domingo, 17 de agosto de 2025

FERAS SOLTAS, DE LULIH ROJANSKI

ENTRE FERAS E SILÊNCIOS

Por Marta Cortezão

Arquivo da autora
Lulih Rojanski nasceu no Paraná. É descendente de imigrantes poloneses que vieram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX e tiveram a sorte de escapar do Holocausto. Em 1984, migrou para a Amazônia e esqueceu-se do caminho de volta. Era muita estrada para esconder as migalhas de pão. Graduou-se em Letras, habilitou-se em Língua Portuguesa e Literatura. Trabalha em sala de aula há 28 anos. Há mais de 30 escreve contos e crônicas que desde o princípio foram publicados em diversas coletâneas. No Estado onde vive, o Amapá, a autora se destaca pela participação de sua obra em provas de concursos públicos e pelo alcance de sua escrita, que tem feito parte de antologias nacionais e binacionais (Brasil/Portugal). Seus primeiros livros: Lugar da Chuva (crônicas), Abilash (conto). Pérolas ao Sol (crônicas) e Gatos Pingados (contos) foram publicados pela Escrituras Editora (SP). Feras Soltas é seu primeiro romance publicado, o segundo é Amores enterrados no jardim (2025).

Arquivo da autora
O romance Feras Soltas, de Lulih Rojanski, nos conduz ao universo denso e claustrofóbico de Manuela, uma mulher adulta atravessada por seus traumas. Jornalista e revisora em home office para “um jornal semanal subsidiado pelo governo, que circula na capital” do “País”, ela se encontra encerrada em sua jaula. O silêncio que a cerca é mais do que ausência de som: é prisão, é cicatriz, é trincheira. O romance mergulha profundamente nas consequências da violência, da culpa e do isolamento, sustentando uma tensão psicológica que perdura até a última página.

Desde muito jovem, entre 20 e 23 anos, assumiu responsabilidades imensas, sobretudo cuidar do irmão mais velho, Bonifácio, com esquizofrenia acentuada. Mantém-se à tona com seis comprimidos diários de psicotrópicos, respaldados por laudo médico “floreado” que aponta fobia social, depressão severa e “uma agressividade ameaçadora”. O cenário de sua vida é a casa herdada dos pais, Amália e Olavo, dividida com o marido, o americano Samuel e Boni. Entre eles, o vínculo parece ser frágil, sustentado pela necessidade de manter o irmão sob cuidados e por um pacto tácito de não se aprofundar nos abismos alheios.

Três vozes, três labirintos

O enredo se estrutura em três partes, narradas por vozes distintas – Manuela, Sam e Boni –, cada um com sua cadência própria, seu recorte de mundo. A voz de Boni, em especial, flui sem pontuação, no fluxo bruto de quem vê e sente com uma lógica própria.

O romance é atravessado por segredos que resistem a vir à tona: Manuela se fecha nos traumas; Sam carrega o inconfessável; e a esquizofrenia de Boni opera não só como condição clínica, mas também como metáfora da realidade familiar fragmentada e de seu desejo de liberdade, de voltar a ser “fera solta no mundo. A narrativa explora, com intensa carga psicológica, os limites da culpa, do trauma e do isolamento – este, segundo Manuela, imposto pelo estigma da esquizofrenia de Boni, pela descoberta do passado tenebroso de Sam e, por fim, intensificado pela pandemia da covid-19. O entrelaçamento dessas perspectivas vai desmontando, peça a peça, o quebra-cabeça de silêncios que sustenta a história.

Arquivo da autora
‘dragões de primavera’: bússola simbólica

Entre as camadas do romance, destaca-se a simbologia dos “dragões de primavera” como metáfora para a transformação desejada por Manuela: sair do adormecimento emocional e reencontrar o impulso vital. A epígrafe de Hilda Hilst já antecipa essa busca por redenção:

Pai, este é um tempo de espera. / Ouço que é preciso esperar / Uns nítidos dragões de primavera, / mas à minha porta eles viveram sempre, / Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Na primeira parte do livro, em forma de diário com certas lacunas de tempo, Manuela revela o peso do corpo marcado por traumas e espera por forças renovadoras que nunca chegam. Ela encontra certo alívio no solo e na chuva, tentando dissolver-se “em húmus e barro”, enquanto o passado insiste em assombrá-la.  Sam recorda que a origem desse mito íntimo vem da voz de Amália, mãe de Manuela e Boni:

Foi ela a responsável por sua crença de que os pequenos lagartos que ocorrem pelo jardim são descendentes dos Zmey Gorynych, dragões Zmey sérvio, em particular, que era bondoso e tinha o poder de afastar as tempestades. Ver Manuela deitada no gramado sempre foi comum, mas nunca pude compreender que tenha continuado a gostar dos lagartos, mesmo depois de cada tormenta, cujos efeitos poder nenhum foi capaz de aplacar (p. 117).

