segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O ABISMO SUBLIME DAS ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR ELIZABETE NASCIMENTO

 



O ABISMO SUBLIME DAS ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO


 Por Elizabete Nascimento


A trajetória de vida de cada autora desta coletânea nos interessa, nos faz crescer, nos fortalece, porque toda voz que paramos a escutar se mistura a tantas outras e nos faz mergulhar, de forma particular e especial, no profundo rio da Consciência Feminina, numa conexão que vai além do humano, alcança esferas divinas outras, nos abraça, nos comove e nos enche de inspiração e paixão pela vida.

              {Marta Cortezão}

 

Pretendo apenas esboçar um desenho do movimento literário das Enluaradas, uma colcha de retalhos/mosaico, figuração das faces desdobráveis da figura feminina contida na obra Coletânea Enluaradas II: uma ciranda de deusas (2021), conduzida pela observação de que as letras podem alçar voos, regar os jardins das humanidades e, quem sabe impulsionar a escrita da mulher, de modo a plantar utopias e destilar sonhos. A coletânea conta com a participação de mulheres que residem em diversos países, como destacado no prefácio da obra, trata-se de: “[...] um movimento histórico de resistência feminina que surge das/nas margens do cânone, cuja prioridade é contribuir para a consolidação da mulher no espaço literário, divulgando a literaturas de autoras da contemporaneidade”. (CORTEZÃO, 2021, p. 08-09).

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A seguinte frase de um vídeo no facebook, dita por um homem, instigou-me à reflexão: “temos que ler mulheres porque são boas, tem qualidade, não porque são mulheres”, não pretendo discordar, muito pelo contrário, almejo, quem sabe, apenas levantar alguns questionamentos para que possamos refletir sobre o lugar/espaço da mulher na cena contemporânea: quais são os sentidos de “boas e/ou de qualidade” adotados pelo olhar convencional? Como nós olhamos/sentimos a produção de autoria feminina? Como se deu o percurso histórico/literário da mulher na trajetória da produção escrita, especialmente no âmbito da literatura. E, ao considerar, essas proposições ainda questiono: como podemos, se é que é possível, conceituar “boas” e ou “de qualidade”, sem antes realizar uma leitura criteriosa da produção?, e acrescemos ainda, “por que esconde seu bigode/na lâmina afiada dos julgamentos?” (B. Raquel, 2021, p. 175), se “sei apenas que, de tempos em tempos, me faço rosa/e nutro meus sonhos, de amor ou de vento”. (MARQUEZI, 2021, p. 184) e que “cada portal que se abre a outras dá passagem!” (PINHEIRO, 2021, p. 185).

Os questionamentos supramencionados vêm ao encontro das abordagens das mulheres que participaram do Primeiro Festival Literário de lançamento da Coletânea Enluaradas II/FLENLUA-2021, mulheres que enfatizam o poder inenarrável da poesia e ressaltaram que a mesma as salvaram de momentos de medo, de angústia, de desespero, de alegria, de saudade e de si mesmas porque permite sonhar, caminhar por outros espaços e fazerem-se livres das amarras patriarcalistas.

Pensar a produção de autoria feminina a partir da coletânea consiste em descobrir os sentidos provenientes da arte de enlaçar sorrisos, versos e prosas, a partir da essência de mulheres que versam sobre suas (re)existências e, o melhor, mulheres que contam com a generosidade de umas com as outras, no sentido de serem autoras e leitoras, num círculo que aprofunda/tece, cada vez mais, a efetiva rede da sororidade.

Em As enluaradas, a poesia desprende da pele feminina e a questiona, alfineta e provoca-a a romper com o medo e com a insegurança para entrar no círculo e compor as engrenagens da ciranda poética, como um veículo mágico que permite transitar por vários espaços ao mesmo tempo, ocupar lugares que são e/ou que deveriam ser de tod@s. Ela aponta para o que está oculto/silenciado e/ou abre caminhos que precisam ser descobertos/contemplados. Constata-se que a poesia torna-se parte essencial da vida, com quem é possível confidenciar as dores e as alegrias, estabelecer uma relação amorosa que espalha sementes, pois “ser invisível não basta/preciso penetrar no impenetrável/e de lá fazer o necessário./[...] cega de sentidos/religo os pontos/dessa infantil brincadeira” (TIMM, 2021, p. 130). Aqui nos reportamos ao olhar crianceiro tão trabalhado na produção do poeta mato-grossense Manoel de Barros, ou a ver as coisas sempre como se estivesse contemplando pela primeira vez, como diria Fernando Pessoa.

