domingo, 28 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|10: NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana, POR LAU SIQUEIRA

 


ELES LEEM ELAS|10

NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana


Por Lau Siqueira


O primeiro livro é sempre uma provocação e um desafio. Uma estirada de Língua do poeta ou da poeta. Especialmente porque as facilidades para a publicação nesses tempos modernos, geralmente convidam ao abismo. Os canais de divulgação da Poesia e principalmente da nova Poesia brasileira, são inúmeros. Os blogs, as plataformas, as redes sociais. Dificilmente um escritor ou escritora fica inédito por muito tempo. Escreveu, publicou. Ninguém está isolado. A bolha dos poetas municipais, estaduais ou federais, todavia, explodiu enquanto “tiravam ouro do nariz”.

Para adquirir Artéria, fale com Clareanna Santana via perfil @clareamente
 ou via perfil Facebook 

Anos atrás alguns acelerados acendiam o alerta máximo sobre o que seria a tal “literatura na internet”. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, mas o medo das novidades mordeu muitos calcanhares. Nos primórdios da conexão discada os poucos textos expostos eram generalizados como “escritas rasas”. Era o veredito geral da Suprema Corte Literária. Até que os “togados” também entraram nas redes. Os desconfiômetros foram sutilmente desligados.  Não se falou mais nisso. Salvo por alguns absurdos apocalípticos, a prudência sempre evitou acidentes fatais e injustiças silenciadas, mas nunca deteve a história. Assim, conclui-se que os meios não melhoram nem pioram a literatura de ninguém, mas ampliam os campos da visibilidade.

Na medida em que pensamos no turbilhão que é a atual produção poética brasileira, não nos cabe negá-la. Muito menos negligenciar sobre quem chega. Afinal, escrever e escrever poemas muito especialmente, é sempre um aprendizado cheio de boas lições. No mais, a chamada “literatura eletrônica”, não é e nunca será um novo gênero, mas uma realidade intransferível. Segundo N. Katherine Hayles, tudo isso afetou o sistema cognitivo humano e “aquilo que ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura”. Ou seja: um paradigma saiu silenciosamente pela janela enquanto outro instalava-se no jardim.

Nunca sei onde começa de fato um livro de poemas. Com “Artéria” (Editora Libertinagem-SP) não é diferente. Falo com a convicção de quem lê compulsivamente, mas também escreveu poemas e teve a sorte de vê-los publicados. Sou um leitor movido prioritariamente pelo prazer da leitura. Anárquico e apaixonado. Desde sempre prevalecem as minhas escolhas eletivas. Mas por onde começar e onde terminar a leitura de um livro de poemas sem deixar esquecida uma única página? Tenho meu próprio método. Nunca faço uma leitura linear. Apenas percorro este farfalhar de silêncios que, por exemplo, encontrei na poesia de Clareanna Santana. Muito jovem ainda, Clareanna aprendeu a pensar profundo. Sabe que a palavra - arma vital da poesia, também é letal. Serve para glorificar, mas também pode trucidar.

Artéria está à venda pelo site da Libertinagem, clique na imagem.

A poesia de Clareanna traz uma tradução literal da sua própria pele. Expressa um toque destemido, um mergulho represado. Um sol e uma lua que se dissolvem entre si de forma ritmada. Todos os sentidos e todos os signos conversam e trocam de lugar o tempo todo. Sim, fiz minhas escolhas e colhi bons frutos nos versos desta poeta talentosa nascida em Eunápolis, no Sul da Bahia. Hoje mais que poeta baiana, é do mundo. Integra um universo literário que apresenta ao Brasil nomes como Sérgio de Castro Pinto e Maria Valéria Rezende. Morando na Paraíba, habita um dos cenários de maior efervescência da literatura contemporânea. Sem pressa, vai ocupando espaços. Refazendo-se permanentemente, reinventando uma poesia que já se faz necessária.

O poema “coração de baleia” foi minha primeira leitura deste livro. Portanto, segui a minha lógica pessoal de leituras. Não é o primeiro poema do livro, mas um dos primeiros. Poema curto que exige leitura demorada. Fiquei buscando as paisagens nele contidas, as agonias, as fraturas expostas de cada verso e ao final me rendi aos seus apelos: “a veia recheada/ meio carne/ meio máquina/ reserva-se pronta e cheia./ liga-se ao músculo salpicado/ entre doçura e pecado:/ meu coração de baleia”. A escrita de Clareanna faz pensar e pensar um poema é a melhor maneira de senti-lo. Em “coração de baleia”, assim como em outros poemas, a poeta abre alas para uma caminhada que vem de longe, sem medo de revelar suas pegadas.

Em Clareanna Santana não vemos disfarce. Apenas um leve fingimento pessoano. Ela finge completamente “a dor que deveras sente”, mas não a disfarça. O filósofo francês Mikel Dufrene escreveu que “(...) a espontaneidade é, a um só tempo, a condição e a recompensa de sua operação e, antes de tudo, de sua docilidade.” Na espontaneidade da poesia de Clareanna é onde encontramos os seus maiores disfarces. Uma espontaneidade lírica que logo é encoberta pela artesania, pelo meticuloso trabalho com a palavra. Nossa poeta justifica as ideias de Domício Proença Filho: “(...) Na maioria dos casos é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra literária de faz, fazendo-se.” Clareanna constrói em seus versos uma teoria para os seus próprios poemas.