Não há dragões nem primaveras

É no diário de Manuela que se encontram as passagens mais cortantes. Sua infância, marcada por abusos cometidos pelo pai, é descrita com imagens potentes. A origem de suas cicatrizes remonta aos oito anos, quando começa a sofrer abusos do pai, Olavo:

Quando o pai me puxa pelos braços e me põe sentada sobre suas pernas, distraindo-me com os pequenos dragões que sobem nas árvores – e sua mão, como uma aranha grande e fria, se arrasta para o interior de minhas pernas infantes – o passado ainda é passado, mas se refugia, inatingível, na profusão de tudo o que se nove na escuridão (p.14).

Os abusos continuam até a adolescência, no desamparo da noite e no medo da jovem que se sente excluída, suja e desacreditada de um deus que não a escuta, não vem em seu socorro, não existe. Essas lembranças, porém, não são narradas de forma linear, mas como fragmentos que retornam de modo imprevisível, tal como na mente de quem sobreviveu a traumas. O silêncio, o medo e a sensação de abandono se erguem então como paredes intransponíveis:

Eu tinha medo de dormir, depois de haver tantas vezes acordado no meio da noite com a aranha grande e pesada passeando por meu corpo. Não tomava banho nua porque o banheiro da casa era vulnerável, e desde os oito anos eu sabia que os mesmos olhos de coiote passeavam pelas frestas. Tinha medo também de gritar por mamãe e abrir em seu coração uma ferida tão grande que nunca mais viesse a se fechar. (p.44)

Minha pele não deixa esquecer a violência silenciosa das investidas das mãos que a usurparam. E lhe impingiram nódoas profundas. Tão profundas que pressinto lacerações nos órgãos internos (p.87).

A imagem pública do “pai de família” oculta o machista, misógino e abusador que corrói silenciosamente o lar. Por trás da fachada respeitável, Olavo instala o medo, a vergonha e o silêncio que aprisionam Manuela desde a infância. A partir desse núcleo de violência, sua vida passa a se organizar entre afastamentos forçados, responsabilidades precoces e breves tentativas de respiro.

Do refúgio às desilusões

Em Nélson, amigo de Boni (namorado de Lili), a jovem Manuela encontra um breve refúgio, mas que se evapora muito rapidamente deixando também cicatrizes profundas e o sabor amargo da desilusão:

Na última tarde em que veio à nossa casa, Boni não abriu a janela para se despedir, mesmo sabendo que o amigo ia para outro país, e eu ainda não sabia o que havia se passado ao aceitar seus beijos de despedida.

Nélson estava distante e lacônico, cheguei a ter a ilusão de que fosse a dor da separação. Só depois que se foi, entendi que era vergonha. Na despedida, disse-me apenas que a vida era ainda muito nova em nossas mãos para sabermos o que fazer com ela (p.46).

Não é Manuela que nos revela o motivo da “vergonha” de Nélson, mas Boni quando expressa o desejo de voltar no tempo e dizer que sabe que foi traído pelo próprio amigo:

eu fui enganado pelos caçadores de feras que me faziam ver coisas medonhas eu fui na rua no meio da tormenta e vi as criancinhas mortas debaixo do jacarandá caído vi os lagartinhos do quintal virando dragões que engoliam a Mana vi o Nélson rodopiando com a Lili no cinema beijando a Lili atrás de uma névoa de cigarro fininho onde já se viu meu melhor amigo roubar minha namorada (p.155).

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O colapso familiar e o peso

O diagnóstico de Boni abala profundamente Amália, que, juntamente com o pai, depositava nele todas as expectativas de sucesso. Manuela carrega, assim, não apenas a responsabilidade prática dos cuidados, mas também a sombra de não ser reconhecida como alguém em que não vale apostar:

A família não era mais um fiapo do que havia sido, segundo Manuela, em seus desabafos. Bonifácio seria “o grande homem da família”. Quando me contou sobre o sonho dos pais, Manuela sentia-se amargurada. Não porque não teriam mais um grande homem na família, mas porque nunca apostaram que ela poderia ser uma grande mulher (Parte II, p.111).

