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terça-feira, 24 de janeiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: IN(-)VERSOS DO MEU VERSO, POR RITA ALENCAR CLARK


IN(-)VERSOS DO MEU VERSO - A SAGA DO LIVRO AZUL PERDIDO


           Quando recebi o chamado de Marta Cortezão ao presente projeto, de pronto lembrei do meu livro perdido por 25 anos, bodas de prata, portanto; mas para falar sobre ele precisaria retornar ao ponto de retomada da minha escrita, o que ocorreu quando estava concluindo minha pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo na PUC-Rio, concluída no ano de 2008. Evidentemente, para receber o certificado, precisaria escrever a monografia, e aí estava todo o problema. Voltar a escrever.

Em 2006, quando dei início ao curso, meu casamento estava entrando na primeira e grande crise, 10 anos de um casamento conturbado, mas, de alguma forma, feliz. Dois filhos pequenos e uma filha jovem adulta do primeiro casamento. Dava pra levar, no malabarismo emocional, no foco, atenção plena. Bem, resolvi que estava na hora de retomar minha carreira de escritora, renegada desde que se deu o sumiço do “livro de capa azul” como ficou conhecido na casa paterna. Sim, havia dado ao meu pai, escritor e poeta, a “boneca” datilografada para que fizesse as devidas correções, revisões etc. Ingenuamente, coisa que jamais me perdoei, não tirei cópia, numa era que não havia “nuvem”, nem arquivos de textos confiáveis… foi perdido entre os manuscritos tantos de meu pai quando a família mudou-se para um novo endereço. Nunca mais foi visto nem falado, o “livro azul da Rita” virou tabu, incômodo, inconveniente, prova viva da (des)organização acumulativa que imperava no seio familiar. Por anos não pude falar, tocar no assunto, tive que engolir o choro, “aguar o bom do amor” e seguir em frente. O pai, poeta, constrangido e vencido, nada dizia, sabia muito bem da minha dor, já tendo livro inédito perdido também…dor e desolação. Parei de escrever!

Foram anos de negação e isolamento, da escrita bem dizendo, porque a vida “de fora” bombava, explodia em aliterações, antíteses e plot-twists! Dez anos, especificamente, dez anos me recusando a escrever. Acho que por isso, depois da explosão da primeira crise conjugal, resolvi voltar a estudar, queria retomar de um ponto que julgava ser a minha grande recompensa, me reconhecer como escritora, afinal. Foram 18 meses de luta contra o machismo e a intolerância de meu marido, que entre sabotagens emocionais e ironias, alegava que jogava dinheiro fora com esse “cursinho de pintar porcelana”, como ele gostava de referir-se a minha especialização. Na verdade, tinha ciúmes, talvez uma ponta de inveja da minha coragem; por posse, queria-me recatada e do lar, eu queria correr com os lobos…assim fui levada pelo perigo, pela determinação e coragem. Morava na Barra, a PUC, na Gávea, tinha o Pires e o Baixo Gávea, tinha a liberdade de interagir fora da bolha. Todas as 3as. e 5as. estava lá, firme, não me deixei intimidar. A filha mais velha fazia Direito noturno, também na PUC, íamos juntas, uma farra deliciosa, inesperada, fazer faculdade junto com a filha! Não preciso dizer das brigas e confusões, armadas pelo marido possessivo, que precederam as minhas saídas de casa. Mas, com filhos cuidados, alimentados e supervisionados por uma eficiente babá, o mundo, naquelas noites de terça e quinta, era meu, só meu!

Fiz amizades intensas com colegas e professoras, deixei o medo de escrever de lado e me joguei nas narrativas, contei histórias, fiz poesia, li muito, descobri universos inexplorados e inóspitos, faz parte, não lemos apenas o que gostamos, fui confrontada, exigida, resgatada, enfim, quebrei a casca embrutecida que esmagava minha sensibilidade adormecida e rompi a crisálida.

Não raro precisava passar fins de semana imbuída em trabalhos acadêmicos, prazos e apresentações, numa dessas ocasiões já no final do curso, prestes a entregar a monografia, prestes a ter um “passamento”, como dizia minha avó quando queria nos assustar: “...fiquem quietos, parem de brigar, senão a mãe de vocês vai ter um passamento!”, entrei em pânico, achei que não daria conta diante às demandas, mas não tive o tal do “passamento”. Naquele estado catártico encontrei uma bolha de referência para respirar, lembrei de Clarice Lispector, estava lendo a sua biografia… lembrei, especificamente, da foto dela com a máquina de escrever no colo, o cinzeiro ao lado, a folha de papel engatilhada no rolo, o olhar lânguido e, imagino, o caos a sua volta! Vamos, eu disse a mim mesma, se ela conseguiu você também consegue! Para isso servem as referências, tinha que acreditar naquilo, era minha única chance. Terminei o manuscrito.