Sua escrita tem uma unidade definida: é corpo, mente e mistério. A certeza de existir e a força onírica das suas indefinições. Tudo resumido em cada estrofe. Especialmente em poemas como “o corpo”, onde ela diz: “se de massa/carbono me faço/ é de antimatéria que vivo/ sobrevivo em meio ao cansaço/ sou matéria de corpo sofrido”. Ela sabe como afinar o instrumento. Conhece e reconhece as trajetórias do seu próprio corpo e as incertezas da pele. Sabe que o mergulho profundo é sempre revelado nas superfícies. No escambo dos sentidos, na dor e seus renascimentos. Sua verve nasce das alamedas percorridas e dos labirintos onde as certezas se perdem. Mergulhada em linguagens, vive visceralmente seus processos e suas relações impermanentes com a invenção. Vive cada vez mais profundamente a doma dos próprios delírios.

Em seu arsenal de palavras não há limites. A poeta revela suas metalurgias retorcendo os aços de cada significado. Não demonstra pressa.  Parece que faz e refaz sempre o mesmo verso. Debela agonias no trapézio que é sua invenção de segredos. Num Globo da Morte onde equilibra-se nos desequilíbrios e desafia seus limites. Como uma abelha rainha que faz e desfaz seus motivos. Ela transforma o poema num espelho de surrealidades. Mira-se no açude permanente das agonias e faz suas escolhas. Sabe que para além da imagem refletida, existe um olhar que consome os dias. Consciente da sua juventude, amplia seu tempo e sua existência em ancestralidades. Percebe que nada é fruto do acaso, mas não apressa o rio. Já percebeu que “ele corre sozinho”, como disse Barry Stevens. Sempre libertária, passeia na equidistância das margens.

Não parece preocupada com reverências programadas. Percebemos a sua consciência crítica dos nossos dias em poemas como “resistir”, onde a poeta reconhece o peso das travessias num tempo de guerras, enfrentamentos e pandemias: “acordo/ sem rito/ do luto/ vivo”. Transforma o substantivo masculino “luto” no verbo unificador das suas múltiplas existências. Sabe que sua condição de mulher num mundo de misoginias e patriarcados exige uma luta irrevogável, uma resistência que vai além do corpo. Resistir é reexistir ao nascer de cada Sol e de cada Lua. Como se o que desaba em cada esquina, o que dorme nas calçadas, o que queima nas florestas, também fosse a matéria prima do seu modo de resistir e reinventar-se em suas trincheiras de mulher múltipla, espelhada no aço reverso do espelho. Como uma ‘tigresa de unhas negras’, reage enquanto o mundo moderno impõe silenciamentos.

Certamente “há uma fome insaciável” revelada em cada verso enquanto a poeta distrai a matéria bruta. Brinca com as palavras, mas não com os pilares do poema. Talvez numa releitura de Maiakovski, vai dizendo para si mesma que “nós polimos as almas com a lixa do verso”. Antes de polir as almas dos leitores e leitoras, Clareanna tomou o cuidado de polir a sua própria. Tirou o pó das entranhas. Burilou seus versos para chegar no que Fernando Pessoa nos diz em O Guardador de Rebanhos: “ser poeta não é uma ambição minha/ é minha maneira de estar sozinho.” Visita sua sempre inevitável solidão, reconhece suas entranhas e segue deixando rastros. Jamais revela o corte nas cicatrizes. Não cobre suas dores com o couro cru da lamentação. Em plena sangria, mostra sua permanente inconformidade. Especialmente com o mundo, mas também consigo mesma: “olhos, boca, tato, vida, mundo.”

Já dizia o poeta mexicano Octavio Paz: “palavras de poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”. É desta forma que Clareanna se despe aos olhares do mundo. Sem medo do que mostra. Ela mesma parece apoderar-se do que sente e vê. Quem a lê, compreende uma poesia que desnuda, mas que também estabelece distâncias. Ao falar de si, a autora reverbera seu tempo, reconfigura permanentemente seu modo de dizer. Desfralda a bandeira de uma geração que sonha e deseja um mundo de igualdades e linguagens conquistadas. Sem a imposição das certezas. Sem as convulsões do que não transborda. Sem as facilidades do que eleva, mas também oprime. Sua poesia agora não é mais apenas sua e ela sabe disso. Clareanna soltou sua alcateia de lobas famintas. Inventou sua rebelião. Como quem se alimenta das próprias feridas para se tornar imbatível. Traduz seus uivos pelas esquinas: “buscou preencher o vazio/ no corpo alheio / umbral em meio fio/ estupidez em copo cheio (eros)” Seus versos revelam bem mais do que as profusões do intimismo. Penetram na turbulência de quem os lê oferecendo generosamente o mapa dos seus esconderijos ao sabor repartido da existência.


CINCO POEMAS ESCOLHIDOS PELA AUTORA

 

a gota

 

a gota escapa da pia

como melodia ritmada

num solilóquio de dia

quebra o silêncio e nada.

 

saudade de casa

 

d’onde o sol corta a neblina

daquelas curvas acentuadas

deste barro em que sou carne

da terra indígena roubada

das linhas que marcam o asfalto

do mato que beira a estrada

do horizonte preenchido de pasto

do deserto verde que desmata

da mistura de nossas falas

das velhas cordas do violão

de todo amor que nos embala

daqueles versos de sua canção.

 

arbítrio

 

palma de cinco traços

carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas

golpeadas pela vida

eis as mãos e os calos

torneadas de danos

pele, unha e cicatriz

minha força motriz

meus caminhos mundanos.