Boni, por sua vez, expõe, a seu modo, a pressão sofrida por parte do pai e a rivalidade velada que se estabelecia entre os irmãos, entre homem e mulher:

O pai não gostava de mim que nem a mãe que passava a mão na testa e no cabelo o pai olhava de cara feia quando eu deitava no colo da mãe dizia moleque mimado olhava de cara feia quando eu tinha medo de cachorro do tio e quando eu pedia para a mãe deixar a luz acesa a cara do pai era sempre feia não podia correr e abraçar não podia chorar não podia ficar com febre nem com dor de barriga não podia brincar com menina assistir filme de amor novela na televisão só a Mana que podia a Mana podia faltar na escola podia comer a moela e a coxa podia até matar gato que ninguém falava nada nem tinha cara feia pra ela (p. 152).

Marcada por essa conturbada relação com a família – e sobretudo pela figura de Olavo –, Manuela procura, em alguns momentos, escapar ao peso do passado. A viagem com um grupo de hippies surge então como tentativa de suspender os traumas, um movimento de busca por liberdade e de ensaio para uma vida possível fora do círculo opressor da casa. Esses lampejos de autonomia para além do medo oferecem-lhe um raro respiro, como ela mesma reconhece ao recordar a experiência:

Sinto saudade do tempo que passei com os hippies anacrônicos e fui hippie também. Foi um ano que me colocou no eixo da vida, um tempo em que comecei a descobrir quem era a pessoa por baixo da casca, e pela primeira vez não tive medo de ser eu mesma. Nenhuma pílula psicotrópica fazia parte da minha rotina. Mas tive que voltar para casa porque a família não podia ficar tanto tempo sem reforço para cuidar de Boni (p. 66).

Na universidade, Manuela conhece Sam, e os dois vão se aproximando cada vez mais. No entanto, o retorno à casa traz grandes problemas. É pela narrativa de Sam que percebemos a coragem de Manuela ao contar à mãe sobre os abusos praticados pelo pai, ainda que Sam não soubesse nada sobre o assunto. Nesse mesmo dia, Amália sofre um enfarto fulminante.

A convivência com o pai torna-se insuportável: Manuela o odeia e desejo que ele morra, lembrando também de quando, criança, desejou a morte de um gato que acabou falecendo. Todo esse peso de culpa a acompanha em todos os momentos, inclusive quando chega a desejar a morte de Nélson. Mesmo após o falecimento do pai, um ano depois da mãe, a culpa permanece, silenciosa e insistente, como sombra que se recusa a deixá-la.

Ruptura: a fuga de Boni

No 60º dia da narrativa de Manuela, a fuga de Boni causa uma reviravolta na rotina das personagens. Esse acontecimento quase a desestabiliza, mesmo com suas pílulas de psicotrópicos em dia. Esse estalo emocional da protagonista é visto com espanto por Sam:

Sam estranha me ver socando as próprias pernas. “O que é isso?”, pergunta, e no seu rosto há o espanto de ter reconhecido sinais da mulher adormecida. Ajeito o vestido em desalinho, enxugo as lágrimas que penso haver, mas meu rosto está seco e os olhos ardem pelo esforço vão de chorar. Há quanto tempo não choro? (p.69)

Em seu diário, Sam também registra o acontecimento e o seu desejo de voltar a conviver com a Manuela passional que conheceu na época da universidade:

Foi uma pena ter-se recomposto tão rápido depois de socar as próprias pernas. Por um instante vi a Manuela passional que conheci. Minha reação ao seu impulso a intimidou, trouxe de volta a mulher contida, a mulher que escolheu deixar as emoções adormecidas no sistema límbico (p.98).

Sam vê resquícios da antiga Manuela — “uma alma atrevida” (p. 115) —, mas o que a faz ser uma mulher contida ao lado dele, ainda quando tomada pela aflição da fuga do irmão? Talvez a verdade seja que Sam nunca a tenha conhecido de fato: nem a Manuela de antes, nem a de agora.

