segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR ELIZABETE NASCIMENTO



COLETÂNEA POÉTICA: ENLUARADAS II (2021): UMA CIRANDA DE DEUSAS

SÓ PARA DIZER QUE “AGORA SOMOS NÓS QUE VAMOS DIZER O QUE [não] SOMOS”[1].

  

Por Elizabete Nascimento

 

Agrego ao título a afirmação de Lygia Fagundes Telles, por traduzir uma das essências que emana da coletânea de poesia de autoria feminina Enluaradas II: uma ciranda de deusas (2021)[2], com eus poemáticos que reafirmam a infinita tarefa de poetizar o mundo e não compactuam com o poder arbitrário que aprisiona a fala de todas em detrimento de uma. A obra é subdividida em quatro oráculos sagrados regidos pelas deusas da mitologia grega, conforme destaca Marta Cortezão (2021, p. 09):


O primeiro homenageia a deusa Gaia, a Mãe Terra que nos nutre e que nos revela a importância de recuperar nossa sacralidade e nos conectar com nosso espírito primitivo; o segundo, a Deusa Selene, La Bella Luna, a que comanda os mistérios de nossa natureza cíclica e do Sagrado que nos habita; o terceiro, a Deusa Lilith, a que controla os ventos e as tempestades, lutando pelos seus direitos, negando subserviência ao patriarcado; e o quarto e último oráculo que celebra a Deusa Afrodite, a que vem nos revelar a sacralidade do amor, alimentando-nos a força da luta coletiva pela sororidade, pelo amor que faz morada no colo do numen primitivo. 

Da estrutura supramencionada, mitológica e envolvente, pescamos quatro poemas para brincar com o tecido poético da criação de autoria feminina que compõe a coletânea, esse mar de águas inundado por sentimentos. A pescaria teve como critério trazer para o palco a percepção de que as palavras voam livres, entram por dentro do corpo e levantam em forma de poema para ressignificar a figura feminina no mundo contemporâneo. Por escolha trazemos os poemas na íntegra, a fim de que o leitor constate ou não as percepções descritas, até porque o objetivo aqui não é trazer o significado do poema, muito pelo contrário, é dizer que o poema tem mil faces e sugerir que você, caro leitor, encontre a sua e descubra como as palavras desses eus poemáticos falam em nós e nos afetam os sentidos. Eis os poemas:                                     

RESSIGNIFICÂNCIAS

                

Ale Heindenreich (p. 24)

 

Me reencontro nas palavras

Como o rio que corre seu curso.

Deparo-me com a cachoeira de

Águas mansas. Ora torrentes.

Escorrem no papel linha por linha

Verso por verso.

 

Permeiam as folhas do meu

Caderno vermelho.

Respingam em palavras formando

Choro, riso ou receio.

 

Caem como gotas de

Chuva desprentensiosa.

Tornam-se poças tímidas que

De mãos dadas se movem até

O córrego manso,

E de lá outra vez serei

Rio de águas renovadas.


O poema Ressignificâncias apresenta o poder libertador das palavras e como, por meio delas, o eu poemático descreve seu percurso: “Me reencontro nas palavras/Como o rio que corre seu curso”. Como algo que ultrapassa os obstáculos, vence as barreiras do tempo. Nota-se ainda, que as palavras simbolizam as águas e, estas por sua vez constituem o rio, rio que transforma-se no eu poemático, como um ciclo onde o ser humano e a natureza se entrelaçam numa rede constituinte de identidade: “E de lá outra vez serei/Rio de águas renovadas”. Há uma boniteza de imagem poética que se levanta do poema e clama por sentires múltiplo e que, portanto, não podem estar aprisionados em interpretações e/ou conceitos previamente definidos.


A PALAVRA QUE ME FALTA


Dani Espíndola (p. 71)

 

Onde se esconde

A palavra que procuro

A que me estancará as feridas

Me guiará no escuro

Que é viver só de vontades

De inventar realidades

Onde estará a palavra

Que me falta

Para terminar o poema

A palavra que condena

E liberta

Impunemente

Onde se esconde

A palavra

Que me desmente.


Ainda no seguir a tessitura da rede iniciada pelo poema Heindenreich, A palavra que me falta – de Dani Espíndola, metaforicamente também apresenta a incompletude da palavra e do ser, ambos em via de fazer-se: “Onde se esconde/A palavra que procuro/A que me estancará as feridas”. Por mais que a procura seja incessante, sempre haverá uma lacuna para ser preenchida. Essa artimanha do signo verbal lembra-me Carlos Drumonnd de Andrade: “Trouxeste a chave?”. Espíndola apresenta um eu poemático consciente de suas limitações e vontades, à procura da palavra definitiva, que contraria o eu poemático e que, ao mesmo tempo, possa completá-lo: “onde estará a palavra/Que me falta/Para terminar o poema/A palavra que condena/E liberta/Impunemente./Onde se esconde/A palavra/Que me desmente.”

