segunda-feira, 29 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|11: PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA, POR ISAAC RAMOS



ELES LEEM ELAS|11

PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA 

ISAAC RAMOS 

Banzeiro Manso é uma sinfonia poética amazônica em versos, a ser acompanhada em todos os atos. Em todos cantos. Marta Cortezão no seu livro de estreia revela um mundo (o da poesia) e desvela outro (o do poema). Liturgia e epifania da palavra poética em estado de devir. Desde o título, um paradoxo que não se resolve (e se resolvesse não seria paradoxo). Orbita o leitor em uma espiral que o leva no meio do banzeiro e do qual ele não mais quer sair. E por que quereria? É como se esse estivesse sendo atraído pelo canto de Iara: “Não tardes, Iara, tenho vazios / carentes de tua suave e rouca voz...”.

Banzeiro Manso está à venda no site da editora Porto de Lenha

A viagem poética segue a bússola do fio da existência em que o prumo da poesia se apresenta em “(Re)mansos (di)versos” e “(Re)manso (re)versos”, nas duas primeiras partes do livro. O leitor, alegre aprendiz, vai destecendo o imaginário e vê que “A cada descortesia, / menos poesia. / A cada tropeço, / menos apreço. / A cada descaso, / por um fio o nosso caso”. E baila ao ritmo de uma “Valsa para Eros”: “Teus passos cegos / me vigiam. /Teus olhos passeiam / minha alma”. Entre um passo e outro encontra metáforas suspensas na banzeira página e descobre que o bicho-da-seda “aprendeu com a dor da solidão/ que a desventura também alimenta a crisálida”.

Antes mesmo que a valsa acabe surge a sensualidade em um vestido preto, justo, no corpo adornado por uma metonímia assustada: “Ele chegou com olhos / de tigre faminto / pisando mansinho / em meus confusos labirintos”. Mas o concerto poético não pode parar e de forma irreverente o amor, em novo figurino, surge em tons de jeans: “Aluga-se um coração plangente / cômodo, amplo, ardente. / Aspecto terno e sedutor / com vistas a um louco amor”. Enternecido, os olhos do leitor se voltam para o rodopio do verso e é seduzido por nova cadência rítmica. E degusta uma metáfora sinestésica: “Para ser pétala / longo é o caminhar. / Para saborear o néctar / há que saber-se despetalar”.

A arte da capa é do multiartista tefeense Elvis Braga

A contradição – eterna companheira da poesia – não poderia faltar, sobretudo quando tão bem empregada: “Se nosso amor é tão sólido / por que me escorre pelos dedos?”. Eis o mistério do verso. Há mais poesia entre o céu e a terra do que supõe qualquer dilema shakespeariano. E como não ficar embriagado pelo humor refinado de Marta Cortezão, em versos como estes?: “Pouco riso, / menos siso?”.

A celebração da palavra é um capítulo à parte dessa poética sinfonia amazônica: “Quando a poesia cala, / a Alma verseja e fala: / o poeta versos afina/ ao compasso da Lira”. (Ao fundo, ouço Piaf cantando “Mon Dieu”). Faço uma pausa para que a lágrima escorra. E me emociono diante da sinestesia que parte de uma metáfora e chega à condição de “Poesia aquarela”: “Mundo-vivo e Poesia. / Tudo soa, tudo voa! / Letras, palavras, tintas, gotas.../ Tudo grita, tudo ecoa!”. O concerto não pode mesmo parar. E por que pararia? Ainda há muitas páginas para ouvir e apreciar.

Foto de uma atividade virtual do projeto de Literatura Amazonense, realizado pela Professora Andrea Dore, juntamente com os discentes do Instituto Denizard Rivail, Manaus, em 2018.

Em dado momento o tom muda em Banzeiro Manso, para que o leitor reflita. (Na vitrola, Piaf canta “Non, je ne regrette rien” (Não, não me arrependo de nada). Seguem os versos: “A sociedade de mim se burla: / "Maria Vai-com-as-outras"! / Melhor seria se soubesse / o caminho de Maria quando / engajada com as Outras”. Qual Marta ouvir: a poeta ou a mulher? Não importa. O importante é que exale a poesia. Nada melhor que velejar por um tema clássico: “Lua odalisca / Baile faceiro / Lua fetiche / Compasso brejeiro / (...) Lua alvorada / Tez avelã / Lua namorada / Boca romã”. A partitura segue com sua pintura.

Hora de falar sobre o existencialismo. Uma corrente filosófica que surgiu em meados do século XX, mas que está presente na literatura desde há muito tempo. Basta ler Camões, Fernando Pessoa, Manoel de Barros e outros autores. Mas, em Banzeiro Manso... (Nesse momento, ouço notas de “C’est la vie”, em um concerto de Emerson, Lake & Palmer, em Montreal. Seguro uma lágrima que teima em cair). E passo aos versos de Marta:


Ser casulo

para entender-se

no silêncio do Ser.



Em 13/OUT/2019, projeto de iniciação científica aprovado em edital do PCE/Fapeam. "BANZEIRO MANSO: RESGATANDO O DIALETO AMAZÔNICO" analisou a poesia da poeta @martacortezaopoeta. Fotos divulgadas pelo idealizador do projeto, prof. Onison Lopes.

Após esse sopro poético, posso falar das duas últimas partes de Banzeiro Manso. Elas mostram uma poeta plugada em sua terra e a poesia que daí advém é capaz de surpreender qualquer leitor desavisado. Entramos em um “Banzeiro (re)manso(so)”, do qual não mais desejamos sair. Trata-se de uma poética elevada e que justifica, plenamente, o título do livro e a condição de poeta amazônica, por excelência. São tantas as passagens que, se eu fosse você, parava de ler o prefácio e ia direto para os textos...

Muito bem. Se você resolveu continuar a leitura desse prefácio, então é preciso conhecer a “Essência”:

Sou do Norte, terra de caboclo forte,

que toma açaí, come piracuí,

bodó assado e jaraqui,

pirarucu com chibé,

tucumã com café,

que faz paneiro com cipó de ambé

(...)

Eita vidão!

(...)

No rio de minha imaginação...

De forma serelepe, a menina poeta brinca com operações da (ma)temática do amor: “Mais amor e menos rancor. / Menos ter e mais querer / Mais poesia e açaí com farinha! / Menos ególatras e mais chocólatras. / Mais gratidão e pé no chão, / menos idiotas e mais jabá com farofa!”. Não é preciso ser do Norte para entender a poética do encanto e do espanto. A linguagem da poesia é universal e ressemantizável.