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Pandemia: a clausura dentro da clausura

A chegada da covid-19 funciona como um espelho: o isolamento imposto pelo vírus apenas escancara uma reclusão já existente. O confinamento físico soma-se ao emocional, e o livro mergulha ainda mais fundo na introspecção. No caso de Manuela, é também um escudo contra o julgamento social que teme devido à esquizofrenia de Boni, que, por sua vez, é talvez a figura mais ambígua do livro. É a sua fuga de casa, no 60º dia da narrativa de Manuela, que rompe a rotina e obriga todos a enfrentar medos adormecidos. Na voz de Boni, há tanto uma ingenuidade infantil quanto uma lucidez cortante que se deduz de suas próprias palavras:

O melhor cego é aquele que não se conforma de ser cego e tenta enxergar com os outros sentidos o que o olho não consegue eu disse isso pra Mana e ela não prestou atenção ou eu não disse só pensei quero saber o que ela acha porque o cego podia ser ela que não enxerga um palmo na frente do nariz com os olhos da cara mas podia enxergar de outro jeito se quisesse (p. 148).

O romance não se limita ao drama íntimo; ele aponta também para um descaso coletivo. A morte miserável do casal amigo de Boni, dona “Olali” (Eulália) e o marido, durante a pandemia no “País”, dá a Rojanski a oportunidade de inserir críticas diretas à negligência governamental e ao desprezo pela vida humana, como vemos no fragmento:

Os pobres clamam por auxílio do governo, há muitos desempregados, desamparados, despejados, desesperados. O presidente eleito pela maioria responde com piadas de mau gosto, nega a crise de saúde, debocha de quem lamenta a doença, minimiza o sofrimento pelas milhares de mortes e vocifera que somos um país de maricas. Quando é questionado pelo absurdo número de mortes, que coloca o País como um dos mais massacrados pela pandemia, prepara seu melhor ângulo para as câmeras e diz: “E daí? Todos vamos morrer um dia” (p.140).

Esse equilíbrio entre denúncia social e exploração psicológica das personagens é um dos pontos fortes do livro: a história não se perde em panfleto, mas também não se omite diante das violências sistêmicas.

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Sam e o cárcere da culpa

Após a fuga e a morte do casal, Manuela, Sam e Boni tentam retomar o ritmo macilento de suas vidas. Boni se agarra em suas ideias alucinógenas e suas risadas descontroladas. Manuela costura suas ideias com o medo de contrair o vírus e com o fato trágico que seria a morte de um dos três, jogando todas as possibilidades e seus tormentos. Sam continua o trabalhando em seu projeto arquitetônico de uma casa grande no campo, assombrado por seus demônios, seu corpo febril e a tosse incômoda que tenta esconder de Manuela. Sam decide dormir no quarto das velharias e, entre caixas e quinquilharias, Sam reencontra o fio do próprio passado e se dá conta de como Manuela chegou ao seu terrível segredo:

Antes de guardar a caixa, puxo uma folha de papel cujas pontas amareladas aparecem por baixo de um maço de cartas. É uma cópia impressa do retrato falado de um foragido da justiça do condado de El Paso, no Texas, EUA, que circulou pela internet em uma época em que não havia uma câmera fotográfica na mão de cada cidadão, e provavelmente não encontraram uma única fotografia para publicar nos jornais (p. 113).

Sam, o marido, aos 19 anos, assassina a namorada Rose Mary e foge para o “País” onde agora vive. Sua narrativa do crime revela justificativas frágeis e distorcidas e é marcada pela ausência de arrependimento:

Que crime neste mundo não é repulsivo?

...

Sim, sou culpado pela morte de Rose, mas não a teria matado se não acreditasse que havia algo diabólico em seu corpo. Quando entrou em seu quarto para dizer que ia me deixar, a primeira coisa que fiz foi trancar a porta e jogar a chave pela janela gradeada (p. 135).

A presença de Sam no romance não é apenas a de cúmplice no cuidado de Boni, mas a de outro prisioneiro — de sua própria culpa e das mentiras que sustenta para sobreviver. Essa duplicidade acrescenta tensão ao enredo, pois o silêncio que mantém com Manuela ecoa o dela, criando um pacto mórbido de não-ditos:

Nunca vou perguntar a Manuela as razões de seus estranhos hábitos. Se quisesse, teria me falado. Também não lhe falo sobre meus pesadelos (p. 116).

