Foram anos de negação e isolamento, da escrita bem dizendo, porque a vida “de fora” bombava, explodia em aliterações, antíteses e plot-twists! Dez anos, especificamente, dez anos me recusando a escrever. Acho que por isso, depois da explosão da primeira crise conjugal, resolvi voltar a estudar, queria retomar de um ponto que julgava ser a minha grande recompensa, me reconhecer como escritora, afinal. Foram 18 meses de luta contra o machismo e a intolerância de meu marido, que entre sabotagens emocionais e ironias, alegava que jogava dinheiro fora com esse “cursinho de pintar porcelana”, como ele gostava de referir-se a minha especialização. Na verdade, tinha ciúmes, talvez uma ponta de inveja da minha coragem; por posse, queria-me recatada e do lar, eu queria correr com os lobos…assim fui levada pelo perigo, pela determinação e coragem. Morava na Barra, a PUC, na Gávea, tinha o Pires e o Baixo Gávea, tinha a liberdade de interagir fora da bolha. Todas as 3as. e 5as. estava lá, firme, não me deixei intimidar. A filha mais velha fazia Direito noturno, também na PUC, íamos juntas, uma farra deliciosa, inesperada, fazer faculdade junto com a filha! Não preciso dizer das brigas e confusões, armadas pelo marido possessivo, que precederam as minhas saídas de casa. Mas, com filhos cuidados, alimentados e supervisionados por uma eficiente babá, o mundo, naquelas noites de terça e quinta, era meu, só meu!
Fiz amizades intensas com colegas e professoras, deixei o medo de escrever de lado e me joguei nas narrativas, contei histórias, fiz poesia, li muito, descobri universos inexplorados e inóspitos, faz parte, não lemos apenas o que gostamos, fui confrontada, exigida, resgatada, enfim, quebrei a casca embrutecida que esmagava minha sensibilidade adormecida e rompi a crisálida.
Não raro precisava passar fins de semana imbuída em trabalhos acadêmicos, prazos e apresentações, numa dessas ocasiões já no final do curso, prestes a entregar a monografia, prestes a ter um “passamento”, como dizia minha avó quando queria nos assustar: “...fiquem quietos, parem de brigar, senão a mãe de vocês vai ter um passamento!”, entrei em pânico, achei que não daria conta diante às demandas, mas não tive o tal do “passamento”. Naquele estado catártico encontrei uma bolha de referência para respirar, lembrei de Clarice Lispector, estava lendo a sua biografia… lembrei, especificamente, da foto dela com a máquina de escrever no colo, o cinzeiro ao lado, a folha de papel engatilhada no rolo, o olhar lânguido e, imagino, o caos a sua volta! Vamos, eu disse a mim mesma, se ela conseguiu você também consegue! Para isso servem as referências, tinha que acreditar naquilo, era minha única chance. Terminei o manuscrito.
[arquivo da autora-com os pais] |
Rita Alencar Clark com Milton Hatoum/arquivo autora |
Rita A. Clark e filhos/arquivo autora |
Voltei a escrever com fúria e dor, fiz versos para rasgar o peito, mutilar a dor, enfrentar a besta nos olhos! Nada podia me parar agora, nem eu mesma. O casamento acabou, os filhos salvaram-se de ver o pior, mas eu não, vi a fúria do homem possuidor e possuído, quase perdi a vida e a razão. Saí de casa com os hematomas, no corpo e na alma, mas levando o que era mais valioso, os filhos, os livros e os gatos, intactos.
Hoje, 12 anos após esses eventos, ainda sinto um torpor pela agressão sofrida em alguma parte recôndita do meu corpo, de vez em quando ela grita, para me acordar, me sacudir. Para não me acomodar.
Lembram do “livro de capa azul” lá do começo? Ele reapareceu durante a pandemia…minha irmã, resolveu abrir caixas de documentos em busca de algo importante e ele saltou do limbo de onde se encontrava, para este espaço/tempo, vindo de algum multiverso. Postou no grupo: “Achei o livro perdido da Rita!” - Obrigada, paizinho!
O livro de capa azul tem título: “In(-)versos do meu verso", título forjado a quatro mãos, antes de viajar pelo incognoscível. Ele foi revisado, atualizado e agora espera a hora de ser publicado, após longa viagem. Despeço-me desta viagem, agradecendo sua companhia, com dois poemas do meu livro-tesouro azul:
Espelho De Alice
Um dia tive um sonho
Cavalo solto, crinas ao
vento
Luz de luar, luar de
sangrar
A guiar-me trôpegos os pés
Bosques meus, tendas
minhas
Escudo de Perseu oblíquo
Noite travestida de sol
Bocas em notas noturnas
Espelho invertido de
Alice.
Quem vem me buscar?
Sequestrei-me do sonho
Crime inafiançável, hediondo
Forasteiro de além-pátria!
Busquei-me entre os
espelhos
Sem me encontrar em nenhum
Estilhaços de mente-cuore
Cinzas de amor destratado
E já me tardo na dor...
Vazio de bocas e vozes
Bar aberto, copos vazios
Peitos outrora plenos e
meus
Hoje negro
e frio acepipe.
Lágrimas na chuva
Lá fora
os ventos levantam
Árvores e rios, levam
embora
Pedaços de troncos e
plásticos vazios
Escoam nossos dejetos os
ventos vadios
Lá fora
o frio úmido da solidão
Varre corpos e veias
expostos pelo
Caminho encharcado;
roupas, calçadas, encostas ocas,
Destratados corações e
bocas.
E eu aqui, dentro de mim,
Quente e acomodada em meu
silêncio
Transbordando em aflição
no suave
Encosto de almofadas
macias.
Penso... Penso e me
incomodo!
Estou sendo poupada de
quê?
Para quê? Tenho pena, sim
pena!
É triste ter pena, ter
pena e compaixão
Não me elevam a posição
superior!
Tenho pena de tudo que não
faço,
Do meu medo, de não me
envolver,
De me conformar...
Tenho tanto medo de ter
pena de mim!
Lá fora
os ventos sopram fortes
ainda
Já arrebataram esperanças
e vidas
Já destruíram pontes que
ligavam
Caminhos a caminhos de
volta.
Lá fora a água que dá
origem
Lava e leva embora gente
aos cacos,
Destinos interrompidos
deixando
Vidas em pedaços como um
grande
Quebra cabeças desfalcado,
Rejeitado a sua própria
sorte.
Lá fora,
como aqui dentro,
Um caos se instala de
súbito
E eu sozinha, em silêncio,
Recosto-me no escuro e
meto-me
Numa viagem metafísica
De Alice alucinada e real,
E deixo-me ir, em
lágrimas,
Encontrar o sono
do desassossego.
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