 

a poesia está

 

na ponta da língua

na língua do dedo

no dedo a fonte

na fonte o cerne

no cerne a flor

à flor da pele.

 

terceto

 

acorda vida! Tece

a corda bamba:

tira à tira, fica a trama.

♡___________________♡__________________♡


LAU SIQUEIRA
Foto arquivo pessoal do autor

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS, em 1957. Desde 1985 reside na Paraíba. Publicou oito livros de poemas, participou de diversos projetos e publicações sobre leitura literária. Sua poesia está incluída em antologias no Brasil e no exterior. Atualmente a Editora Casa Verde, de Porto Alegre, possui exclusividade sobre a sua obra e seus livros podem ser adquiridos pelo e-mail casaverde@casaverde.art.br

 

CLAREANNA SANTANA
foto do arquivo pessoal da autora

Clareanna Santana (1987), poeta baiana radicada na Paraíba. Escreve poemas desde a adolescência. "Artéria", livro de poesia recém publicado pela Editora Libertinagem (SP), é seu primeiro livro solo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

VERBO MULHER: HELENA TROUXE O TROMBONE, POR HELENA TERRA

     


V E R B O   M U L H E R|01

HELENA TROUXE O TROMBONE

Por Helena Terra

          “Para diminuir a febre de sentir” é o nome de um livro da Dalva Maria Soares. Comprei e estou ansiosa, embora eu não seja ansiosa, para ler. O Tonio Caetano, um escritor aqui do Sul, escreveu que o livro dela é sobre a coragem de dizer o que se sente. Lembrei na hora do poema, da Adélia Prado, que diz que “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”. Eu acho que até falo sobre o que sinto em alguma medida. E é esse em alguma medida o problema, o espinho que me incomoda. Mais que isso: me fere, pois me silencia. E de silêncio, de viver em uma sociedade permeada pela ausência de diálogo, com homens dizendo sobre o que, quando, até que ponto e de que forma devo existir e falar estou farta. Estou farta em causa própria e, também, das outras mulheres. O silenciamento é geral, faz parte do jogo de dominação e busca pelo poder estabelecido pelo rançoso e malsucedido patriarcado, porque, cá entre nós, o patriarcado é uma máquina primitiva e feroz de criar desigualdades e intimidações. Vou dar um exemplo: 

        Não faz muito tempo, um namorado me disse em tom de ameaça: Helena, não me incomoda! E por que disse? Não faço ideia. Não havia acontecido nada, não estávamos em conflito. Pelo menos, eu não estava. Na verdade, deitada no sofá de sua casa, eu, quieta e satisfeita, lia um romance. Se algo desagradável estava acontecendo, esse algo acontecia, cem por cento, na cabeça dele com as questões dele. Questões que eu nunca soube direito quais eram por diversas razões, sendo a principal a de que ele não aceitava falar sobre suas dificuldades e equívocos de qualquer ordem comigo. Não sei se com alguém. O que sei é que elas alteravam o seu humor e o autorizavam a agir no campo das hostilidades. Eu não tenho uma natureza hostil e sou bem-educada. Recebi e introjetei a perigosa boa educação dada às mulheres, e falo perigosa, porque ela, volta e meia, serve à perpetuação da verticalidade das relações entre casais heterossexuais. Cabe à mulher ser compreensiva e gentil. Cabe à mulher ser generosa com o seu homem. Cabe a ela se calar e digerir, como se fosse natural, a agressividade masculina.

           Nos últimos anos, tenho cruzado com homens mais agressivos do que eu costumava. O discurso sexista propagado pelo senhor que está à frente do país, não tenho dúvida, resgatou e reforçou, mesmo entre os homens já mais civilizados e democráticos, comportamentos e falas discriminatórias e opressoras. De certa forma, houve uma recaída em direção aos ancestrais que animalizavam suas companheiras. De certa forma, o botão do protagonismo masculino foi acionado como se vivêssemos na época do Brasil colônia, aquele culturalmente dividido entre mulheres brancas e negras, sinhazinhas e escravas, todas igualmente ultrajadas embora de diferentes formas, sendo as mulheres negras em uma escala ainda maior e mais destrutiva de violência. As mulheres negras são mais agredidas e inclusive estupradas até hoje. “Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, é importante observar o grupo que está mais suscetível a ela, já que seus corpos vêm sendo desumanizados e ultrassexualizados historicamente”, Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, ressalta. Eu sou uma mulher branca. Nessa nossa pirâmide de opressão e ofensas, recebo uma cota um pouco menor de dor. Mas recebo também. Ou recebia. Bati o meu martelo e inaugurei a minha era Bye Bye Autoritário enquanto não chega a de Aquário.

          O último homem que me disse, sim, voltei a ouvir a frase Helena, não me incomoda, caiu da própria altura em tempo recorde. Meu detector de toxicidade disparou na mesma hora. Não há mais espaço na minha vida para abusos de qualquer natureza. Como também não há mais cegueira. Vejo a violência psicológica com clareza por mais que ela seja imaterial. Se eu estivesse dentro do livro “Ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago, me candidataria ao papel de guia e não de cega.  A violência psicológica contra as mulheres, assim como o racismo, também é estrutural, vai além da misoginia, sendo que por ser invisível, acaba se tornando não denunciável e não sendo denunciável, também não se torna punível. Mas, de qualquer forma, je t’accuse! Sim, a ti e a qualquer um em que sirva a carapuça, porque a carapuça serve a muitos. Serve também àqueles que se omitem e desculpam os seus amigos quando os veem sendo prepotentes, injustos, desonestos e cruéis com uma mulher.