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O retorno dos dragões

No 64º dia, Sam é internado e, após vários dias no hospital, vem a óbito. A morte de Sam marca uma ruptura silenciosa, encerra um ciclo de silenciamentos, mas não resolve todos os nós. Narrada pela própria consciência do personagem (assombrada por Rose Mary), sua morte abre espaço para que Manuela comece a cultivar novas práticas. O luto reabre fissuras, mas é na voz de Boni que vislumbramos tais mudanças: Manuela acorda cedo, põe Angie (The Rolling Stones), assa bolo, retoma as consultas presenciais com o psicólogo, pedala, colhe frutas, prepara sopas. Esses gestos simples ganham peso simbólico, indicando que talvez os “dragões de primavera” finalmente se aproximem:

Coisa mais esquisita é essa música alta desde cedo a Mana está fazendo bolo tem um cheiro gostoso vindo da cozinha será que a Mana pensa que já é Natal será que é aniversário de um de nós? (p.156)

Essa é a música que o cachorro do Nélson ensinou ela gostar sorte que é bonita

Mana agora resolveu que toda semana vai para o psico me deixa trancado em casa só come fruta e verdura vive em cima da bicicleta pedalando parada e por baixo das árvores arrancando tangerina manga abacate (...) toma sopa cor-de-rosa roxa e suco verde diz que é pra limpar o sangue pra voltar a sentir os sentimentos pra gostar de novo do mundo e fazer nascer lágrima eu não sabia que as cenouras as couves os pepinos e os psico tinham tanto poder e depois que ela melhorar vai me levar pra passear não sei onde espero que lá tenha peixe azul (p.157).

Não é redenção plena: é movimento. Os “nítidos dragões de primavera” talvez não cheguem ruidosos; talvez cheguem pela mínima vibração do desejo de voltar a sentir.

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Primavera à vista

Feras Soltas equilibra dureza e lirismo, conjugando trauma íntimo e crítica social. Lulih Rojanski manipula a linguagem com precisão, constrói vozes narrativas que se tensionam enquanto a imagem recorrente dos dragões organiza o romance como horizonte de metamorfose. A leitura incomoda, dilacera e, por isso mesmo, cumpre sua função: nos fazer sentir, pensar e encarar feras — as de dentro e as de fora. A força do livro está em não estetizar a violência nem oferecer soluções fáceis: prefere a verdade incômoda das feras internas, mas abre, no fim, uma fresta de ar — pequena, insistente, necessária.

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ROJANSKI, Lulih. Feras soltas. São Paulo: Patuá, 2023.


Arquivo da autora. Macapá, 2023





A chuva, como nenhum outro fenômeno, cria sensações oníricas em torno das coisas (...) Cada coisa, em seu lugar, é capaz de contar uma história sob os efeitos etéreos da chuva. Humanizam-se.

[Lulih Rojanski, em Feras Soltas]

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Resenha "Terra Úmida" de Myriam Scotti para o "Le Monde diplomatique-Brasil"

 TERRA ÚMIDA, DE MYRIAM SCOTTI

Por Rita Alencar Clark 


Arquivo da autora
O romance de Myriam Scotti, “Terra úmida”, ganhador do Prêmio Literário Cidade de Manaus 2020, na Categoria Regional, tem como tema central a diáspora Judaico-Marroquina no começo do século 20, quando muitos imigrantes vindos do Oriente atracavam no Porto de Manaus, o “Manaus Harbour”. Vinham em busca de refúgio mediante as ameaças de guerra iminente ou perseguições religiosas, em busca de trabalho e prosperidade, mas, principalmente, de liberdade. Sonhos que só no chamado “Eldorado Amazônico” poderiam ser realizados, uma vez que outros parentes já haviam se aventurado e prosperado, o que servia de incentivo a muitos imigrantes, de todas as partes do Oriente e da Europa. Uma longa viagem, sem volta, para muitos deles, que foram seduzidos pela corrida em busca do “ouro negro”. O látex, a borracha, que jorrava em abundância nos seringais da Amazônia longínqua.

A personagem principal dessa narrativa é Syme, matriarca da família, detentora da missão de unir a família em torno dos rituais da religião e da tradição Judaica, enquanto se esforça para compreender, assim como o novo idioma, os mistérios da nova terra prometida, uma terra úmida, capaz de inebriar os desavisados com seu torpor vespertino ou tragá-los para as profundezas de suas águas escuras e insondáveis.    