No virar de páginas, a menina toma corpo e debuta em versos eivados de “Memórias”, em diálogo existencial com Castro Alves:


Infância de águas

guardada no baú

das memórias... São

espumas flutuantes

de meu porto seguro.


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Quando o leitor pensa que nada mais poderá aprender com Marta Cortezão, ele recebe “Tenras lições”: “E aquela cunhatã reza baixinho / uma ave-maria pela doce lição, / abre os ternos olhos de mansinho, / vê deslizando no rio aquele regatão”. Após um saudoso fado, chega o momento de “Súplica a Iara”, a divindade das águas, que hipnotiza o leitor e o leva para o meio do Banzeiro manso: “Leva- me contigo, Iara! / Cansei deste mundo raso. / Prefiro teu mundo de águas, / rio profundo, sem as mágoas / que desafinam, a miúde, meu trovar”.

É natureza do homem bater asas e viver paixões e “Sandices”. De forma bem-humorada dialoga com a canção de escárnio “Dona fea”, de João Garcia de Guilhade, do Trovadorismo português:

 

Ai, ai, D. Mucura!

Não chore, seja forte,

a vida é assim de dura!

 

A paixão ensandece,

mas a dor se cura.

Não nade contra a corrente.

Nos assuntos do coração,

é melhor ser coerente.

Amar a um colibri

é dar asas à loucura!.

(...) 

O romantismo perpassa o livro, todavia embalado como o deitar em uma rede, como o suave balanço em “Rio-Mar”: “Desejo afluir-me / em tuas águas cálidas;/ brincar, sem reservas, / no teu doce banzeiro, / manso balanço ligeiro, / onde desejo estar...”. Essa poeta cunhatã joga sua rede de versos na água da poesia e de forma trovadoresca pesca leitores em pleno dia: “Eu não desejo porfia. / Quero apenas encangar / minha canoa na tua”. E que coisa louca falar “Dos amores”! Não há como não ser fisgado: “Era jogar a isca e o anzol fisgava / ligeiro meu amor primeiro...”.

Um instante mágico está reservado à leitura do poema “Bênçãos”, dedicado à sua mãe, Nelci Cortezão, tenho convicção de que é o mais lírico do livro:

Mãe, e aquele rio, para onde corre?

Não descansa? Nunca morre?


Aquele rio corre para o Mundo...

Com a força de um moribundo

Sem pressa de chegar

mas com muitos caminhos a alcançar!

Na literatura portuguesa, o rio é um ente. Em Banzeiro Manso, é poente e insurgente de grande poesia. Os segredos são revelados nas correntezas dos versos, que embalam a rede e o enredo dos poemas em prosa, como em “Musa Iracema”: Assim se expressa: “Sou boto moço / Sou boto manso /Faço alvoroço / As águas transo”.

No meio do devaneio, ela dialoga com Almeida Garrett, poeta português. Difícil não se emocionar com “À barca bela”:

 

(...)

Por que o pranto

No rio meu, Barca bela?

Por que tão triste canto?

Só caio em esparrela!

Tu sim és feliz,

Bela barca!

Eu, de amor infeliz

E tu, amores atracas:

Tens o rio e a ela!

 

Ela é piracema

De prazeres

Ele, rio de dilema

De mil quereres!

Eu, Barca Bela,

Espuma de remanso,

Tenho as penas

E a vil bagatela

De amar-te manso,

Barca Bela!

(...)


Foto da poeta Patrícia Cacau, Áustria, 2021

Chego na Parte IV do livro, denominada “Remanso Tupeba”. Um dos momentos em que a poeta atinge as notas mais altas é na paródica “Canção Tupeba”. Gonçalves Dias, lá do céu da literatura, deve estar vibrando:

Minha terra, de palmeira, tem o zau:

piassaba, jarina, bacaba, buriti, patauá,

pupunha, babaçu, tucumã, açaí e o escambau.

Ach’é pouco lugar pra Sabiá cantar por lá!


(...)

Muitas palmeiras tem meu torrão,

que são mais dos urubus que dos Sabiás.

Permita-me Deus voltar logo pra lá!

Comer tucumã com farinha até empachar. 

(...)

E segue Marta Cortezão com seu cântico tupi, com seu cântico Tefé, com sua ode poética a dialogar com “O Canto do Piaga”, outro de Gonçalves Dias. Como um brado guerreiro, o leitor enxerga um “Exército Tupeba”: “E assim marcha um exército decidido, / sua força colossal não se dissipa, não falha. /Um povo que luta e não se dá por vencido, / porque o Tupeba é guerreiro, não foge à batalha!”. É o canto da literatura amazonense que se destaca nesses versos.

Mas não só de batalhas vive a vida, é preciso (retro)alimentar antropofagicamente a poesia, sobretudo de forma humorada, como em um “Jeito Tupeba de ser”:

(...)

Pelas ruas e calçadas da cidade,

bodó assado na brasa, às seis da tarde,

regado ao molho de pimenta murupi,

com muita farinha-ova do Uarini.

Égua, maninha! Que jeito Tupeba de ser!

(...)

Todas (ou quase todas) as divindades da poesia são invocadas em “Olimpo de saudade”, pela magistra Marta Cortezão. Depois de flertar com a mitologia grega ela (re)cria e evoca a mitologia tefeense, posto que os versos finais de forma humorada mostram “um coração tupeba / de alma sentimental”:

(...)

Tem os encantos de Apolo,

de Medeia, a loucura,

a habilidade de Diana,

de Cupido, a travessura,

a arte de Vulcano,

de Ares, a fúria,

o fogo de Prometeu,

de Édipo, a cegueira,

a musicalidade de Orfeu,

a dor de Jocasta,

a força de Hércules,

de Ícaro, a audácia

e, em especial,

um coração Tupeba

de alma sentimental!

A viagem pelo centro da terra amazônica continua em “Sangue Tapiba”: “A minha imponente Saudade / voa no melodioso canto uirapuru, / de vastos sentimentos me invade / e vai pousar em divina fonte / do majestoso crepúsculo Tupé! / Índia morena, de ledos corações, Tefé!”. É o nome de sua cidade natal. Tefeense de versos impávidos que carrega lembranças poéticas até onde parece não caber, a exemplo da personificação e a dedicação “A um taperebazeiro”: “Taperebá! Minha Tapera, / meu barco alado das belas tardes! / Adoçaste minha infância... / Quantas perebas por subir neste tronco! / Bora brincar de taperabá? / Pera um pouco, perainda / que vou perambular lembranças / e jogar conversa fora / em baixo da sombra do meu Taperabá!”. Brinca, poeta. Brinca, criança. Rebrinca, leitor. Isso ficará um brinco.