Ao considerar o exposto, o eu poemático de Espíndola enche-se de questionamentos a respeito da completude da palavra como se sabedor de que “um escritor pode amontoar frases e mais frases, adjetivos e mais adjetivos, para capturar a essência esquiva de alguma coisa. Mas, quanto mais usa a linguagem para descrever um personagem ou situação, mais tende a soterrá-lo sob uma montanha de generalidades” (EAGLETON, 2019, p. 63)[3]. Nesse sentido, ainda de acordo com o autor, na e pela palavra, podemos fazer sangrar tudo que existente aprisionado em nós e, é por esse motivo que a poesia: “não trata apenas do sentido da experiência, mas também da experiência do sentido” (EAGLETON, 2019, p. 196).


CHÃO ANCESTRAL


Margarida Montejano (p. 148)

 

Às vezes, mora em mim uma loba

 que uiva como louca quando sente que o perigo ronda.

Defende a cria, sobe as paredes e as unhas afia.

Mora em mim, às vezes,

uma ovelha desgarrada de olhos mansos

que tece, nas rugas do tempo  e nos fios de lã,

 o cachecol do dia que aquece nossas noites insanas.

 

Às vezes, mora em mim

uma bem-te-vi que vive a cantar a esperança.

Que não desiste. Insiste no voo que aquece o ninho.

Enfim, mora às vezes em mim uma louca,

que grita insana nas noites insones, que existir é muito mais que viver.

Que eu posso ser amarga, azeda,

macia, árida e áspera, sem deixar de ser doce.

 

Que eu possa ser lua, estrela, constelação.

Deusa, musa, menina, princesa e bailarina.

Posso ser meretriz, caipira, doutora do lar, poeta e atriz...

Habita dentro de mim um ser inconcluso,

Confuso, difuso, mas tomado de essência divina

Sábia, intuitiva, santa e humana inconformada!

Mora em mim um anjo sagrado e profano,

Uma boneca de pano que às vezes me chama e me diz

 - você é o que você quiser!

Sorrio de mim, requebro e sigo, agora na versão mulher.

 

Chão ancestral, de Margarida Montejano, exibe o movimento das diversas identidades da figura feminina que busca na complexidade das relações viver com intensidade seus paradoxos: “Habita dentro de mim um ser inconcluso,/Confuso, difuso, mas tomado de essência divina/Sábia, intuitiva, santa e humana inconformada!”. Um eu poemático consciente da potencialidade da alma humana que caminha por múltiplas direções: “Que eu possa ser lua, estrela, constelação./Deusa, musa, menina, princesa e bailarina”. Ou seja, capaz de ultrapassar as linhas da objetividade e peregrinar pelo campo da ficção. Nesse sentido, é interessante atentar para o fecho do poema: “Sorrio de mim, requebro e sigo, agora na versão mulher”, como o ser livre e múltiplo estivesse apenas na palavra porque o ser mulher, nessa sociedade, exige o cumprimento de regras, de imposições que limita seus fazeres.  

Ao dizer o que queria no poema, o eu poemático afasta-se do texto, segue a vida real, na versão mulher. Nesse sentido, convoca-nos à necessidade de olhar para o texto, deixar-se ser provocado por ele, pois: “A linguagem em poesia é uma realidade em si mesma, e não um mero veículo pra algo diferente dela. A experiência que importa é a experiência do poema. As ideias e os sentimentos pertinentes são aqueles que estão ligados às próprias palavras, e não a algo dissociável delas” (EAGLETON, 2019, p. 142).

A batalha da produção de autoria feminina é ser (re)conhecida em suas diversas facetas e qualidade de sua produção, embora já tenha algumas conquistas é preciso seguir em frente, pois segundo Octávio Paz (1954): “A liberdade do escritor não é algo abstrato, mas algo que se conquista dia a dia. Em sua obra, em seu trabalho, melhor dizendo, de revelação do homem, o escritor deve lutar contra todo tipo de limitações e imposições. Alguns pessoais e outros externos”[4]. Ainda recorrendo a Paz, vale destacar que a essencialidade literária consiste em descobrir e revelar parte do ser humano, no que ele tem de mais específico, além disso, o autor destaca que técnicas adotadas por um ou outro autor(a) podem até influenciar o caráter das produções, mas não alteram o seu valor.


SINA


 Vania Clares  (p. 199)

 

de muitas herdei pudores

e desígnios acumulados,

as células carregam dores

por caminhos atribulados.

Custei a entender essa trama

Tecida através dos séculos,

Vista por muitos como drama,

Os iguais assumidos vínculos.

Revivo a história dia a dia

Nos olhos de outras mulheres

E reconheço em todas a ousadia

De fazer valer os seus saberes.

Condensamos a força deferida,

a que rasga imperiosa o ventre,

Lembramos sem medo a ferida,

Afrontando o risco de estar entre

Aqueles que nos desconhecem.