Arquivo da autora
Abner, o filho mais velho, conduz a primeira parte da narrativa, quando, ao voltar de uma longa viagem pelos rios da Amazônia, reencontra a mãe debilitada em luta com os últimos momentos de vida. Uma vida que ela não escolheu e que só descobriremos os motivos depois de sua partida, através dos Diários deixados na última gaveta da penteadeira…como derradeira oportunidade de mostrar-se como verdadeiramente foi. Sem, contudo, permitir a chance de ser contestada ou condenada pelas escolhas que fez em vida. A descoberta desses diários, na segunda parte da narrativa, e a leitura deles pelos filhos, já criados e adultos, desnudam uma mulher desconhecida, aquela que chamaram de mãe, ou Ima, suas aventuras e tragédias pessoais, a imensa solidão, a luta diária com os sonhos irrealizados, que saqueiam sua alma levando embora, para sempre, o brilho, poucas vezes vislumbrado naqueles olhos, deixando no lugar um amargor insondável, que a acompanhou até o fim. Syme, derrama-se através da escrita, revela-se a si mesma, fazendo-lhe companhia durante as viagens intermináveis do marido e filhos, a escrita dos diários preenche seus dias e noites de espera infinita. Os grandes rivais da vida de Syme: os rios, as longas estradas fluviais, a imensa desolação e saudade do Marrocos, daquela que um dia foi.

O romance nos traz, ainda, uma experiência sensorial/gustativa, uma vez que a narrativa sobre os aromas dos mercados marroquinos se apresenta com suas cores e especiarias, as comidas para os rituais Judaicos e os costumes ancestrais. As festas, as iguarias, as roupas, as tradições, que sobrevivem, plenamente, até os dias atuais. Um legado deixado aos descendentes, mas que todo o povo Amazônico usufruiu, uma “mistura” respeitosa de povos e tradições só possível numa época de grandes navegações e abertura dos Portos.

Abner encerra a narrativa com a terceira parte do romance trazendo um “plot twist” inesperado e magistral, levando o leitor a repensar sua própria aventura, o seu próprio tempo de existência nesta terra.

“(…). É como tenho levado os anos da minha vida, sempre querendo regressar, que nem uma criança à espera de um dia retornar ao útero da mãe. Aprendi quando aqui cheguei que isso se chama saudade, a memória do que não queremos esquecer.” (MYRIAM SCOTTI, 2021:16)


Manaus, 08 de março de 2024.


Rita Alencar Clark

Poeta, contista, cronista e ensaísta Amazonense. Colunista do Blog Feminário Conexões.

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Arquivo da autora
MYRIAM SCOTTI nasceu em Manaus, é formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; é mestre em literatura e crítica literária também pela PUC-SP; com curso de extensão em práticas de leitura e formação do leitor, pela PUC-SP. A partir de 2014, baseada nas experiências com seu primogênito Daniel, estreou como escritora de histórias infantis: O menino que só sabia dizer não (publicação independente); O menino que só queria comer tomate e Quando meu irmão foi embora? (editora Chiado); além do e-book “O menino que não queria dormir sozinho”. Em 2018, estreou na poesia com o título A língua que enlaça também fere (Editora Patuá). Em 2020, lançou um segundo livro de poesia sob o título Mulheres chovem (Editora Penalux), ano em que também venceu o prêmio literário da cidade de Manaus com o romance regional Terra Úmida, publicado em 2021 pela Editora Penalux. Em 2021 lançou o primeiro romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf), o qual foi admitido pelo PNLD 2021 e foi escolhido como paradidático de várias escolas do Brasil, além de ter sido selecionado no edital “Minha biblioteca” de São Paulo 2022, onde constam mais de onze mil exemplares espalhados pelas bibliotecas da capital. Em 2024, lançou o livro de crônicas Tudo um pouco mal (Editora Patuá) durante a Festa Literária de Paraty (FLIP), o título é semifinalista do prêmio nacional Sabiá de crônicas. Também em 2024 foi convidada para os Festivais Literários de Araxá e Paracatu, ambas comandadas pelo produtor cultural Afonso Borges, onde explanou sobre literatura produzida por mulheres no Amazonas. Há três anos é curadora do Festival Literário do centro de Manaus (FLIC), promovido pelo produtor cultural João Fernandes, CEO do Centro Cultural Casarão de Ideias.