[arquivo da autora-com os pais]
Naquele ano, 2008, meu pai ainda estava bem e ajudou-  me com algumas partes do texto, na verdade achei um meio de resgatar uma história que era dele também, afinal o título do meu ensaio/monografia era “Milton Hatoum - Um breve olhar pelo Oriente-Amazônico”, a narrativa travava um diálogo entre "Relato de um certo oriente" de M. Hatoum e a obra “A casa do tempo” de outro poeta Amazônico chamado Jorge Tufic também, como Hatoum, de origem Libanesa. Essa busca e reminiscências ocuparam muitas das nossas tardes, a alforria concedida pelo marido que me deixava em paz, era uma brisa suave que invadia minha existência naqueles momentos…ríamos, meu pai e eu, das histórias contadas por Tufic, história de juventude, ambos eram amigos-irmãos, saíram de Manaus juntos aos 20 e poucos anos para descobrir o mundo, pelo bem e pelo mal, pela poesia de certo, fizeram história e hoje são Imortais da Academia Amazonense de Letras. Em contrapartida, contava-lhe das aulas que havia tido com Milton Hatoum na UFAM, em uma Manaus dos anos 80. Ele, empolgado, só dizia: “mas minha filha, isso é uma obra de criação… tem que ser publicado!” – Calma pai, ainda preciso concluir a monografia…e tirar 10! Não sabíamos, mas esse foi nosso último momento juntos, inteiros, vibrantes, onde a poesia que corria nas nossas veias vazava para o papel, derradeiramente. Ele se foi em 2011, mas desde 2009 a vida drenava-lhe as forças do corpo, o mal de Parkinson tirou-lhe o prazer da escrita à mão, assim como o prazer daqueles 3 chopes à beira mar. Tirei 10, concluí a “pós” e o livro foi publicado pela editora do Tufic, que cheio de gratidão, providenciou tudo. Não teve lançamento, a doença dele agravou-se, idas e vindas ao hospital, cirurgias delicadas, tudo foi feito…ele se foi levando os últimos versos de um soneto inacabado, uma quadra de decassílabos, ditados em transe pelo efeito da morfina…transcendeu.

Rita Alencar Clark com Milton Hatoum/arquivo autora

Rita A. Clark e filhos/arquivo autora

Voltei a escrever com fúria e dor, fiz versos para rasgar o peito, mutilar a dor, enfrentar a besta nos olhos! Nada podia me parar agora, nem eu mesma. O casamento acabou, os filhos salvaram-se de ver o pior, mas eu não, vi a fúria do homem possuidor e possuído, quase perdi a vida e a razão. Saí de casa com os hematomas, no corpo e na alma, mas levando o que era mais valioso, os filhos, os livros e os gatos, intactos.

Hoje, 12 anos após esses eventos, ainda sinto um torpor pela agressão sofrida em alguma parte recôndita do meu corpo, de vez em quando ela grita, para me acordar, me sacudir. Para não me acomodar.

Lembram do “livro de capa azul” lá do começo? Ele reapareceu durante a pandemia…minha irmã, resolveu abrir caixas de documentos em busca de algo importante e ele saltou do limbo de onde se encontrava, para este espaço/tempo, vindo de algum multiverso. Postou no grupo: “Achei o livro perdido da Rita!” - Obrigada, paizinho!

O livro de capa azul tem título: “In(-)versos do meu verso", título forjado a quatro mãos, antes de viajar pelo incognoscível. Ele foi revisado, atualizado e agora espera a hora de ser publicado, após longa viagem. Despeço-me desta viagem, agradecendo sua companhia, com dois poemas do meu livro-tesouro azul:


Espelho De Alice

 

Um dia tive um sonho

Cavalo solto, crinas ao vento

Luz de luar, luar de sangrar

A guiar-me trôpegos os pés

Bosques meus, tendas minhas

 

Escudo de Perseu oblíquo

Noite travestida de sol

Bocas em notas noturnas

Espelho invertido de Alice.

 

Quem vem me buscar?

Sequestrei-me do sonho

Crime inafiançável, hediondo

Forasteiro de além-pátria!

 

Busquei-me entre os espelhos

Sem me encontrar em nenhum

Estilhaços de mente-cuore

Cinzas de amor destratado

 

E já me tardo na dor...

Vazio de bocas e vozes

Bar aberto, copos vazios

Peitos outrora plenos e meus

Hoje negro e frio acepipe.

* _ *  * _ *  * _ *  

 

Lágrimas na chuva

 

Lá fora

os ventos levantam

Árvores e rios, levam embora

Pedaços de troncos e plásticos vazios

Escoam nossos dejetos os ventos vadios

Lá fora

o frio úmido da solidão

Varre corpos e veias expostos pelo

Caminho encharcado; roupas, calçadas, encostas ocas,

Destratados corações e bocas.

 

E eu aqui, dentro de mim,

Quente e acomodada em meu silêncio

Transbordando em aflição no suave

Encosto de almofadas macias.

Penso... Penso e me incomodo!

Estou sendo poupada de quê?

Para quê? Tenho pena, sim pena!

É triste ter pena, ter pena e compaixão

Não me elevam a posição superior!

Tenho pena de tudo que não faço,

Do meu medo, de não me envolver,

De me conformar...

Tenho tanto medo de ter pena de mim!

 

Lá fora

os ventos sopram fortes ainda

Já arrebataram esperanças e vidas

Já destruíram pontes que ligavam

Caminhos a caminhos de volta.

Lá fora a água que dá origem

Lava e leva embora gente aos cacos,

Destinos interrompidos deixando

Vidas em pedaços como um grande

Quebra cabeças desfalcado,

Rejeitado a sua própria sorte.

 

Lá fora,

como aqui dentro,

Um caos se instala de súbito

E eu sozinha, em silêncio,

Recosto-me no escuro e meto-me

Numa viagem metafísica

De Alice alucinada e real,

E deixo-me ir, em lágrimas,

Encontrar o sono do desassossego.

 * _ *  * _ *  * _ *  

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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

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