         Me disse um amigo, escritor a quem admiro, que isso, essa boa vontade entre iguais, se deve à brotheragem, o sentimento gratuito de simpatia de um homem para com outro homem. Sentimento gratuito mesmo porque ser simpático a alguém violento não é justificável. Já uma amiga, escritora a quem também admiro, chama isso de “passar pano”. “Os homens passam pano para os homens”, ela diz. Mas eu não sou homem, portanto vou torcer o pano até não restar mais uma gota de água, sujeira ou mágoa. Violência gera mágoas. Eu guardo algumas, principalmente, por não me expressar e não ter enfrentado os agressores com que me deparei, alguns com alta competência para a destruição.  No livro “Pandemonium”, do Zeca Fonseca, o livro que mais gosto de ler depois do “Lavoura Arcaica”, do Raduan Nassar, Lemok, o protagonista, conta que, na tentativa de minimizar as frustrações e dores que sentia, acabava por fazer as coisas de um jeito que o fazia sofrer ainda mais. Ou seja, enlameando a vida de um modo autodestrutivo. Eu, sinceramente, acho o direito de autodestruição super legítimo. O problema é que existe o autodestrutivo da espécie terrorista.

          Espécie terrorista? Explico: o autodestrutivo terrorista é aquele homem que explode bombas em vez de tomar um silencioso copo de cicuta e depois, diante dos estilhaços, corpos e sentimentos atingidos de quem estava perto, normalmente a mulher que o estima, ainda se vitimiza quando ela se recusa a virar cinzas junto com ele e vai embora. Aí, em vez de pensar sobre si mesmo, o que fez, se desculpar e tentar uma reparação, o terrorista se enche de raiva como se se enchesse de dignidade e fala grosserias: sua opinião sobre mim não me interessa. É claro que não interessa. Todo mundo sabe o quanto Narciso acha feio o que não é espelho e o quanto não conhece remorso. Narciso, o do mito, até onde sei, via em seu reflexo algo encantador. O que não é o caso da maioria. A maioria dos narcisos contemporâneos vê a sua própria brutalidade e os seus próprios fracassos. E, para lidar com eles, é óbvio, que coragem e humildade são itens necessários. Quem não se vê, não se transforma. Segue viciado em si mesmo. Não conheço pior adição do que essa. Ela está por detrás de todas as outras. O viciado sempre encontra uma justificativa para o que faz e diz qualquer coisa para manter-se drogado. Até rouba.

          No último verão, uma mulher, em estado de estresse, me procurou em uma rede social. Tinha sido roubada por um homem com quem convivi anos atrás e estava muito confusa. Segundo ela, um dos fatores que tinham contado a favor de seu interesse por ele era o dele ter tido um relacionamento comigo. Julguei ele por ti, Helena, me disse, comecei a sair com ele pensando que ele fosse bacana como você. Eu sabia que ele não era. Roubou também a mim. Mas como advertir as outras mulheres sobre os homens que conhecemos?  Nesse ponto também vivemos um silenciamento e um aprendizado. Falo por mim. Já entendi que mesmo que andemos em pares, seguimos sendo cada um cada um. Não é porque a ex de um fulano é uma mulher incrível que ele também é. E já entendi que devo soltar o verbo, dizer o que sinto, como escreveu o Tonio Caetano a respeito do livro da Dalva Maria Soares. E o que sinto é que devo, doa a quem doer, tocar o trombone de Asdrúbal. Fazer barulho. Reagir. Incomodar. E por falar em Asdrúbal, esse era o nome do meu avô paterno. Não foi um homem legal. Depois de quarenta e três anos tratando minha avó como uma serviçal, a abandonou. Perguntei a ela o porquê. Respondeu: por um só menos, netinha. Acho que não. Meu pai foi vê-lo em seu derradeiro momento, e pensou em dizer te amo, velho. Não conseguiu. Não era verdade. E sem a verdade é tudo de mentira.

@helenaterracamargo


ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS, POR ALE HEIDENREICH




 ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS |01


Por Ale Heidenreich

🌶 ATRÁS DA PORTA 🌶



♡ Há amores que esvaziam.
Se não preenchem,
vazios são. 
A.H.♡

Fez sexo sem amor, mas com vontade. Só queria mesmo era que lhe fizesse ter um orgasmo. Dos grandes! Falava-lhe ao ouvido palavras ordinárias que excitavam mais a ela que a ele. Mas esse era o seu objetivo.

Ela estava quase alcançando o ápice da loucura, quando ele interrompeu o ato e a mudou de posição. 

“─ Ódio! Quem ousa me roubar o orgasmo? – Filho da puta!” Pensou.

E, enquanto ele a torturava com aquela posição desconfortável e dolorosa, veio uma frase em sua cabeça que a fez lembrar que não é obrigada a nada: “Homem que fode mal, tem que saber que faz sexo ruim!” E foi aí que o interrompeu também e disse: ─ Não meu querido, eu quero é aquela outra posição que eu estava! E é assim que eu vou gozar!”

Encostou-se e o puxou pra cima de si. “­─ É assim que eu quero! Você entre as minhas pernas!”

E o apertou tanto, o beliscou tanto! E lhe falou tantas putarias aos ouvidos! E lhe mordeu tanto as pequenas orelhas. E quando o bendito, merecido e sagrado orgasmo veio, quase morreu sufocada com os próprios gritos contidos!