A luta é, cada vez mais, necessária e urgente, não podemos retroceder, no entanto, ir avante necessita da força de nós por nós mesmas, no sentido de darmos crédito a essas produções, de juntas legitimarem nossas vozes, rasgar o cerco e conquistar espaço. É preciso nos desafiar todos os dias, na busca incessante do que acreditamos e, ao mesmo tempo, muitas vezes, nem sabemos ainda em que acreditamos, porque a vida não vem feita, é constituída de relações, que surgem todos os dias e nos indagam a todo o momento: quem somos? O que desejamos? Assim, vamos sem data marcada, não sendo... mas, por outro, lado; querendo ser. É desse desejo vivo e fecundo, que tiramos a seiva para nos manter em constante busca por superação dos limites que nos impõem para que outras mulheres possam também ir além, acreditar em si mesmas e vencer alguns obstáculos.

Vale compreender que: “[...] Somos o ventre do mundo/[...]Temos o poder que ousamos suspeitar./[...] Somos Mulheres!/A máquina da criação! Criamos tudo.../E ainda poesia para alegrar nossos dias./E quando nos sobra tempo somos apenas mulheres! (CACAU, 2021, p.171). Essas palavras estão encharcadas da intensa, profunda e específica experiência de mulher porque traz a identidade plural da alma feminina no que ela tem de mais sagrado, o poder inenarrável da gestação - “o mistério da criação habita em nós”, é algo inegável, está intrínseco no corpo da mulher - “a magia da vida”, a fina flor que perfuma todos os corpos - somos únicas e plurais. É desse lugar de mulher que falamos, que poetizamos a vida e, penso que raramente, “somos apenas mulheres!”. Com isto sendo dito, não queremos menosprezar a produção de autoria masculina, muito pelo contrário, mas lutar por equidade, conscientes dessa nossa tarefa ética e moral, lembrando de que, como disse Mário Quintana: “quem faz um poema abre uma janela/Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela,/[...] quem faz um poema salva um afogado”. 

Necessitamos do ar que entra pela janela, poetizado por Mário Quintana e, precisamos também, do vazio de Dilercy Adler (2021, p.75) porque a poesia nasce de vazios preenchidos por significações líricas que surpreendem e permitem o vi/ver que há uma mágica fusão do eu com o tu, aberta a um mundo alheio à racionalidade porque faz sonhar, caminha pelo campo da subjetividade: “cheio de ausências/e de lágrimas sentidas”. Ou ainda porque é urgente uma “Polinização por afeto [com a qual] nos meus poros/Quando tu depositas tuas estimas/Germinam-se jardins” (IANCOSKI, 2021, p.123). Portanto, “livrai-nos da crença cega/nenhuma figueira nasce cega” (GERMANO, 2021, p. 170).

Se formos à pesquisa sobre a produção feminina podemos constatar que esta surgiu de um parto bastante moroso e complexo. Ao ouvirmos as autoras da coletânea, o processo de autoria, da maioria dessas mulheres, também foi uma gestação, muitas conviveram com seus escritos por muito tempo antes de vir a publicá-los, ouvindo-as lembrei-me das palavras de Carlos Drummond de Andrade: “não forces o poema a desprender-se do limbo./não colhas no chão o poema que se perdeu./não adules o poema./aceita-o/como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

A coletânea: Enluaradas II, pretende coroar um tempo em que se vive o presente correndo por cima dos trilhos, pelas curvas, pelos declives, pelos abismos e pelos precipícios, como Voyeur das nuances da paisagem porque gosta é da vertigem (DIPP, 2021, p. 142), pois: “Assim, enquanto sou/encontro a mim e ao que me toca/às margens sinuosas deste rio” (BAUMGARTEN, 2021, p. 140). A vida constitui o rio que somos, portanto, “[...] Aquilo que flor, arco-íris/eu serei, nos hiatos, majestade!” (RABELLO, 2021, p. 135). “e pelas chagas das minhas mãos/passam mensagens do futuro” (SAVIO, 2021, p. 132).