sábado, 2 de agosto de 2025

DEUS CRIOU PRIMEIRO O TATU, DE YVONNE MILLER

Por Marta Cortezão 

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Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, de Yvonne Miller, é um livro que reune várias crônicas autobiográficas ambientadas na Aldeia dos Camarás (PE), onde a autora residiu por três anos com sua família. Está dividido em quatro partes: Cheiro de terra nova ao sol, que relata as descobertas e ambientação naquele novo lugar; Com gosto de Cajá, que trata das aventuras, da relação com o lugar e seus personagens; Tempos de chuva e chumbo, que traz relevantes reflexões sobre a relação humanidade e natureza a partir de vivências cotidianas e, finalmente, Ipê amarelo, onde a narrativa alcança o ápice do lirismo como forma de reverenciar essa mata, esse chão que se pisa – um capítulo-oferenda que pede mantra, superação e espiritualidade, pois aqui se encerra um ciclo: a autora se despede da Aldeia do Camarás para aventurar-se por novos caminhos.

A crônica Deus criou primeiro o tatu, que dá título ao livro (parte III), aborda a mitologia Guarani e revela muito sobre a narrativa do sagrado e dos seres sobrenaturais em que este livro nos imerge: “Aprendi que, no dia em que Nhaderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes”. Para Mircea Eliade, “o mito designa uma ‘história verdadeira’ e, sobretudo, altamente preciosa, porque sagrada, exemplar e significativa” (1963, p. 9).  Para que o mundo existisse, o tatu foi imprescindível – a ele coube a função primordial de espalhar a areia pelo globo terrestre, imerso em água, para que se formassem os continentes. Eis uma “história verdadeira”, os continentes estão aí como prova. Quando a autora irrompe o solo sagrado da aldeia, utilizando a força e a leveza da narrativa de uma brilhante cronista para aguçar a curiosidade do leitor, ela funda uma nova Aldeia dos Camarás, cuja sacralidade nos revelará “histórias verdadeiras” com seu viés político, detalhista, descontraído e bem-humorado da realidade que seus sentidos capturam. Eis o livro como prova desta cosmogonia!

A narrativa de Miller experimenta um constante estado de simbiose com os seres da aldeia, como na crônica Vovô flui no fundo quintal, em que a autora reconhece, por seus traços temperamentais, ser neta do igarapé que serpenteia ao fundo de seu quintal – assim como o rio Watu é o avô ancestral dos Krenac. E o que dizer das personagens? Do gato Salém, do cachorro Chico, da lenta esperteza do teju (“Ah, se Luciano soubesse...”), das aranhas, dos morcegos, das formigas 'gigantes', das cobras, do pobre gafanhoto Bárbara Schneider, o peixe atolado, do homem nu... Há muito o que dizer deste universo misterioso. Há também o lado Dark da aldeia, cosmologicamente porque há “as coisas de Yvonne”! Portanto, indico a leitura de Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, um livro atravessado por encantarias, vivo, sensorial e tecido por “histórias verdadeiras”, como se percebe na crônica Aldeia dos Camarás (p. 98-101):

Já’a jaguatá, vamos caminhar!

Assim que ouve o comando, Chico vem correndo, senta do meu lado e empina o focinho para eu colocar o peitoral,

            ─ Muito bem, jaguá-i! ─ elogio.

Eu queria mesmo era ter aprendido tupi, mas o curso era aos sábados de manhã, e o que quero fazer num sábado de manhã, muito mais do que aprender qualquer coisa, é dormir. Logo optei pelo guarani. Não tem a ligação com o Nordeste que o tupi tem, mas meu coração de linguista é fácil de agradar. Foi assim que, durante três meses, passei as noites de segunda-feira sentada em frente ao computador, ouvindo o xamoi contar sobre cultura, lutas e língua do povo guarani. Aprendi que, no dia em que Nhanderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes. Sim, na mitologia guarani, Deus criou primeiro o tatu. Depois, quatro deuses menores para administrar o trabalho na Terra e só depois o homem. Aliás, o homem não, o ser humano. Aprendi também sobre a relação do povo guarani com a natureza, sobre os guardiões da floresta, os espíritos da montanha. E aprendi algumas palavras e frases dessa língua complicada e fascinante, que agora, após o curso, continuo praticando com Chico, meu companheiro de longos passeios.

Enquanto nos afastamos de casa pela rua de terra batida, Chico corre atrás dos gravetos que vou lançando para longe.

Tereó! ─ E ele vai.

Eju apy! ─ E ele vem.

