terça-feira, 6 de maio de 2025

IN(-)VERSOS DO MEU VERSO, DE RITA ALENCAR CLARK

 ACORDEM JÁ ESSAS MULHERES!

Vou andando com o teu livro

entre as construções do poema

e eis que as ruas de repente

Transbordam de humanidade

sob o coral das abelhas

E o mel que a tarde destila.[1]

 

Arquivo da autora 

Apesar da intensa atividade de Rita Alencar Clark na escrita, especialmente nas produções coletivas do Mulherio das Letras Nacional, as quais veio acompanhando desde o início do movimento (2017) e, mais recentemente, as do Coletivo Enluradas, é somente em 2024 que a poeta amazonense nos concede a graça poética da publicação de seu primeiro livro solo de poesias, In(-)versos do meu verso, cujo percurso já nos revela um misterioso enredo: o antigo manuscrito – depois de ser entregue ao seu pai, o poeta Alencar e Silva (1930-2011) – permaneceu desaparecido por vários anos entre o labirinto dos velhos objetos guardados como se soubesse o momento oportuno de surgir na cena literária da escrita brasileira contemporânea de autoria feminina do século XXI.

Evento UFAM-05/MAIO/2025
Arquivo da autora
In(-)versos do meu verso estreia no mundo físico inflamado de imagens que excitam a fantasia poética da linguagem, características tão necessárias à poesia. A versatilidade da escrita poética de Rita, ao expandir os limites do signo linguístico, mantém os olhos leitores em estado de vigília diante da luz de um novo alaranjado crepuscular que erradia de seus versos para tingir a realidade, já tantas vezes vista, com o inesperado de suas engenhosas metáforas temperadas de discreto delírio, enquanto uma prosopopeia abre o caminho do poema: “Flanco de paz adormecida / Pousa no torpor da tarde alaranjada [...] Nos olhos de teu passado / Amarelo, laranja, amarelado / Buscando a tua paz… alaranjada” (“Paz alaranjada”, p.20).

Lançamento (Manaus-23/SET/2024)
 
A “poesia é sonho” que mantém a consciência humana desperta e a bordo de uma epopeia de sentimentos cujo nauta é o próprio coração que parte em busca de si mesmo, enfrentando as violentas tempestades do mundo. A voz lírica e sonhadora, cochichada numa canção ribeirinha naquele longínquo tempo das palavras, funde fragmentos da memória vivida à fantasia poética de In(-)versos do meu verso sob a aquiescência dos furiosos olhos da Medusa – a mortal górgona e suas serpentes – que não dormem, pois conhecem “as faces da esfinge” e a dor ancestral de ser mulher no mundo. E convocam, em enérgica poética, o canto das sereias, o canto da liberdade a ser entoado: “Acordem o silêncio dos palácios / Toquem os sinos e as trombetas [...] Acordem já essas mulheres! / Digam que há milhares de sonhos / Lá embaixo esperando por elas!” (“Acordem o silêncio”, p.29).

Imagem Pinterest 

A poética de Rita revela uma voz em consonância com o seu tempo, atenta às transformações sociais e consciente de seu papel político na sociedade. Esta voz que se materializa no livro, possui um corpo político feminino que se descobre livre durante todo um doloroso processo de autodescoberta e que é gestada – pela posse da ‘palavra de mulher’ tão ausente na história dos homens – na sombria alcova dos difíceis silêncios. Não basta existir é preciso mergulhar fundo no denso amálgama da vida, desgarrar-se, liberar-se da culpa e do medo, parir a ‘palavra primordial’ que liberta a consciência e ilumina os caminhos: “Estou grávida de mim mesma / Sinto que minh’alma não / Habita mais meu corpo cansado, / Ela habita na essência. / Crisálida antes da liberdade / Parto difícil esse de parir a si mesma! [...] Para, em voo solo, decolar!” (“Parir-se”, p.75).

E neste sentido, há sempre muito a ser dito: “feridas tantas de tempos / Passados, somam distâncias no peito oco / Entre o que somos hoje e um dia fomos. [...] Não, não foi a saia, não foi o corpo, foi a violência! [...] Há tanto o que ser (re)visto sob o sol dos dias / Há tanto o que ser falado dessas dores e noites / Que, quando nos levantarmos todas, isso é certo, / Nossa voz explodirá numa aurora nuclear irrefreável. // Indomável.” (“Há tanto o que se falar”, p.88).