A porta da varanda do quarto de hotel, no primeiro piso, que dava para um grande terraço, estava aberta, e abria-se para um lindo parque verde. Seus costumeiros gritos poderiam ter chamado a atenção dos passantes e distraídos comensais, que degustavam suas comidas e bebidas no terraço logo abaixo, na calçada do hotel.

Deixou um “sorriso Mona Lisa” estampar-se nos cantos de sua boca, imaginando as sirenes da polícia, carros do bombeiro e da ambulância, depois de ter seu orgasmo denunciado como crime de conduta moral ou atentado ao pudor. Riu de si mesma...

Mas, isso era só um reflexo do pós-orgasmo, onde se pensava em bobagens ou em mais nada, quando se tinha um braço aconchegante para o repouso póstumo.

Olhava as cortinas brancas esvoaçantes, sob o sol de finalzinho de tarde. Era bucólico. Parecia cena de filme de época: cortinas finas ao vento. A brisa balançando uma guirlanda rodopiante de cristal. O sol morno. Os pássaros cantarolando. O bosque no parque. O céu azul.

Mas ali não existia carícias nem repouso em abraço. Só um olhar pidão e carente, desejoso do brinquedo prometido. Fez-se de difícil, mas ao fim cedeu e não tirou o doce da boca daquela criança.

Ele lambuzou-se todo naquele prazer de menino-homem-carente, e ela, ao final, contentou-se em ouvir a frase que declarava o seu triunfo:

“─ És muito gostosa!”

Conversaram sobre coisas sem importância. Ducharam-se, como que para limpar a impureza impregnada daquele pecado. “─ Deus tá vendo!” Ouvia dela mesma. “─ Deus perdoa!” Dizia para ela mesma.

Trancaram o quarto atrás de si, e colocaram a chave sobre o balcão vazio daquele hotel discreto e aconchegante. Saiu desfilando “a la madame”, com seu chapéu e vestido pretos, do mesmo modo como entrou.

Entrou no carro do rapaz e, momentos depois despediram-se. Cada um tomou a sua estrada.

O resto, ficou atrás da porta.

Não era puta e nem vadia. Era mulher.


Ale Heidenreich
Foto do arquivo pessoal

Ale Heidenreich é brasileira radicada na Alemanha desde 2004, mas segue incondicionalmente apaixonada pelas suas origens, Recife/PE. Seus poemas encontram-se registrados em diversas antologias e coletâneas espalhadas pelo Brasil e Europa.  É nas palavras que se encontra, e através delas conecta-se ao seu interior, externando, em forma de poesia, os sentimentos contidos.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

CONTE-ME UM CONTO, POR MARGARIDA MONTEJANO

 


                 CONTE-ME UM CONTO|06

A   M Ã O   E   O   E S P E L H O

Por Margarida Montejano

Era uma sexta-feira comum numa cidadezinha pacata do interior de São Paulo.  Éramos jovens funcionários de um banco, na casa dos 20 anos. Eu, Márcia e meu amigo Jorge sentados em guichês coligados, esperando os clientes do banco chegarem.

Sim. Trabalhávamos como caixas bancários, naquele tempo em que não havia caixas eletrônicos e o atendimento era mecânico e humano simultaneamente, tínhamos que executar as operações monetárias e, ao mesmo tempo, agradar o cliente, pois era essa a política para se manter no emprego.  Pois bem. Havia alguns dias no mês em que o trabalho era raro. Tínhamos que nos cuidar para não cochilar.

Num desses dias, apesar de me mostrar sempre animada e criativa para passar o tempo, estava meio entediada, pois as horas não passavam. Foi então que meu colega Jorge provoca, dizendo: 

─ Não é você que sempre arranja um jeito de nos animar? Qual talento usará hoje para que o tempo passe depressa?

Pensei um pouco e, como adoro ser desafiada, fui logo dizendo:

─ Me dê tua mão!

─ Por quê? Vai me pedir em casamento?

Olhei paro os olhos dele e falei sério:

─ Jorge. Dentre os talentos que tenho, há um que você não conhece. Eu leio mãos. Pratico quiromancia.

Ele olhou-me incrédulo, duvidando. Foi então que o desafiei:

Vamos! Me dê sua mão esquerda!

Ele, em meio àquela calmaria, olhou e viu que não vinha ninguém em direção aos caixas. Esticou o braço e estendeu a mão.

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Foi aí que tudo começou. Como alguém que entendia do assunto, fui logo lançando meu olhar na direção das linhas daquela mão jovem e magrela, que se encontrava, naquele momento, úmida de suor. Estava meu companheiro nervoso e eu me divertindo um bocado.

Anda, Márcia! Por que essa demora? Dizia meu colega aflito com receio que chegasse algum cliente.

Séria, como se visse algo nas linhas de sua mão, relatei a ele o texto que em minha mente se formava:

─ Jorge. Você irá se transferir de agência… será promovido em breve e, após formar-se na faculdade, se casará com uma jovem que não é a sua atual namorada. Pronto.

Importante dizer que as palavras descritas a ele eram uma projeção possível, pois eu o conhecia há um bom tempo: ele era um bom funcionário, dedicado e com potencial para liderança, logo uma promoção teria muita chance de acontecer. A transferência, uma possibilidade real para todos nós que lá trabalhávamos, também era fato. Muito bem. Com relação ao futuro afetivo de Jorge, eu também já tinha os dados. Ele estava terminando o curso superior e o namoro dele, pelo que ele mesmo contava, ia de mal a pior.