"Tomando café Nordestino em alegre companhia. Chegou meu livro Banzeiro Manso da querida escritora Marta Cortezão! Estou amando a leitura de sua poética cultural, cativante e rica de júbilo e orgulho de sua terra. Me sinto contemplada com sua seiva amazonense, íntima de seus cânticos encantados. Aguijê Kunhâ porã." Foto e texto da professora, escritora e produtora cultural Eva Potiguara.

As duas últimas canções de Banzeiro manso fecham com clave poética. Em “Furioso Cupido”, confira a inquieta e nem tanto solene brincadeira de amor:

Quando o Cupido

se zangou comigo,

me azagaiou o coração

só pra me dá uma lição.

Tive até passamento;

topei com grande tormento

que me deixou aperreado

com o corpo todo coisado

por um não-sei-quê de amor

misturado a um angu de dor!

(...)

Dei de pau no tucumã com farinha,

chega fiquei de bucho tufado,

mas voltei pra casa curado,

e mais feliz que pinto no lixo!

E do amor? Tu é leso é?!

Ando correndo disso!!! 

E chego ao último poema que, não por acaso, chama-se “Noite de visagem”. Macunaíma andou por aqui e por ali. Por ter fé, por Tefé, ao que tudo indica:

(...)

Monto mula-sem-cabeça,

proseio com a Cabeça-sem-mula

que me conta do romance com o senhor cura.

Enquanto tomamos chá de capim-santo,

mãe natureza nos afaga com doce acalanto.

Chegam as fermosas guerreiras Amazonas

para contar das extraordinárias façanhas;

dos segredos verdes do muiraquitã

e dos estranhos vícios desumanos

cuja medida do Ter nunca se enche.

Recitamos belas trovas, heroicamente,

E rimos como traquinas cunhatãs.

Em fera brava me viro,

manso Matinta suspiro!

(...)

Após a execução dos acordes finais, Banzeiro manso chega ao final de suas páginas. Exausta, à orquestra/livro a poeta se curva em agradecimento, depois se vira e entrega a batuta ao leitor. Quanto ao bis? Basta recomeçar a leitura do livro. Difícil acreditar que esse seja somente o primeiro de Marta Cortezão. É. Ela conseguiu domar o banzeiro, com um puro jeito Tupeba de ser... o Ser da poesia. Simplesmente.

Goiás, 16 de setembro de 2016.


*O texto PURO JEITO TUPEBA DE SER foi escrito para figurar no prefácio da primeira impressão do Banzeiro Manso, editado pela Porto de Lenha, em 2017. O curioso foi que o estimado professor Isaac Ramos, coincidentemente, me enviou o texto finalizado, por e-mail, justo no dia de meu aniversário, 16|SET|2016. Foi um presente muito especial! E sempre o agradeço por esta belezura de prefácio. E você gostou? Deixe seu comentário!👇👇👇

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Isaac Ramos 

Poeta e crítico literário, com diversos livros publicados. Dentre as publicações, destacam-se: Reflexões (1984); Astro por rastro (1988); Teias e Teares (2014) (poemas); A metáfora do olhar: Alberto Caeiro e Manoel de Barros (2018); Ensaios de lírica: do poema clássico ao contemporâneo (Org.) (2020) crítica e análise literária, livro impresso e e-book gratuito. Doutor e Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP). Professor permanente do PPGEL/Unemat. 2, Dez./2020. (Texto retirado da orelha do seu mais recente livro “álibi”. 

Para comprar "álibi" (Carlini&Caniato Editorial, 2022) entre em contato com o autor via Facebook e/ou Instagram

Os textos abaixo são da contracapa do livro "álibi":

“Álibi é o primeiro livro da série poética (Con)sequências líricas, que deverá abrigar mais dois volumes... Os poemas são compostos sem obrigatoriedade do uso de formas fixas e com rimas eventuais, alguns motivos são recorrentes: a embriaguez, o erotismo, a intertextualidade, alguns poemas de cunho social, tudo isso construído com recursos sonoros que evidenciam os trocadilhos, os jogos lexicais, a fragmentação das palavras, a homonímia, a homografia, a homofonia e a paronímia, num exercício constante da metalinguagem poética”

Cláudia Coelho


“Enquanto tecelão profissional de palavras (professor, escritor e palestrante), Isaac Ramos entretece uma teia saborosa, que nos apanha nos ziguezagues dos seus jogos verbais, que são, afinal, jogos entre a vida, a morte e o luxo da estética (vivencial e comunicacional).”

Pires Laranjeira

ISBN 978-65-88600-97-9

 

CONTE-ME UM CONTO|06, POR GABRIELA LAGES VELOSO

 CONTE-ME UM CONTO|07

O   R E L I C Á R I O

POR GABRIELA LAGES VELOSO

Após uma longa noite de sonhos intranquilos, Moira desperta sobressaltada, levanta-se e põe-se em frente à uma antiga penteadeira – uma relíquia pertencente à sua família, por gerações. Por um instante, ela contempla o espelho e vê uma mulher de oitenta anos, com seus cabelos grisalhos em completo desalinho, rugas ao redor dos olhos e boca, bem como, olhos azuis, que outrora cintilavam, mas agora se encontram opacos.

– “Em qual espelho ficou perdida a minha face?”  – suspirou, angustiada.

Moira é uma juíza renomada, aposentada há alguns anos, que mora em uma suntuosa mansão. Mas, apesar de toda a sua riqueza, não tem herdeiros. Logo após a aposentadoria, ela entrou em crise, pois encontrou-se frente a frente com a pergunta que a inquietou por toda a sua vida: quando será o meu tempo?

Ao sair de seu quarto, Moira caminha até uma grande janela, no final do corredor, e põe-se a observar a chuva. À medida que cada pequeno cristal d'água cai sobre a grama, traz à tona, com toda a vivacidade, as antigas memórias da aurora de sua vida.

A pequena Moira adorava dias de chuva, pois, nesses dias, sua mãe tinha o hábito de contar histórias, sentada em uma cadeira de balanço, para ela e suas duas irmãs, que faleceram em um trágico acidente, quando Moira tinha apenas cinco anos de idade. Por isso, a menina cresceu sufocada pela superproteção materna e as altas expectativas do pai.

Agora, em frente à grande janela, Moira estava tão absorta em seus pensamentos, que não percebeu o avançar das horas. Permaneceu nesse transe até as sete horas, quando a governanta veio chamá-la para tomar seu desjejum. Alguns instantes depois, Moira estava perante à mesa posta com fartura, mas ela estava sem apetite, e quis tomar apenas uma xícara de chá.