Imagem Pinterest
O erotismo também atravessa o movimento reflexivo de In(-)versos do meu verso, e se apresenta numa cuidadosa e sutil linguagem marcadamente lúdica, que se mostra e se esconde nas entrelinhas e que se impõe através de uma voz lírica insubmissa, irônica, decidida e conhecedora dos próprios desejos:  O corpo todo ondulando / E, se abrindo como leque [...] Doce, escorregando pelo túnel, / Buscando, serena e plena / O ponto mais alto de seu / Próprio prazer. / Ele nem desconfia…” (“Na calada da noite”, p.21).

Nos jogos de sedução quem dá as cartas é esta mulher que sabe o que quer, inclusive ainda adverte este imprudente homem do perigo de suas “coxas e olhos reluzentes”, de sua beleza “tão livre e solar”, pois sabe que quando a veja tão radiante assim, “Um gosto amargo te subirá a boca, eu sei, / Mas os braços já estarão ao teu pescoço… / E será o teu fim, ou pior, do homem que pensas ser. // Então, cuidado!” (“Sedução”, p.26).

A escrita erótica de Rita Alencar Clark, para além de sua incontestável qualidade poética, é uma escrita de resistência contra os velhos tabus e os inúmeros preconceitos que nos têm silenciado ao longo dos séculos, e que, portanto, empunha a bandeira pela liberdade dos corpos de mulher, porque queremos “nossos corpos livres e belos / Por serem nossos, de mais ninguém, só isso!” (“Universos de nós mesmos”, p.83).


Alencar e Silva
Arquivo da autora

E por último, e não menos importante, a presença da intertextualidade que se plasma na poética do livro, estabelecendo uma relação de dialogicidade ambivalente, quando Rita toma a palavra poética de outros(as) autores/as para vesti-la em seu poema, dando-lhe sentidos outros. Como pequena amostra, destaco o fragmento do soneto do poeta Alencar e Silva: “Por entre as faces de um poliedro / como entre as fases de um pesadelo / pânico apelo nas multidões / vou decifrando meu próprio rosto / no amargo gosto das decepções[2]”; além da poeta conservar o sentido que a palavra “poliedro” já possui, ela explora e ressignifica outros sentidos ao dialogar com o próprio pai poeta,  Alencar e Silva: “Encontro em mim teu coração, / Este poliedro de mil faces, / Lapidado pelo mestre em sua forma / Mais perfeita, mais exata!” (“Tens os olhos guardados em mim”, p.48).

Rita Alencar e Silva e Marta Cortezão
Palácio da Justiça (Manaus-23/SET/2024)
Assim, a poeta segue lapidando, ainda no mesmo poema, mas agora em diálogo com Fernando Pessoa, sem romper-lhe a ideia primária: “Pulsante às dores do mundo, / Este comboio de cordas em / Sonatas de outono”.

Por aqui me despeço, e não me levem a mal, mas é que “Já nem sinto os meus pés no chão…”. Ó Santa Rita dos versos encantados, escrevei para nós… Amém! Boa leitura. 

Marta Cortezão

Poeta amazonense.





[1] SILVA, Alencar e. Crepuscularium. Fortaleza/CE: Ediçoes Realce, 2006, p. 34.

[2] “Por entre as faces de um poliedro” de Alencar e Silva, in Ouro, incenso e mirra.  Manaus, AM: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1994.  83 p.  Acesso 08/04/2024, disponível em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/amazonas/alencar_e_silva.html

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡


Arquivo da autora

Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM - Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA - Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: Meu grão de poesia, Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico e In(-)versos do meu verso.

2 comentários:

  1. Marta Cortezão você é poeta de generosidade e perspicácia literárias, seu olhar sobre a poesia é revelador, transborda em intensidade e, com isso, eleva a dimensão da minha obra poética. Grata , poeta, a amizade e o respeito são mútuos. Sempre juntas!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigada pelas palavras tão bonitas, querida. Amizade e o respeito são recíprocos. Seu livro é intenso, profundo e transborda poesia🌹👏🏽🌹

      Excluir

Agradecemos seu contato. Em breve lhe responderemos. Obrigada.

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

VOZES QUE ROMPEM SILÊNCIOS, POR HELIENE ROSA

PROTAGONISMO FEMININO |07  MULHERES NA FILOSOFIA, NA CIÊNCIA E NA LITERATURA: VOZES QUE ROMPEM SILÊNCIOS  POR Heliene Rosa Imagem Pinterest ...