Conclusão. Brinquei com Jorge e fiz a previsão de seu futuro considerando as possibilidades.

Ele ficou pensativo, mas logo os clientes vieram e tratamos de esquecer essa brincadeira de desocupados. Seguimos por cerca de uns três meses trabalhando, levando a sério as atividades a nós confiadas e nos ocupando de passar o tempo com criatividade, o tempo que nos rodeava.

Jorge, um belo dia me chama e diz:  

Márcia! Não é que você adivinhou mesmo! Recebi uma promoção e terei de me mudar de cidade.

Que bacana, amigo! Eu disse surpresa! 

Fico feliz por você!

E assim Jorge foi para outra cidade, outra agência e eu fiquei sem meu companheiro de trabalho e de assuntos aleatórios.

Não é que, em uma manhã, eu ainda não havia assumido os trabalhos no caixa, pois faltavam 50 minutos para a agência bancária abrir, uma funcionária me chama e avisa que havia uma mulher à minha procura, dizendo-se ser a mãe de Jorge. A dona Odete.

Fui, é claro, atendê-la, como fazia com todos que me procuravam na agência. Ofereci a ela um café e já embalei na pergunta:

Bom dia, dona Odete! Em que posso ajudá-la?
Ela pediu para falar comigo em particular. Levei-a até a cozinha que estava vazia naquele momento.

─ Márcia! Leia minha mão? Disse-me ela de forma direta.

 O quê? Engasguei com o café. Não estou entendendo!

 Márcia, você leu a mão de meu filho e você acertou. Está acontecendo tudo o que você viu nas mãos dele. Ele se mudou de agência e cidade, foi promovido a gerente e você acredita que ele rompeu com a Cris e está super apaixonado por Paula?

Naquele momento lembrei-me de minha travessura lendo, de forma inconsequente, as mãos de Jorge. Tremi nas bases. Respirei e expliquei a ela que eram coincidências, pois eu havia brincado com Jorge. Que não lia mãos.

Ela foi logo pegando em minhas mãos e oferecendo as suas, implorando para que eu as lesse.

Dona Odete. Ouça-me. Eu brinquei com Jorge. Não leio mãos, repeti:

Ela com os olhos cheios de lágrimas me implorou. 

Moça. Por favor! Diga-me alguma coisa, pelo menos! Eu estou a um passo de explodir, de fazer uma loucura! 

Estava desesperada, com os olhos tomados de lágrimas. Era visível a necessidade daquela mulher de ser ouvida. De receber atenção. De um ombro, um colo, uma palavra!  Sentamo-nos no banco daquela cozinha gelada como todo ambiente bancário, peguei as duas mãos da senhora aflita à minha frente, e disse:

Fala-me: o que está acontecendo? Rendi-me ao pedido.

E ela falou da traição e separação do marido que tanto amava, das dificuldades que tinha com os filhos mais novos e do medo de não conseguir lutar e seguir sozinha, pois estava a ponto de desistir de tudo. 

Ela desabou ali e contou-me de suas dores. A mim, uma mulher desconhecida.

Ouvi com atenção cada palavra. Ela chorou e eu chorei junto com ela. Quando ela parecia mais calma e recomposta, eu disse:

Odete. Vou lhe chamar assim. Não preciso ler tua mão. Você vai vencer essa tormenta, porque você é mulher e, por isso, é forte. Vai enfrentar a adolescência dos filhos com coragem, porque você é mãe e os ama e vai ainda ser muito feliz. É esse o seu desejo e também porque o mundo não acaba quando um casamento não dá certo. Creia nisso! Acredita. Tudo se encaminhará! 

Ela secou os olhos vermelhos com as mãos. Agradeceu-me por ouvi-la e saiu. 

Naquele dia, a agência lotou de clientes e eu mal tive tempo de pensar no que havia se passado na cozinha. De organizar as ideias. De respirar, de entender o ocorrido naquela manhã.

Passou o tempo, desliguei-me do banco, formei-me professora, casei-me e fui morar no Rio de Janeiro. 

Um belo dia, em visita à cidade natal, estava eu na farmácia São José, sendo atendida por um balconista, quando, dentre outros clientes que também esperavam no balcão, uma mulher reconhece minha voz e, sem demora, me aborda!

Moça. Dá licença. Você não é a Márcia que trabalhava no banco com o Jorge, meu filho? 

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Eu gaguejo, olho nos olhos dela e a reconheço. Estava mais envelhecida, mas ainda muito bonita. A senhora é a…

Odete. Sim, mãe do Jorge! 

Enquanto o balconista providencia minha compra, converso com ela:

Olá Odete! Prazer em vê-la! Eu disse meio espantada.

Como a senhora está? E seu filho? Eu gostava muito de trabalhar com ele!

Ela esperou eu terminar de ser atendida, puxou-me pelo braço num canto da farmácia e foi logo dizendo:

Nossa, menina! Como eu a procurei! Muito obrigada! Preciso dizer que tudo o que você falou para mim, naquela cozinha, aconteceu! 

Emocionada pegou minhas mãos e apertou-as como se quisesse transpor a mim sua energia. Sua gratidão.

Aos poucos fui me desvencilhando das mãos da bela senhora e fiquei por uns segundos olhando-a. Um tempo de um raio ou de uma eternidade durou a cena. Só sei que foi o suficiente para lembrar-me de tudo o que aconteceu e pude dizer a ela, com detalhes, o que senti naquela manhã no banco.