– De fato, do fundo do poço só se pode tirar memórias ou mesmices ... – refletiu, Moira.

Que contraste Moira enxergou entre a fartura deste café da manhã, para uma única pessoa, e todas as refeições de sua família – ou até mesmo a ausência delas – em seus dias de infância. Essa percepção a transportou para o dia em que sua mãe recebeu um misterioso presente de uma falecida senhora: uma penteadeira de mogno, com miligramas de ouro incrustado em desenhos floreados, e um espelho embutido no majestoso móvel.

Moira aprendeu a ler e escrever bem cedo. Seus dias eram milimetricamente administrados pelo pai, que tinha um único objetivo na vida: fazer com que a filha jamais enfrentasse as mesmas privações pelas quais ele passou. Por isso, a menina tinha de estudar, dia e noite, para que, no futuro, tivesse uma profissão de prestígio e retorno financeiro a curto prazo.

Após o seu desjejum, Moira caminha por vários corredores e decide ir até o seu oásis particular: uma biblioteca de grandes dimensões, com prateleiras até o teto, todas preenchidas com edições de luxo de centenas de livros, desde os clássicos até os contemporâneos da literatura universal, em vários idiomas. Um leve lampejo, acende uma fagulha em seus olhos azuis. Ela está no único lugar em que realmente se sente realizada.

Moira pensou como teria sido sua infância em uma biblioteca como aquela, como teria se divertido, inventando suas próprias histórias, ou até mesmo imaginando ser a protagonista de seus romances favoritos.

Quando menina, seus passatempos favoritos, nas folgas de sua pesada rotina de estudos, imposta pelo pai, eram ler contos de fadas e romances que a transportavam para outros momentos e mundos e brincar em frente à majestosa penteadeira de sua mãe. Ao contemplar o espelho, ela não via a pequena garota de belos cachos castanhos e olhos azuis cintilantes, e sim, a protagonista da história que estava lendo, ou escrevendo.

O maior sonho de Moira era se tornar uma grande escritora, no futuro. Por isso, ela tinha um diário, no qual criava um mundo todo seu, cuja única lei era a liberdade. Bem, esse era o seu sonho, porém ele não estava nos planos de seu pai, que queria, a todo custo, que ela fosse rica. Por essa razão, ela escondia seu diário na última gaveta do imponente móvel de mogno, assim também como sua força para escolher o próprio destino.

Ainda na biblioteca, uma pequena lágrima cai dos tristes olhos azuis de Moira, ao lembrar de seu antigo diário infantil e perceber o quanto a sua existência foi vazia... vazia de significado, e, principalmente, de felicidade.

– Cada instante do nosso passado, nos faz ser quem nós somos – disse consigo mesma.

Nesse instante, a governanta entra na biblioteca e encontra Moira em prantos.

– A senhora está se sentindo bem? – perguntou a governanta.

– Não se preocupe comigo, só estou um pouco emotiva. – disse Moira, enxugando as lágrimas.

– Desculpe interrompê-la. Mas o Contador está lhe aguardando na sala de visitas, devo pedir-lhe que retorne em outro momento? – disse a governanta, com um olhar compreensivo.

– Não. Diga que irei descer em alguns minutos – disse Moira, resignada.

– Certo, senhora. Você realmente está se sentindo bem? – insistiu a governanta.

– Obrigada pela preocupação, mas o meu problema não pode ser resolvido agora – disse Moira, enigmática – não deixe o Contador esperando, diga que irei em instantes.

A compaixão de sua funcionária a fez viajar mais uma vez em suas memórias. Moira se viu perante o seu único e melhor amigo, que era também seu vizinho. Os dois costumavam brincar juntos no quintal de suas casas. Ele costumava ouvir, pacientemente, as queixas de Moira sobre a superproteção dos pais e como se sentia sufocada, por isso. O garoto sempre a alegrava e distraía com suas histórias, pois ele também era dono de uma imaginação fértil, porém, estava fadado a um destino no qual sua criatividade de nada valia. Ele era extremamente pobre, vivia em uma miséria maior do que a família de Moira jamais experimentaria. Por isso, quando completou apenas dez anos de idade teve de começar a trabalhar em uma fábrica de tijolos, para que a família não definhasse de fome.

Temendo que a filha se apaixonasse pelo garoto, quando eles chegassem à juventude, e assim tivesse um destino diferente do que ele planejara, o pai de Moira proibiu a amizade das duas crianças, o que as condenou a um caminho, no qual não havia tempo, nem espaço, para amizades ou sentimentos, somente para a monotonia diária e a solidão.

O temor do pai de Moira tinha uma explicação. No passado, ele é que fora o melhor amigo pobre de sua esposa. A avó, que Moira jamais conhecera, era uma mulher muito rica, que tinha apenas duas filhas, dentre as quais a primogênita um dia viria a ser a mãe de Moira. Contudo, a rica senhora não aprovava o relacionamento entre sua distinta filha e um rapaz tão humilde, pois acreditava não passar de um mero interesse financeiro. Por isso, deserdou sua primogênita no dia em que recebeu a notícia do casamento e se ausentou, assim, para sempre da vida de sua filha. Somente em seu leito de morte, arrependeu-se pela dura decisão e suplicou a sua segunda filha, a única herdeira de toda a sua fortuna, que entregasse a penteadeira à sua irmã, pois era uma relíquia, que atravessava gerações de primogênitos de sua descendência.

Agora, em seu escritório, Moira discute acaloradamente com o seu Contador, pois descobre um desfalque em suas finanças. E toda essa agitação lhe causa uma enorme dor no peito e ela cai desmaiada. Quando Moira recobra seus sentidos, ela se encontra deitada em sua cama e percebe o olhar cansado de sua governanta, que ficara em vigília, a noite inteira, cuidando de sua estimada senhora.

Um turbilhão de pensamentos invade a mente de Moira. Ela enxerga sua vida como um delicado castelo de areia que está sendo soprado pelo impetuoso vento da morte. Restam, agora, poucos grãos...

Ela percebe que sua existência fora preenchida unicamente pelas ausências de seu passado. Em seu peito aquela mesma dor se acentua, ela enxerga uma luz muito forte e imagina como teria sido a sua vida se ela tivesse, de fato, tomado as rédeas de seu próprio destino. Pois, em seu último suspiro, ela compreendeu que o futuro é um quebra-cabeças, com inúmeras lacunas, que podem ser preenchidas por várias peças disponíveis.

Inquieta, com a respiração ofegante, Moira desperta no dia de seu décimo oitavo aniversário. Tudo não passou de um sonho...