A palavra não tem destinatário certo e não pode estar restrita apenas a um emissor, somos plurais e, portanto, também produzimos sentidos plurais sobre o que vemos, lemos, ouvimos e sentimos. Conceitos e afirmações são movediços e precisamos descobrir que: “As estrelas e mariposas/brilham cada uma, do seu jeito/ E eu, poeto a alma da noite/aqui, no lago do meu leito” (MARY, 2021, p.100), pois “viver entre palavras era/[é] a única boia nesse mar de incertezas” (SAVIO, 2021, p. 131). Não somos nós quem degustamos das palavras, são elas quem nos queimam a pele:

 

Corpo nu

 [Marta Cortezão]

Tateio o corpo nu da palavra

buscando tua bronzeada tez...

na solitária barca noturna

de sonhos e tolos devaneios

esfrego-me no verbo amar

com sede de conjugações carnais

sucumbo no sexo das palavras...

oh! A língua de Camões me abrasa

o âmago profundo do prazer

sêmen(te) que embriaga

quando goteja fecunda

e explode no branco do papel:

orgia poética de palavras!

 

Essa dimensão erótica e sedutora da relação do eu-poemático com as palavras nos reporta ao poema Sedução da Adélia Prado: “A poesia me pega com sua roda dentada/[...] Me abraça detrás do muro, levanta/ a saia pra eu ver, amorosa e doida”. Assim ressalto, tal qual Adélia, que a poesia é hermafrodita e, estas que compõem a Coletânea Enluaradas II são escritas por mulheres e desejam ser fecundadas por todos, para que juntas, possam romper com o silêncio, subir no palco, protagonizar histórias, virar os holofotes e desafiar a lógica social.

Permanece, tanto no poema de Marta Cortezão, quanto em muitas outras páginas da coletânea, a possível relação entre o eu e o tu, imagens que, de certa forma, conduz ao fortalecimento de uma identidade po-ética e plural, capaz de germinar outras. Portanto, “[...] respira fundo e voa/que o teu limite é infinito/ que o teu coração é o mar” (MONTEJANO, 2021, p.147) e “há sempre o que se ganhar/ao paralisada não ficar” (LIMA, 2021, p. 146). Afinal, “[...] talvez, em um futuro/ distante, alguém compreenda que a beleza/é um espelho de muitas faces” (VELOSO, 2021, p. 101).

A obra em destaque apresenta a poética de mulheres, com “desejos e feituras/que alimentam a fome” (NASCIMENTO, 2021, p. 88), no sentido de que são versos carregados de levezas que miram o recomeço (LAGO, 2021, p. 86), a busca incessante por equidade, por solidariedade, por empatia e/ou surgem na ânsia de que percebam as “insignificâncias a desfilarem/ nos dias de chuva” (QUEIROZ, 2021, p. 181) e/ou “os versos curadores/curandeiros de mim” (ALMEIDA, 2021, p.168) que nos apontam que “[...] entre os espaços das paredes, lagartas e feras se entranham/A algumas damos lábios. A outras, mistério./Mulher, quando nos cingimos entre paredes,/a larva dá voo à palavra, onde nos reconhecemos” (GERMANO, 2021, p. 169). E, assim, podemos deixar “pegadas perfumadas com cheiro de absinto” (MOTA, 2021, p. 89) porque “no silêncio e nas palavras,/a mensagem grita” (CLARES, 2021, p. 201).

Finalizo, por ora, ressaltando que estamos nessas páginas, mulheres, porque ousamos nos levantar dos abismos em forma de poemas. Mulheres gostam de coisas profundas, “E no agora com uma legião de deusas/ cirandamos como aves bailarinas/guiadas pela luz dessa galáxia menina” (MANACÁ, 2021, p. 121.) porque “na passagem de um estado/para outro [nos desenhamos, juntas, imortais] (LOPES, 2021, p. 56) e “carregamos em nossas vidas/a imensidão dos belos tecidos (ALVES, 2021, p. 192).






7 comentários:

  1. Eu já sou fã... Entretanto, esse Artigo é praticamente uma Tese! Um apanhado feito por alguém que, de fato leu, sentiu e buscou significado de cada poema citado e, por assim dizer, esmiuçado!!! Coisa de quem sabe o que está fazendo!

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  2. Époustouflante texto! Parabéns
    Grata pelo elogio descarado a tanta mulher e a duas
    da essência deste FENLUA : Marta Cortezão e Cacau querida

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  3. Magnífico texto, Elisabete! A gente se lê/vê nas entrelinhas e nos sentimentos que envolvem essa escrita.
    Abraços poéticos made in Germany! ;)

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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