Dona Odete. Naquele dia eu não fiz a leitura de sua mão. Eu não podia atender seu pedido, porque seria imprudente fazer aquilo. Mas, eu fiz a leitura das minhas mãos, das nossas mãos. 

Quando a ouvi, entendi o quanto precisamos, nós mulheres, umas das outras e, não importa o quanto somos próximas ou distantes, nos fortalecemos quando estamos juntas. Quando nos ouvimos, quando nos damos as mãos!

Ela me olhava atenta e eu respirei fundo e continuei:

 Quanto às palavras ditas naquele dia, é preciso que eu lhe diga: mirei os seus olhos marejados e, naquele momento, eles pareciam um espelho. Um espelho refletindo… e, o que eu neles lia e repetia em voz alta, eram os seus desejos.

Sou também grata por aquele momento, Odete! Aprendi muito. Boa sorte a você querida!

Sequei meus olhos com uma sensação estranha, mas feliz. Me despedi dela e saí da farmácia com o espelho na mão, o qual eu acabara de comprar.

(Margarida Montejano, in Fio de Prata, 2022)


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: FATO E FAKE NOS DITADOS POPULARES, POR RILNETE MELO

 


N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|01

FATO E FAKE NOS DITADOS POPULARES 

       

          Eu cresci ouvindo uns ditados populares que, embora ainda não usando o termo “Fake News”, nunca os tive como “Fato” no meu universo feminino. Na cama dessa vã cultura popular, da sabedoria do senso comum, da frase de efeito que tem por finalidade advertir ou aconselhar alguém, eu não deito a minha cabeça. Eis alguns desses famosos discursos proverbiais usados como ferramentas para propagação da misoginia e do preconceito contra a figura feminina, que eu desabono:

           — “Amor de pica bate e fica".

        Sou poeta, gosto de rima, mas essa não bate nas minhas inspirações e inquietações femininas... Acredito que bate no machismo do homem, na sua pretensiosa e fálica relação amorosa ou na cabeça de alguma pessoa insaciável inveterada, pois convenhamos que sexo é gostoso,  dá prazer, é uma necessidade fisiológica,  mas não fica e não sustenta a alma e a ternura feminina. (É Fake!) Para trazer o fato recorro a Nelson Rodrigues quando ele diz:

      “A maior tragédia do homem ocorreu quando ele separou o amor do sexo. A partir de então, o ser humano passou a fazer muito sexo e nenhum amor. Não passamos do desejo, eis a verdade. Todo desejo, como tal, se frustra com a posse. A única coisa que fica além da vida e da morte é o amor”.

         — “Mulher de malandro quanto mais apanha mais se apaixona"

       Um discurso extremamente agressivo e depreciativo! Para mim, trata-se de um provérbio com a pretensão de normalizar a violência doméstica.  Evidencia-se nesse dito popular a absolvição do agressor e a condição subalterna da mulher, que por muitas vezes se condiciona a agressão por condições econômicas ou mesmo ameaças,  e nunca, jamais, por gostar de apanhar, pois geralmente o relacionamento inicia com amor e carinho e por estreitamento da dependência vem a violência, que às vezes culmina na morte. Que esse fake fique bem longe de nós, pois precisamos nos unir para combater a violência de gênero (isso é fato!)

         — “Mulher tem que esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque"

       Aqui a mulher é vista como objeto do lar e do machismo exacerbado, que vem desde os tempos remotos.  Discurso ideológico que nos condiciona à submissão e jamais  favorece  a igualdade de gênero. Isso é Fake! Atualmente observa-se uma presença significativa de mulheres esquentando a barriga atrás das escrivaninhas e outros objetos profissionais,  esquentando a mente em muitas áreas de conhecimento e esfriando  a cuca com prazeres proporcionados por sua capacidade e talento. O fato é que precisamos lutar muito ainda por nossos direitos,   pois os homens ainda são maioria quando se trata de reconhecimento...

        Vamos esquentar nossas barrigas onde a gente quiser!

         — Em briga de marido e mulher, não se mete a colher"

        Frase que eu, minha avó e minha mãe crescemos ouvindo e vendo muitas mortes acontecerem, por omissão condicionada a esse discurso/mantra sem fundamento.  

         Frase de efeito Fake!

        Não podemos desconsiderar  a relevância das campanhas, os debates e a divulgação desse assunto na mídia, pois tem favorecido a  ação da vítima pelo pedido de socorro. Não podemos ser omissos a esse tipo de comportamento tóxico, a esses  relacionamentos abusivos dentro de quatro paredes, onde o silêncio sufocante da mulher é amordaçado pelo medo.  Vamos quebrar esse muro, entrar nessa briga, salvar uma vida  e meter a nossa colher sim! Isso é Fato!


@rilnetemelo - Uma Voz Nordestina


Rilnete Melo
Foto do arquivo pessoal

Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

RISCOS FEMININOS: PARA FALAR DE NÓS, POR CRISTIANE DE MESQUITA ALVES



RISCOS FEMININOS|01


P A R A   F A L A R   D E   N Ó S


Por Cristiane de Mesquita Alves


Parece que há uma fenda, um buraco negro talvez – se pensar ironicamente em Freud em relação a falar de nós – que possivelmente nascemos mulheres ou não nascemos mulheres, mas, que a identificação com o corpo fêmeo fez com que Beauvoir (2009) escrevesse uma das pautas mais importantes dos estudos feministas, ao afirmar que não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres.