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Gabriela Lages Veloso (@_gabriela_lv) 

É escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É colunista da Revista Sucuru, editora do núcleo poético de divulgação feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso, colaborou com coletâneas e revistas nacionais e internacionais.

 

Referência:

VELOSO, Gabriela Lages. Conto O Relicário. In: Revista Intransitiva – Memórias que nos atravessam, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, Dez./2020.

domingo, 28 de agosto de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO|02: SOTÃO, POR RITA ALENCAR CLARK

 


LIÇÕES DE SILÊNCIO|02

POR RITA ALENCAR CLARK

O SÓTÃO


Nas horas quentes de uma tarde azul 

O vento vem e se deita comigo 

Calo-me e escuto, naturalmente inquieto-me, 

É que há sempre algo a ser dito por 

Brisas suaves ou tornados absolutos 

Inquieto-me. 

Breve estarei sozinha, de olhar ao longe... 

Debruçada à janela esquecida do sótão 

Navios que partem e que chegam enquanto meus olhos veem. 

Os sótãos são momentos e guardam segredos eternos 

Nossos e de ontem, dos outros e secretos. 

Inquieto-me por não saber o destino de tantas 

Esperanças inscritas em cadernos e folhas de blocos avulsos, 

Ensaios delirantes e impublicáveis meus,

Nessa hora azul de silêncio, e sofro.

Sofro as dores do ficar, do não partir a vida ao meio, 

De entender e desistir das jornadas e aventuras 

Aguando os olhos com a tristeza de uma saudade 

Desconhecida, de um futuro que jamais terei ou conhecerei. 

Tudo, tudo haveria de permanecer intacto 

Naquele sótão, naquela tarde azul 

Sufocante e de mormaço letárgico, quieto. 

Apenas eu, eu e meus pensamentos, 

Apenas nós permaneceremos inquietos.

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Rita Alencar Clark
É poeta, contista, cronista e ensaísta amazonense, membro da ALB/Am, membro do Clube da Madrugada e do Coletivo Mulherio das Letras, tem 2 livros publicados e várias coletâneas.


ELES LEEM ELAS|10: NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana, POR LAU SIQUEIRA

 


ELES LEEM ELAS|10

NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana


Por Lau Siqueira


O primeiro livro é sempre uma provocação e um desafio. Uma estirada de Língua do poeta ou da poeta. Especialmente porque as facilidades para a publicação nesses tempos modernos, geralmente convidam ao abismo. Os canais de divulgação da Poesia e principalmente da nova Poesia brasileira, são inúmeros. Os blogs, as plataformas, as redes sociais. Dificilmente um escritor ou escritora fica inédito por muito tempo. Escreveu, publicou. Ninguém está isolado. A bolha dos poetas municipais, estaduais ou federais, todavia, explodiu enquanto “tiravam ouro do nariz”.

Para adquirir Artéria, fale com Clareanna Santana via perfil @clareamente
 ou via perfil Facebook 

Anos atrás alguns acelerados acendiam o alerta máximo sobre o que seria a tal “literatura na internet”. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, mas o medo das novidades mordeu muitos calcanhares. Nos primórdios da conexão discada os poucos textos expostos eram generalizados como “escritas rasas”. Era o veredito geral da Suprema Corte Literária. Até que os “togados” também entraram nas redes. Os desconfiômetros foram sutilmente desligados.  Não se falou mais nisso. Salvo por alguns absurdos apocalípticos, a prudência sempre evitou acidentes fatais e injustiças silenciadas, mas nunca deteve a história. Assim, conclui-se que os meios não melhoram nem pioram a literatura de ninguém, mas ampliam os campos da visibilidade.

Na medida em que pensamos no turbilhão que é a atual produção poética brasileira, não nos cabe negá-la. Muito menos negligenciar sobre quem chega. Afinal, escrever e escrever poemas muito especialmente, é sempre um aprendizado cheio de boas lições. No mais, a chamada “literatura eletrônica”, não é e nunca será um novo gênero, mas uma realidade intransferível. Segundo N. Katherine Hayles, tudo isso afetou o sistema cognitivo humano e “aquilo que ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura”. Ou seja: um paradigma saiu silenciosamente pela janela enquanto outro instalava-se no jardim.

Nunca sei onde começa de fato um livro de poemas. Com “Artéria” (Editora Libertinagem-SP) não é diferente. Falo com a convicção de quem lê compulsivamente, mas também escreveu poemas e teve a sorte de vê-los publicados. Sou um leitor movido prioritariamente pelo prazer da leitura. Anárquico e apaixonado. Desde sempre prevalecem as minhas escolhas eletivas. Mas por onde começar e onde terminar a leitura de um livro de poemas sem deixar esquecida uma única página? Tenho meu próprio método. Nunca faço uma leitura linear. Apenas percorro este farfalhar de silêncios que, por exemplo, encontrei na poesia de Clareanna Santana. Muito jovem ainda, Clareanna aprendeu a pensar profundo. Sabe que a palavra - arma vital da poesia, também é letal. Serve para glorificar, mas também pode trucidar.

Artéria está à venda pelo site da Libertinagem, clique na imagem.

A poesia de Clareanna traz uma tradução literal da sua própria pele. Expressa um toque destemido, um mergulho represado. Um sol e uma lua que se dissolvem entre si de forma ritmada. Todos os sentidos e todos os signos conversam e trocam de lugar o tempo todo. Sim, fiz minhas escolhas e colhi bons frutos nos versos desta poeta talentosa nascida em Eunápolis, no Sul da Bahia. Hoje mais que poeta baiana, é do mundo. Integra um universo literário que apresenta ao Brasil nomes como Sérgio de Castro Pinto e Maria Valéria Rezende. Morando na Paraíba, habita um dos cenários de maior efervescência da literatura contemporânea. Sem pressa, vai ocupando espaços. Refazendo-se permanentemente, reinventando uma poesia que já se faz necessária.

O poema “coração de baleia” foi minha primeira leitura deste livro. Portanto, segui a minha lógica pessoal de leituras. Não é o primeiro poema do livro, mas um dos primeiros. Poema curto que exige leitura demorada. Fiquei buscando as paisagens nele contidas, as agonias, as fraturas expostas de cada verso e ao final me rendi aos seus apelos: “a veia recheada/ meio carne/ meio máquina/ reserva-se pronta e cheia./ liga-se ao músculo salpicado/ entre doçura e pecado:/ meu coração de baleia”. A escrita de Clareanna faz pensar e pensar um poema é a melhor maneira de senti-lo. Em “coração de baleia”, assim como em outros poemas, a poeta abre alas para uma caminhada que vem de longe, sem medo de revelar suas pegadas.