E porque somos amor e doação

Damo-nos as mãos em sintonia,

Colhendo na luta a inspiração,

Prevalecendo o milagre da poesia.

E porque entendi como privilégio,

Exulto em canto a sina em sagração,

Em mim encontrarás eterno refúgio,

Em nós o cerne da vida em ebulição.

 

Observem que o último verso do poema Chão ancestral dialoga com Sina, de Vânia Clares que, com seu jeito peculiar, poetiza o percurso da figura feminina no decorrer da história, bem como, destaca a ancestralidade, com alguns episódios que se repetem e fazem eco no mundo contemporâneo. Invoca ao poder do trabalho coletivo para “pular o cerco”: “E porque somos amor e doação/Damo-nos as mãos em sintonia,/Colhendo na luta a inspiração,/Prevalecendo o milagre da poesia.” No poema Sina percebe-se o tom metafórico para que a mulher vá à luta, aprenda as lições deixadas por seus antepassados, toque na ferida como bandeira de redenção e, dessa forma, passa a incomodar àqueles que desconhecem a legítima voz de quem aprende com a própria história. Nos dois últimos versos há a profunda e necessária relação entre o eu e o nós como constituintes do processo de criação poética: “Em mim encontrarás eterno refúgio,/Em nós o cerne da vida em ebulição”. Uma mulher que reconhece o limite de sua individualidade e ao se reconhecer compreende-se também como um ser híbrido e, portanto, em contínuo processo de aprendizagens com as outras: “E porque somos amor e doação/Damo-nos as mãos em sintonia,/Colhendo na luta a inspiração,/Prevalecendo o milagre da poesia”. Terry Eagleton (2019) diria que o eu-poemático, na produção dessas mulheres, “surge como metáfora da natureza e povoada de fantasias da vida humana real” porque quem carrega os sonhos somos nós, humanos.

A busca incessante por liberdade percorre os poemas, de modo que metaforicamente a figura feminina concebe a escrita/palavra, como personificação de si mesma, pois:

Sua memória corre fluída no texto, embaralhada nos tempos vividos que se fundem na emoção do recordar/viver. Saberes e sabores dos mais diversos se fundem em sua escrita seivosa. Escrita sinuosa de contador-de-histórias que vê a aventura humana enredada em seus mil caminhos e veredas que se cruzam, entrelaçam e se separam. Nenhuma vida existe por si só, mas enovelada, determinada, abortada ou frutificada por outras vidas que a ela estão presas por invisíveis e irredutíveis fios. (COELHO, 1993, p. 320).

São vidas filtradas pelos sentimentos e pelos conflitos de quem, até pouco tempo, eram negados o direito à voz/escrita. Octávio Paz legitima essa proposição ao destacar que “O poema é um objeto único, permeado por uma técnica específica de cada poeta, a qual possui um estilo específico, marcado tanto pelo individualismo de seu criador quanto pela sua época, estilo literário de seu tempo e vivências sociais e históricas”[5].

Nesse ínterim, retorno ao título dessa abordagem: “agora somos nós quem vamos dizer o que somos”, trata-se de um chamamento à leitura da produção de autoria feminina, porém, sabedora de que muito pouco ainda está sendo e será dito, sempre com a palavra em falta nesse chão ancestral escrito pela diversidade que solicita coragem no mar de ressignificâncias que engendra a epifania do ser e/ou a imprescindível mudança dessa sina da mulher. Ressalto que: “a melhor maneira de ver uma obra literária não é como um texto com sentido fixo, mas como matriz capaz de gerar todo um leque de significados possíveis. Mais do que conter significados, a obra o produz” (EAGLETON, 2019, p. 149).

Finalizo, por ora, destacando que os poemas selecionados foram produzidos em primeira pessoa, por mulheres, talvez para que observem a transfiguração engendrada pela memória e pela arte como um apelo para que olhem de novo, de outro jeito a produção de autoria feminina, com corpos e almas que nos contrários se edificam, linguagens cingidas na experiência e nos sonhos rotineiros que, em sua maioria, recusam a linguagem burilada, às sintaxes consagradas e se levantam no jeito particular e, ao mesmo tempo, coletivo desmanchados na/pela escrita que eleva imagens e sensações plurais.

 


[1] TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.  “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”.

[2] CORTEZÃO, M.; CACAU, P.; Coletânea Enluaradas II: uma ciranda de deusas. São Paulo: Saravasti, 2021.

[3] EAGLETON, Terry. Como ler literatura. Porto Alegre: L&M, 2019.

[4] PAZ, Octavio. Fragmentos de uma entrevista à Rosa Castro, México/La Cultura, 1954.

[5] https://homoliteratus.com/poesia-e-poema-sao-sinonimos-nao-para-octavio-paz/




Um comentário:

  1. Encantada com essa exuberante análise, Elizabete! Vou mergulhar neste mar...e refletir, e escrever sobre a ebulição que esta leitura em mim produziu!
    Os desafios me movem! Grata! Margarida Montejano

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