Na esteira dessa filosofia, formou-se uma busca incessante para nós que buscamos, lutamos, insistimos, resistimos ao longo dos séculos de lutas pelas ondas do feminismo, ocupar um lugar nos âmbitos sociais onde pudéssemos expor nosso pensamento, nosso lugar de fala a partir de nós mesmas, cansadas de não nos vermos do jeito que somos refletidas pelo pensamento patriarcal que nos esculpiu com a insígnia do objeto, que categorizou a mulher na condição de inferiorização, colocando-a na subalternidade social e ratificando tal posição a cada sociedade que foi se organizando, adaptando, desenvolvendo no percurso da História.

            Se passarmos rapidamente pela História a construção da identidade feminina forjada pelo patriarcalismo foi moldada na ideia de subserviência (para não discutirmos os conceitos de servidão e escravidão por enquanto) destinada a servir o homem, desde a organização da sociedade  dos povos não-nômades, passando pela  Antiguidade Clássica, Cristianismo (estão aí as narrativas bíblicas que servem até hoje como muitos exemplos para aquelas que ainda não compreenderam o papel social da mulher), perpassando pela formação do pensamento ocidental da dita era renascentista, iluminista, moderna e vamos recorrer ao momento pós-moderno, considerando a cronologia de Danto (2006), o qual conceitua a pós-modernidade como um estilo artístico a partir de 1960. Segundo Danto o “moderno passou a parecer cada vez mais um estilo que floresceu de aproximadamente 1880 até 1960 a partir de então, tem-se o que se denomina pós-modernidade.” (Danto, 2006, p. 13).

Na Literatura, que é nosso lugar de fala, não podemos esquecer o movimento do Romantismo da primeira metade do século 19, que a meu ver representou, grosso modo, um fôlego, para a escrita feminina, um fôlego, não a liberdade de expressão que continuava para a mulher - uma balela. O slogan Liberdade, igualdade e fraternidade para a autoria feminina que usou a Literatura para demonstrar suas ideias, suas experiências, seus sentimentos, sua visão de mundo, ainda continuou no plano de uma idealização romântica, quando não muito – uma utopia – se olharmos do ponto de vista da palavra igualdade, que já na segunda década do século 21, não mudou muita coisa.

Por outro lado, a Literatura, a Arte, o pensamento científico, quando não o próprio religioso[1], foi responsável por provocar nas mulheres a busca por sua própria imagem social a partir dela mesma. Por este motivo, a produção litero-artística serve como um quadro social do pensamento feminino de uma determinada época em que cada uma dessas grandes mulheres viveu.

Nesse contexto, quando a multiartista e produtora cultural Marta Cortezão lançou um convite para que eu assim como as demais mulheres que assinam uma coluna nesse Feminário Conexão, eu pensei em riscar pequenas considerações sobre o universo das feminilidades, femininidades, as questões que nos provocam a pesquisar, a entender, a buscar o que nós mesmas somos. Eu uso o nós para se referir bem ao gosto da premissa do tornar-se mulher de Beauvoir (2009) mesmo! Do autoidentificar-se como mulher, do se ver mulher, do sentir mulher, do pensar mulher... e aqui – eu me coloco como mulher cis, abraçando minhas souer lésbicas, binárias, trans... toda aquela que se vestiu com o manto feminino e feminista sobre o seu corpo.

O título da coluna Riscos femininos dialoga com o meu primeiro livro solo de poesias Riscos de mulher ... e eu costumo explorar bastante o sentido ambíguo da palavra “risco” bem pontuado pela professora e pesquisadora de estudos feministas Joyce Amorim (2021), prefaciadora do meu livro. Risco por alertar, denunciar o risco que temos e vivemos diariamente por ter vindo do ventre como mulher - que ainda não encontrou o respeito devido, a equidade e o direito à vida no mundo em que o falocentrismo impera. Outro sentido, risco – o ato cotidiano para se referir à escrita, pois, uma de minhas filosofias de vida é escrever para falar de nós. Escrever para valer os sacrifícios das que vieram antes de mim e deixar registrado pela escrita – em especial - a literária de todas aquelas que lutaram para que eu tivesse nesse momento a oportunidade de escrever e expor o que penso, bem como as que me leem têm o direito de saber um pouco a respeito do que essa mulher faz para contribuir e somar com as nossas lutas feministas diárias.

Nessas palavras introdutórias, risco algumas inquietações de mulher que vivo e pesquiso e apresento-me como mais uma colaboradora desse espaço de construções poéticas e reflexões sobre o feminismo e feminino procurando desmistificar a cultura a respeito do patriarcado criado para a mulher e valorizar a divulgação das ideias pensadas pelas mulheres no que tange a suas narrativas de vida.

 

Referências

AMORIM, Joyce Cristina Farias de. Prefácio. In: ALVES, Cristiane de Mesquita. Riscos de mulher. 1ª ed. São Paulo: Editora Todas as Musas, 2021.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da História. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

 



[1] Um exemplo disso pode ser a escritora mexicana que viveu entre os anos de 1648 1695 Sóror Juana Inés de la Cruz. Dramaturga, filósofa e freira que revolucionou o pensamento crítico em uma época histórica que a Igreja Católica ainda se mantinha no poder e controle para ditar e regrar os costumes e valores sociais.  

@cris.mesquita.52

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