Em Clareanna Santana não vemos disfarce. Apenas um leve fingimento pessoano. Ela finge completamente “a dor que deveras sente”, mas não a disfarça. O filósofo francês Mikel Dufrene escreveu que “(...) a espontaneidade é, a um só tempo, a condição e a recompensa de sua operação e, antes de tudo, de sua docilidade.” Na espontaneidade da poesia de Clareanna é onde encontramos os seus maiores disfarces. Uma espontaneidade lírica que logo é encoberta pela artesania, pelo meticuloso trabalho com a palavra. Nossa poeta justifica as ideias de Domício Proença Filho: “(...) Na maioria dos casos é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra literária de faz, fazendo-se.” Clareanna constrói em seus versos uma teoria para os seus próprios poemas.

Sua escrita tem uma unidade definida: é corpo, mente e mistério. A certeza de existir e a força onírica das suas indefinições. Tudo resumido em cada estrofe. Especialmente em poemas como “o corpo”, onde ela diz: “se de massa/carbono me faço/ é de antimatéria que vivo/ sobrevivo em meio ao cansaço/ sou matéria de corpo sofrido”. Ela sabe como afinar o instrumento. Conhece e reconhece as trajetórias do seu próprio corpo e as incertezas da pele. Sabe que o mergulho profundo é sempre revelado nas superfícies. No escambo dos sentidos, na dor e seus renascimentos. Sua verve nasce das alamedas percorridas e dos labirintos onde as certezas se perdem. Mergulhada em linguagens, vive visceralmente seus processos e suas relações impermanentes com a invenção. Vive cada vez mais profundamente a doma dos próprios delírios.

Em seu arsenal de palavras não há limites. A poeta revela suas metalurgias retorcendo os aços de cada significado. Não demonstra pressa.  Parece que faz e refaz sempre o mesmo verso. Debela agonias no trapézio que é sua invenção de segredos. Num Globo da Morte onde equilibra-se nos desequilíbrios e desafia seus limites. Como uma abelha rainha que faz e desfaz seus motivos. Ela transforma o poema num espelho de surrealidades. Mira-se no açude permanente das agonias e faz suas escolhas. Sabe que para além da imagem refletida, existe um olhar que consome os dias. Consciente da sua juventude, amplia seu tempo e sua existência em ancestralidades. Percebe que nada é fruto do acaso, mas não apressa o rio. Já percebeu que “ele corre sozinho”, como disse Barry Stevens. Sempre libertária, passeia na equidistância das margens.

Não parece preocupada com reverências programadas. Percebemos a sua consciência crítica dos nossos dias em poemas como “resistir”, onde a poeta reconhece o peso das travessias num tempo de guerras, enfrentamentos e pandemias: “acordo/ sem rito/ do luto/ vivo”. Transforma o substantivo masculino “luto” no verbo unificador das suas múltiplas existências. Sabe que sua condição de mulher num mundo de misoginias e patriarcados exige uma luta irrevogável, uma resistência que vai além do corpo. Resistir é reexistir ao nascer de cada Sol e de cada Lua. Como se o que desaba em cada esquina, o que dorme nas calçadas, o que queima nas florestas, também fosse a matéria prima do seu modo de resistir e reinventar-se em suas trincheiras de mulher múltipla, espelhada no aço reverso do espelho. Como uma ‘tigresa de unhas negras’, reage enquanto o mundo moderno impõe silenciamentos.

Certamente “há uma fome insaciável” revelada em cada verso enquanto a poeta distrai a matéria bruta. Brinca com as palavras, mas não com os pilares do poema. Talvez numa releitura de Maiakovski, vai dizendo para si mesma que “nós polimos as almas com a lixa do verso”. Antes de polir as almas dos leitores e leitoras, Clareanna tomou o cuidado de polir a sua própria. Tirou o pó das entranhas. Burilou seus versos para chegar no que Fernando Pessoa nos diz em O Guardador de Rebanhos: “ser poeta não é uma ambição minha/ é minha maneira de estar sozinho.” Visita sua sempre inevitável solidão, reconhece suas entranhas e segue deixando rastros. Jamais revela o corte nas cicatrizes. Não cobre suas dores com o couro cru da lamentação. Em plena sangria, mostra sua permanente inconformidade. Especialmente com o mundo, mas também consigo mesma: “olhos, boca, tato, vida, mundo.”

Já dizia o poeta mexicano Octavio Paz: “palavras de poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”. É desta forma que Clareanna se despe aos olhares do mundo. Sem medo do que mostra. Ela mesma parece apoderar-se do que sente e vê. Quem a lê, compreende uma poesia que desnuda, mas que também estabelece distâncias. Ao falar de si, a autora reverbera seu tempo, reconfigura permanentemente seu modo de dizer. Desfralda a bandeira de uma geração que sonha e deseja um mundo de igualdades e linguagens conquistadas. Sem a imposição das certezas. Sem as convulsões do que não transborda. Sem as facilidades do que eleva, mas também oprime. Sua poesia agora não é mais apenas sua e ela sabe disso. Clareanna soltou sua alcateia de lobas famintas. Inventou sua rebelião. Como quem se alimenta das próprias feridas para se tornar imbatível. Traduz seus uivos pelas esquinas: “buscou preencher o vazio/ no corpo alheio / umbral em meio fio/ estupidez em copo cheio (eros)” Seus versos revelam bem mais do que as profusões do intimismo. Penetram na turbulência de quem os lê oferecendo generosamente o mapa dos seus esconderijos ao sabor repartido da existência.


CINCO POEMAS ESCOLHIDOS PELA AUTORA

 

a gota

 

a gota escapa da pia

como melodia ritmada

num solilóquio de dia

quebra o silêncio e nada.

 

saudade de casa

 

d’onde o sol corta a neblina

daquelas curvas acentuadas

deste barro em que sou carne

da terra indígena roubada

das linhas que marcam o asfalto

do mato que beira a estrada

do horizonte preenchido de pasto

do deserto verde que desmata

da mistura de nossas falas

das velhas cordas do violão

de todo amor que nos embala

daqueles versos de sua canção.

 

arbítrio

 

palma de cinco traços

carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas

golpeadas pela vida

eis as mãos e os calos

torneadas de danos

pele, unha e cicatriz

minha força motriz

meus caminhos mundanos.

 

a poesia está

 

na ponta da língua

na língua do dedo

no dedo a fonte

na fonte o cerne

no cerne a flor

à flor da pele.

 

terceto

 

acorda vida! Tece

a corda bamba:

tira à tira, fica a trama.