Encontramos o açude calmo. Já vi peixes grandes, jacarés pequenos, cobras, cágados e capivaras nadando naquelas águas, mas hoje se espelham nelas apenas as poucas nuvens brancas do céu. Sedento após a brincadeira, Chico se refresca com a y-y transparente, antes de pedirmos licença aos xondaro e ka’aguy nhe’ para adentrar na floresta. Viemos para apreciar, digo em pensamento, como aprendi nas aulas das segundas-feiras. Logo entramos na mata, naquele mundo calmo e misterioso, onde, rodeada de árvores, respiro o cheiro úmido de terra e plantas, ouço o murmúrio da brisa entre as folhas, admiro os cogumelos e as yvoty à beira do caminho: vermelhas, amarelas, rosa, brancas. Sinto dezenas de olhos nos acompanhando, enquanto sigo o Chico pela pequena trilha. Vez ou outra me detenho para observar a reprodução de lagartas, cheirar uma flor ou acariciar a casca áspera de um tronco.

De volta em o'ó, ligo o computador. Faz tempo que quero saber mais sobre os Camarás, o povo que deu nome ao lugar onde moramos: Aldeia dos Camarás. Mas só acho informações sobre condomínios, aplicativos de entrega e retiros espirituais.  Então vou pelo município: Camaragibe – Terra dos Camarás, como informa a placa de boas-vindas na estrada. Só que... nenhuma informação sobre esses últimos. Na maioria das páginas, fala-se rápida e genericamente sobre se teriam habitado estas áreas antes da chegada dos portugueses, só para logo se estender, por parágrafos e parágrafos, sobre os engenhos da cana-de-açúcar. Quanto ao nome, "Camarás" supostamente se referiria a um arbusto presente na região. Ou seja: vivemos em terra de arbusto?

Não posso o deixar de lembrar que a Assembleia Provincial do Ceará, lá por 1866, chegou a declarar a inexistência de indígenas no território, ignorando todas as etnias ali presentes. Tudo isso para beneficiar a quem lucraria com a expropriação das suas terras. Tapeba, Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Anacé, Tapuya-Kariri, Kanindé, Tremembé, Gavião, Kalabaça, Potiguara, Tabajara, Tubiba-Tapuya, Tupinambá, Karão Jaguaribaras, Kariri - se hoje são oficialmente quinze os grupos indígenas no Ceará, imagina no século retrasado.

Será um caso parecido aqui em Pernambuco? Um caso de falsificação histórica, de invisibilização de um povo por interesses econômicos, de negação de direitos a quem poderia exigi-los? Não me surpreenderia. No fim das contas, os povos originários lutam há séculos contra um Estado que omite sua existência e saqueia suas terras.

Sigo incontáveis links, pulando de página em página, até que finalmente encontro uma referência aos indígenas Camarás. E tem mais: conversando com um amigo camaragibense, ele relata que antigamente os locais entendiam o topônimo assim mesmo, como nome de um povo. Com o tempo, porém, a outra versão – a dos arbustos – prevaleceu. É a versão oficial hoje em dia. E a gente sabe quem dita as versões oficiais, né? Mas tenho esperança: dia desses conheci uma criança daqui de Aldeia. A menina jura ter visto, na floresta atrás da casa, uma família indígena: velhos e jovens, kunhangue, avangue, kyringue.

─ Estão aqui sempre ─ me conta. ─ Andam pela mata, conversam, cantam, as crianças correm e brincam.

Ninguém mais vê, mas eu acredito. E espero que estejam por aqui mesmo. No fim das contas, esta é a terra deles. Aldeia dos Camarás, Camaragibe, Pernambuco, Brasil.


Referências bibliográficas:

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.

MILLER, Yvonne. Deus criou primeiro o tatu: crônicas da mata. 1ª ed. São Paulo: Aboio, 2022.

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Arquivo da autora
Yvonne Miller (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais.

Tem textos publicados em várias antologias – Paginário (Aliás, 2019), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck, 2021), Crônicas de uma Fortaleza obscena (Territórios, 2021), Prêmio de Literatura Unifor 2021: Crônicas (Unifor, 2022), Amores e Lendas (Tubo, 2022), Fraturas: Antologia de Contos 2º Concurso Literário Pintura das Palavras (2022), Tinha que ser mulher (2022), Abraçar e resistir: vozes feministas (Libertinagem, 2023) – e é uma das organizadoras e coautora da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Na vida real, é mestre em linguística e preparadora de livros didáticos.


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