autoras e leitoras, num
círculo que aprofunda/tece, cada vez mais, a efetiva rede da sororidade.
Em As enluaradas, a poesia desprende
da pele feminina e a questiona, alfineta e provoca-a a romper com o medo e com
a insegurança para entrar no círculo e compor as engrenagens da ciranda
poética, como um veículo mágico que permite transitar por vários espaços ao
mesmo tempo, ocupar lugares que são e/ou que deveriam ser de tod@s. Ela aponta
para o que está oculto/silenciado e/ou abre caminhos que precisam ser
descobertos/contemplados. Constata-se que a poesia torna-se parte essencial da
vida, com quem é possível confidenciar as dores e as alegrias, estabelecer uma
relação amorosa que espalha sementes, pois “ser invisível não basta/preciso
penetrar no impenetrável/e de lá fazer o necessário./[...] cega de
sentidos/religo os pontos/dessa infantil brincadeira” (TIMM, 2021, p. 130).
Aqui nos reportamos ao olhar crianceiro tão trabalhado na produção do poeta
mato-grossense Manoel de Barros, ou a ver as coisas sempre como se estivesse
contemplando pela primeira vez, como diria Fernando Pessoa.
A luta é, cada vez mais, necessária
e urgente, não podemos retroceder, no entanto, ir avante necessita da força de
nós por nós mesmas, no sentido de darmos crédito a essas produções, de juntas
legitimarem nossas vozes, rasgar o cerco e conquistar espaço. É preciso nos
desafiar todos os dias, na busca incessante do que acreditamos e, ao mesmo
tempo, muitas vezes, nem sabemos ainda em que acreditamos, porque a vida não
vem feita, é constituída de relações, que surgem todos os dias e nos indagam a
todo o momento: quem somos? O que desejamos? Assim, vamos sem data marcada, não
sendo... mas, por outro, lado; querendo ser. É desse desejo vivo e fecundo, que
tiramos a seiva para nos manter em constante busca por superação dos limites
que nos impõem para que outras mulheres possam também ir além, acreditar em si
mesmas e vencer alguns obstáculos.
Vale compreender que: “[...] Somos
o ventre do mundo/[...]Temos o poder que ousamos suspeitar./[...] Somos
Mulheres!/A máquina da criação! Criamos tudo.../E ainda poesia para alegrar
nossos dias./E quando nos sobra tempo somos apenas mulheres! (CACAU, 2021,
p.171). Essas palavras estão encharcadas da intensa, profunda e específica
experiência de mulher porque traz a identidade plural da alma feminina no que
ela tem de mais sagrado, o poder inenarrável da gestação - “o mistério da
criação habita em nós”, é algo inegável, está intrínseco no corpo da mulher -
“a magia da vida”, a fina flor que perfuma todos os corpos - somos únicas e
plurais. É desse lugar de mulher que falamos, que poetizamos a vida e, penso
que raramente, “somos apenas mulheres!”. Com isto sendo dito, não queremos
menosprezar a produção de autoria masculina, muito pelo contrário, mas lutar
por equidade, conscientes dessa nossa tarefa ética e moral, lembrando de que,
como disse Mário Quintana: “quem faz um poema abre uma janela/Respira, tu que
estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela,/[...] quem faz um poema
salva um afogado”.
Necessitamos do ar que entra pela
janela, poetizado por Mário Quintana e, precisamos também, do vazio de Dilercy
Adler (2021, p.75) porque a poesia nasce de vazios preenchidos por
significações líricas que surpreendem e permitem o vi/ver que há uma mágica
fusão do eu com o tu, aberta a um mundo alheio à racionalidade porque faz
sonhar, caminha pelo campo da subjetividade: “cheio de ausências/e de lágrimas
sentidas”. Ou ainda porque é urgente uma “Polinização por afeto [com a qual]
nos meus poros/Quando tu depositas tuas estimas/Germinam-se jardins” (IANCOSKI,
2021, p.123). Portanto, “livrai-nos da crença cega/nenhuma figueira nasce cega”
(GERMANO, 2021, p. 170).
Se formos à pesquisa sobre a
produção feminina podemos constatar que esta surgiu de um parto bastante moroso
e complexo. Ao ouvirmos as autoras da coletânea, o processo de autoria, da
maioria dessas mulheres, também foi uma gestação, muitas conviveram com seus
escritos por muito tempo antes de vir a publicá-los, ouvindo-as lembrei-me das
palavras de Carlos Drummond de Andrade: “não forces o poema a desprender-se do
limbo./não colhas no chão o poema que se perdeu./não adules o poema./aceita-o/como
ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.
A coletânea: Enluaradas II,
pretende coroar um tempo em que se vive o presente correndo por cima dos
trilhos, pelas curvas, pelos declives, pelos abismos e pelos precipícios, como
Voyeur das nuances da paisagem porque gosta é da vertigem (DIPP, 2021, p. 142),
pois: “Assim, enquanto sou/encontro a mim e ao que me toca/às margens sinuosas
deste rio” (BAUMGARTEN, 2021, p. 140). A vida constitui o rio que somos,
portanto, “[...] Aquilo que flor, arco-íris/eu serei, nos hiatos, majestade!”