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LAU SIQUEIRA
Foto arquivo pessoal do autor

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS, em 1957. Desde 1985 reside na Paraíba. Publicou oito livros de poemas, participou de diversos projetos e publicações sobre leitura literária. Sua poesia está incluída em antologias no Brasil e no exterior. Atualmente a Editora Casa Verde, de Porto Alegre, possui exclusividade sobre a sua obra e seus livros podem ser adquiridos pelo e-mail casaverde@casaverde.art.br

 

CLAREANNA SANTANA
foto do arquivo pessoal da autora

Clareanna Santana (1987), poeta baiana radicada na Paraíba. Escreve poemas desde a adolescência. "Artéria", livro de poesia recém publicado pela Editora Libertinagem (SP), é seu primeiro livro solo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

VERBO MULHER: HELENA TROUXE O TROMBONE, POR HELENA TERRA

     


V E R B O   M U L H E R|01

HELENA TROUXE O TROMBONE

Por Helena Terra

          “Para diminuir a febre de sentir” é o nome de um livro da Dalva Maria Soares. Comprei e estou ansiosa, embora eu não seja ansiosa, para ler. O Tonio Caetano, um escritor aqui do Sul, escreveu que o livro dela é sobre a coragem de dizer o que se sente. Lembrei na hora do poema, da Adélia Prado, que diz que “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”. Eu acho que até falo sobre o que sinto em alguma medida. E é esse em alguma medida o problema, o espinho que me incomoda. Mais que isso: me fere, pois me silencia. E de silêncio, de viver em uma sociedade permeada pela ausência de diálogo, com homens dizendo sobre o que, quando, até que ponto e de que forma devo existir e falar estou farta. Estou farta em causa própria e, também, das outras mulheres. O silenciamento é geral, faz parte do jogo de dominação e busca pelo poder estabelecido pelo rançoso e malsucedido patriarcado, porque, cá entre nós, o patriarcado é uma máquina primitiva e feroz de criar desigualdades e intimidações. Vou dar um exemplo: 

        Não faz muito tempo, um namorado me disse em tom de ameaça: Helena, não me incomoda! E por que disse? Não faço ideia. Não havia acontecido nada, não estávamos em conflito. Pelo menos, eu não estava. Na verdade, deitada no sofá de sua casa, eu, quieta e satisfeita, lia um romance. Se algo desagradável estava acontecendo, esse algo acontecia, cem por cento, na cabeça dele com as questões dele. Questões que eu nunca soube direito quais eram por diversas razões, sendo a principal a de que ele não aceitava falar sobre suas dificuldades e equívocos de qualquer ordem comigo. Não sei se com alguém. O que sei é que elas alteravam o seu humor e o autorizavam a agir no campo das hostilidades. Eu não tenho uma natureza hostil e sou bem-educada. Recebi e introjetei a perigosa boa educação dada às mulheres, e falo perigosa, porque ela, volta e meia, serve à perpetuação da verticalidade das relações entre casais heterossexuais. Cabe à mulher ser compreensiva e gentil. Cabe à mulher ser generosa com o seu homem. Cabe a ela se calar e digerir, como se fosse natural, a agressividade masculina.

           Nos últimos anos, tenho cruzado com homens mais agressivos do que eu costumava. O discurso sexista propagado pelo senhor que está à frente do país, não tenho dúvida, resgatou e reforçou, mesmo entre os homens já mais civilizados e democráticos, comportamentos e falas discriminatórias e opressoras. De certa forma, houve uma recaída em direção aos ancestrais que animalizavam suas companheiras. De certa forma, o botão do protagonismo masculino foi acionado como se vivêssemos na época do Brasil colônia, aquele culturalmente dividido entre mulheres brancas e negras, sinhazinhas e escravas, todas igualmente ultrajadas embora de diferentes formas, sendo as mulheres negras em uma escala ainda maior e mais destrutiva de violência. As mulheres negras são mais agredidas e inclusive estupradas até hoje. “Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, é importante observar o grupo que está mais suscetível a ela, já que seus corpos vêm sendo desumanizados e ultrassexualizados historicamente”, Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, ressalta. Eu sou uma mulher branca. Nessa nossa pirâmide de opressão e ofensas, recebo uma cota um pouco menor de dor. Mas recebo também. Ou recebia. Bati o meu martelo e inaugurei a minha era Bye Bye Autoritário enquanto não chega a de Aquário.

          O último homem que me disse, sim, voltei a ouvir a frase Helena, não me incomoda, caiu da própria altura em tempo recorde. Meu detector de toxicidade disparou na mesma hora. Não há mais espaço na minha vida para abusos de qualquer natureza. Como também não há mais cegueira. Vejo a violência psicológica com clareza por mais que ela seja imaterial. Se eu estivesse dentro do livro “Ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago, me candidataria ao papel de guia e não de cega.  A violência psicológica contra as mulheres, assim como o racismo, também é estrutural, vai além da misoginia, sendo que por ser invisível, acaba se tornando não denunciável e não sendo denunciável, também não se torna punível. Mas, de qualquer forma, je t’accuse! Sim, a ti e a qualquer um em que sirva a carapuça, porque a carapuça serve a muitos. Serve também àqueles que se omitem e desculpam os seus amigos quando os veem sendo prepotentes, injustos, desonestos e cruéis com uma mulher.

         Me disse um amigo, escritor a quem admiro, que isso, essa boa vontade entre iguais, se deve à brotheragem, o sentimento gratuito de simpatia de um homem para com outro homem. Sentimento gratuito mesmo porque ser simpático a alguém violento não é justificável. Já uma amiga, escritora a quem também admiro, chama isso de “passar pano”. “Os homens passam pano para os homens”, ela diz. Mas eu não sou homem, portanto vou torcer o pano até não restar mais uma gota de água, sujeira ou mágoa. Violência gera mágoas. Eu guardo algumas, principalmente, por não me expressar e não ter enfrentado os agressores com que me deparei, alguns com alta competência para a destruição.  No livro “Pandemonium”, do Zeca Fonseca, o livro que mais gosto de ler depois do “Lavoura Arcaica”, do Raduan Nassar, Lemok, o protagonista, conta que, na tentativa de minimizar as frustrações e dores que sentia, acabava por fazer as coisas de um jeito que o fazia sofrer ainda mais. Ou seja, enlameando a vida de um modo autodestrutivo. Eu, sinceramente, acho o direito de autodestruição super legítimo. O problema é que existe o autodestrutivo da espécie terrorista.