(RABELLO, 2021, p. 135). “e pelas chagas das minhas mãos/passam mensagens do
futuro” (SAVIO, 2021, p. 132).
A palavra não tem destinatário
certo e não pode estar restrita apenas a um emissor, somos plurais e, portanto,
também produzimos sentidos plurais sobre o que vemos, lemos, ouvimos e
sentimos. Conceitos e afirmações são movediços e precisamos descobrir que: “As
estrelas e mariposas/brilham cada uma, do seu jeito/ E eu, poeto a alma da
noite/aqui, no lago do meu leito” (MARY, 2021, p.100), pois “viver entre
palavras era/[é] a única boia nesse mar de incertezas” (SAVIO, 2021, p. 131).
Não somos nós quem degustamos das palavras, são elas quem nos queimam a pele:
Corpo nu
Tateio o corpo nu da palavra
buscando tua bronzeada tez...
na solitária barca noturna
de sonhos e tolos devaneios
esfrego-me no verbo amar
com sede de conjugações carnais
sucumbo no sexo das palavras...
oh! A língua de Camões me abrasa
o âmago profundo do prazer
sêmen(te) que embriaga
quando goteja fecunda
e explode no branco do papel:
orgia poética de palavras!
Essa dimensão erótica e sedutora da
relação do eu-poemático com as palavras nos reporta ao poema Sedução da Adélia
Prado: “A poesia me pega com sua roda dentada/[...] Me abraça detrás do muro,
levanta/ a saia pra eu ver, amorosa e doida”. Assim ressalto, tal qual Adélia,
que a poesia é hermafrodita e, estas que compõem a Coletânea Enluaradas II são
escritas por mulheres e desejam ser fecundadas por todos, para que juntas,
possam romper com o silêncio, subir no palco, protagonizar histórias, virar os
holofotes e desafiar a lógica social.
Permanece, tanto no poema de Marta
Cortezão, quanto em muitas outras páginas da coletânea, a possível relação
entre o eu e o tu, imagens que, de certa forma, conduz ao fortalecimento de uma
identidade po-ética e plural, capaz de germinar outras. Portanto, “[...]
respira fundo e voa/que o teu limite é infinito/ que o teu coração é o mar”
(MONTEJANO, 2021, p.147) e “há sempre o que se ganhar/ao paralisada não ficar”
(LIMA, 2021, p. 146). Afinal, “[...] talvez, em um futuro/ distante, alguém
compreenda que a beleza/é um espelho de muitas faces” (VELOSO, 2021, p. 101).
A obra em destaque apresenta a
poética de mulheres, com “desejos e feituras/que alimentam a fome” (NASCIMENTO,
2021, p. 88), no sentido de que são versos carregados de levezas que miram o
recomeço (LAGO, 2021, p. 86), a busca incessante por equidade, por
solidariedade, por empatia e/ou surgem na ânsia de que percebam as
“insignificâncias a desfilarem/ nos dias de chuva” (QUEIROZ, 2021, p. 181) e/ou
“os versos curadores/curandeiros de mim” (ALMEIDA, 2021, p.168) que nos apontam
que “[...] entre os espaços das paredes, lagartas e feras se entranham/A
algumas damos lábios. A outras, mistério./Mulher, quando nos cingimos entre
paredes,/a larva dá voo à palavra, onde nos reconhecemos” (GERMANO, 2021, p.
169). E, assim, podemos deixar “pegadas perfumadas com cheiro de absinto”
(MOTA, 2021, p. 89) porque “no silêncio e nas palavras,/a mensagem grita”
(CLARES, 2021, p. 201).
Finalizo, por ora, ressaltando que
estamos nessas páginas, mulheres, porque ousamos nos levantar dos abismos em
forma de poemas. Mulheres gostam de coisas profundas, “E no agora com uma
legião de deusas/ cirandamos como aves bailarinas/guiadas pela luz dessa
galáxia menina” (MANACÁ, 2021, p. 121.) porque “na passagem de um estado/para
outro [nos desenhamos, juntas, imortais] (LOPES, 2021, p. 56) e “carregamos em
nossas vidas/a imensidão dos belos tecidos (ALVES, 2021, p. 192).
Eu já sou fã... Entretanto, esse Artigo é praticamente uma Tese! Um apanhado feito por alguém que, de fato leu, sentiu e buscou significado de cada poema citado e, por assim dizer, esmiuçado!!! Coisa de quem sabe o que está fazendo!
ResponderExcluirReceba meu abraço e gratidão!
ExcluirÉpoustouflante texto! Parabéns
ResponderExcluirGrata pelo elogio descarado a tanta mulher e a duas
da essência deste FENLUA : Marta Cortezão e Cacau querida
Receba meu abraço e gratidão!
ExcluirMagnífico texto, Elisabete! A gente se lê/vê nas entrelinhas e nos sentimentos que envolvem essa escrita.
ResponderExcluirAbraços poéticos made in Germany! ;)
Receba meu abraço e gratidão!
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