          Espécie terrorista? Explico: o autodestrutivo terrorista é aquele homem que explode bombas em vez de tomar um silencioso copo de cicuta e depois, diante dos estilhaços, corpos e sentimentos atingidos de quem estava perto, normalmente a mulher que o estima, ainda se vitimiza quando ela se recusa a virar cinzas junto com ele e vai embora. Aí, em vez de pensar sobre si mesmo, o que fez, se desculpar e tentar uma reparação, o terrorista se enche de raiva como se se enchesse de dignidade e fala grosserias: sua opinião sobre mim não me interessa. É claro que não interessa. Todo mundo sabe o quanto Narciso acha feio o que não é espelho e o quanto não conhece remorso. Narciso, o do mito, até onde sei, via em seu reflexo algo encantador. O que não é o caso da maioria. A maioria dos narcisos contemporâneos vê a sua própria brutalidade e os seus próprios fracassos. E, para lidar com eles, é óbvio, que coragem e humildade são itens necessários. Quem não se vê, não se transforma. Segue viciado em si mesmo. Não conheço pior adição do que essa. Ela está por detrás de todas as outras. O viciado sempre encontra uma justificativa para o que faz e diz qualquer coisa para manter-se drogado. Até rouba.

          No último verão, uma mulher, em estado de estresse, me procurou em uma rede social. Tinha sido roubada por um homem com quem convivi anos atrás e estava muito confusa. Segundo ela, um dos fatores que tinham contado a favor de seu interesse por ele era o dele ter tido um relacionamento comigo. Julguei ele por ti, Helena, me disse, comecei a sair com ele pensando que ele fosse bacana como você. Eu sabia que ele não era. Roubou também a mim. Mas como advertir as outras mulheres sobre os homens que conhecemos?  Nesse ponto também vivemos um silenciamento e um aprendizado. Falo por mim. Já entendi que mesmo que andemos em pares, seguimos sendo cada um cada um. Não é porque a ex de um fulano é uma mulher incrível que ele também é. E já entendi que devo soltar o verbo, dizer o que sinto, como escreveu o Tonio Caetano a respeito do livro da Dalva Maria Soares. E o que sinto é que devo, doa a quem doer, tocar o trombone de Asdrúbal. Fazer barulho. Reagir. Incomodar. E por falar em Asdrúbal, esse era o nome do meu avô paterno. Não foi um homem legal. Depois de quarenta e três anos tratando minha avó como uma serviçal, a abandonou. Perguntei a ela o porquê. Respondeu: por um só menos, netinha. Acho que não. Meu pai foi vê-lo em seu derradeiro momento, e pensou em dizer te amo, velho. Não conseguiu. Não era verdade. E sem a verdade é tudo de mentira.

@helenaterracamargo


ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS, POR ALE HEIDENREICH




 ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS |01


Por Ale Heidenreich

🌶 ATRÁS DA PORTA 🌶



♡ Há amores que esvaziam.
Se não preenchem,
vazios são. 
A.H.♡

Fez sexo sem amor, mas com vontade. Só queria mesmo era que lhe fizesse ter um orgasmo. Dos grandes! Falava-lhe ao ouvido palavras ordinárias que excitavam mais a ela que a ele. Mas esse era o seu objetivo.

Ela estava quase alcançando o ápice da loucura, quando ele interrompeu o ato e a mudou de posição. 

“─ Ódio! Quem ousa me roubar o orgasmo? – Filho da puta!” Pensou.

E, enquanto ele a torturava com aquela posição desconfortável e dolorosa, veio uma frase em sua cabeça que a fez lembrar que não é obrigada a nada: “Homem que fode mal, tem que saber que faz sexo ruim!” E foi aí que o interrompeu também e disse: ─ Não meu querido, eu quero é aquela outra posição que eu estava! E é assim que eu vou gozar!”

Encostou-se e o puxou pra cima de si. “­─ É assim que eu quero! Você entre as minhas pernas!”

E o apertou tanto, o beliscou tanto! E lhe falou tantas putarias aos ouvidos! E lhe mordeu tanto as pequenas orelhas. E quando o bendito, merecido e sagrado orgasmo veio, quase morreu sufocada com os próprios gritos contidos!

A porta da varanda do quarto de hotel, no primeiro piso, que dava para um grande terraço, estava aberta, e abria-se para um lindo parque verde. Seus costumeiros gritos poderiam ter chamado a atenção dos passantes e distraídos comensais, que degustavam suas comidas e bebidas no terraço logo abaixo, na calçada do hotel.

Deixou um “sorriso Mona Lisa” estampar-se nos cantos de sua boca, imaginando as sirenes da polícia, carros do bombeiro e da ambulância, depois de ter seu orgasmo denunciado como crime de conduta moral ou atentado ao pudor. Riu de si mesma...

Mas, isso era só um reflexo do pós-orgasmo, onde se pensava em bobagens ou em mais nada, quando se tinha um braço aconchegante para o repouso póstumo.

Olhava as cortinas brancas esvoaçantes, sob o sol de finalzinho de tarde. Era bucólico. Parecia cena de filme de época: cortinas finas ao vento. A brisa balançando uma guirlanda rodopiante de cristal. O sol morno. Os pássaros cantarolando. O bosque no parque. O céu azul.

Mas ali não existia carícias nem repouso em abraço. Só um olhar pidão e carente, desejoso do brinquedo prometido. Fez-se de difícil, mas ao fim cedeu e não tirou o doce da boca daquela criança.

Ele lambuzou-se todo naquele prazer de menino-homem-carente, e ela, ao final, contentou-se em ouvir a frase que declarava o seu triunfo:

“─ És muito gostosa!”

Conversaram sobre coisas sem importância. Ducharam-se, como que para limpar a impureza impregnada daquele pecado. “─ Deus tá vendo!” Ouvia dela mesma. “─ Deus perdoa!” Dizia para ela mesma.

Trancaram o quarto atrás de si, e colocaram a chave sobre o balcão vazio daquele hotel discreto e aconchegante. Saiu desfilando “a la madame”, com seu chapéu e vestido pretos, do mesmo modo como entrou.

Entrou no carro do rapaz e, momentos depois despediram-se. Cada um tomou a sua estrada.

O resto, ficou atrás da porta.

Não era puta e nem vadia. Era mulher.


Ale Heidenreich
Foto do arquivo pessoal

Ale Heidenreich é brasileira radicada na Alemanha desde 2004, mas segue incondicionalmente apaixonada pelas suas origens, Recife/PE. Seus poemas encontram-se registrados em diversas antologias e coletâneas espalhadas pelo Brasil e Europa.  É nas palavras que se encontra, e através delas conecta-se ao seu interior, externando, em forma de poesia, os sentimentos contidos.

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

  Clique na imagem e acesse o Edital II Tomo-2024 CHAMADA PARA O EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS: CORPO & MEMÓRIA O Coletivo Enluar...