domingo, 21 de julho de 2024

ANIMAIS, CONTO DE SANDRA GODINHO

 

A N I M A I S

POR SANDRA GODINHO 

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As vozes vinham de dentro das paredes e trabalhavam em uníssono; era preciso, para combater a fome e a sensação de vazio. As entranhas davam o tom e a cadência, tangendo a necessidade que, naquela casa, eram muitas. Bílis, vísceras, nervos e podridão, tudo desgastado pelo uso. As tábuas de madeira rangiam, no risco de se romperem. As dobradiças das janelas, enferrujadas, não obedeciam ao manuseio das mãos, não abriam nem fechavam. Também já não havia mãos. As que habitavam a casa há muito tinham se ido, antes que ela se precipitasse sobre os corpos, soterrando músculos e pelancas. Só restaram os ruídos e o estrago nas fendas.

As fendas eram muitas. Profundas. Algumas se preenchiam com raízes de árvores próximas, que avançavam sobre o local que mais parecia um túmulo. Por acaso não sabiam que, para cada função, havia uma madeira específica? Paxiúba para revestir assoalhos, caibros de andiroba para afastar os carapanãs, acariquara para os parapeitos e as varandas, louro vermelho para as paredes laterais, palha do buçu para a cobertura. Tivessem escolhido a madeira adequada, não estaríamos lá, nos banqueteando com os restos.

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Aquela família ribeirinha resistia por obra de Deus ou do Diabo, só para entender o resto da sua existência. Nunca aprenderam que as árvores nos davam o mundo inteiro, a nós e a eles. As castanheiras forneciam os ouriços; os açaizeiros, o fruto, tão energético que punha todos de pé e em estado de espera, aguardando a farinha e o peixe. O fruto roxo saía da floresta e chegava ao porto ainda de madrugada, em paneiros ou rasas[1] de açaí, para ser comercializado em todo canto. Todos lá trabalhavam. O pai pescava o tambaqui, o menino colhia o açaí das árvores, a menina criava as galinhas e a mãe passava horas para produzir a farinha de macaxeira. Esse era o mundo inteiro, o mundo que conheciam, o que fazia explodir histórias em fúria lenta, sempre à noite e sob a luz dos candeeiros, conversando com os vizinhos e os compadres. Viviam bem até darem ouvidos a quem sempre foi surdo à natureza. Cederam tanto a esses rabos de conversa que, em pouco tempo, a vida degringolou, feito barranco de rio em época da vazante, quando os espaços de ar desmanchavam a terra.

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É só descuidar do fogo da coivara e deixar o terreno arder um pouco mais pra botar pasto, dizia um. Umas cabeças de gado, só para começar, dizia outro. Se não der, o compadre passa a terra pra frente, que o que não falta na região é grileiro e garimpeiro, retrucava o outro, forasteiro. A região se encheu deles, insistiam que tinha muita empresa querendo tomar posse e facilitar a mineração. Foram tantas as ideias alimentadas pelas palavras dos outros que o pai viu seu futuro cintilar antecipado na planície. Um futuro enfeitiçado, onde a tudo botavam preço: água, terra e céu. Um lago azul no meio do verde valia milhões. Foi assim que o pai se esqueceu do rio, da mata, dos animais, dele mesmo e dos gestos de generosidade que ainda vicejava na família e naquele mundo de compadrio. As palavras martelaram, costurando muitos dias e noites na imaginação, em poderosa urdidura. Até que a família colocou as palavras em prática. Atearam fogo e energia, se empenharam a desbastar o que viam pela frente. Não notaram as chuvas se espaçarem, a terra ressecar, os rios murcharem. Dentro em pouco, atravessaram até a outra margem do seu mundo. O açaí começou a queimar no pé, sem força de florescer. Os rios e igarapés perderam a correnteza. Nem golfinho conseguia atravessar as barreiras do imponderável, morrendo na superfície dos rios e dos lagos; a mandioca desistiu de crescer, mergulhada no próprio enterro, debaixo da terra. Sem o milho, as galinhas morriam de fome, desgraçadas pelo destino.

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Foram as primeiras a se rebelar depois que a generosidade deixou de existir entre eles. Os animais, como homens, se defendiam da fome, procurando outros caminhos. Cruzaram o sítio como se a família fosse a inimiga, bicando e debicando as mãos que encontraram pela frente antes de sumir pelos arbustos. Mãos que tentaram segurar a carne branca que ainda viam como sustento. De nervos expostos, sangrando, sem se conciliar ao sono, a família partiu, calando as corujas, os guaribas e os jacus, que deixaram de visitar o sítio.

Para nós, restaram as madeiras. Já não fazemos distinção de nenhuma delas, também nós mudamos com o novo clima; seguiremos abocanhando até a última farpa. No ano que vem, a gente não sabe como vai ser. Talvez tenhamos de aprender a nos alimentar de podridão, assim como os urubus.



[1] Cestos tecidos com fibras naturais

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Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

terça-feira, 9 de julho de 2024

FRAGRÂNCIAS DE UM TEMPO, POR ELIZABETE NASCIMENTO

 

FRAGRÂNCIAS DE UM TEMPO

PAULINA MACIEL CASTRILLON: UMA VIDA DE POESIA E HISTÓRIA

                                                               

       Por Maria Elizabete Nascimento de Oliveira

 

 A cidade, como a história da vida, é sempre a possibilidade desses trajetos que são nossos percursos, destino, trajetória da alma. Ecléa Bosi (2003, p. 75)

 

Paulina Maciel Castrillon, uma mulher de garra e determinação, minha querida aluna na Educação de Jovens e Adultos (EJA), recentemente, a (re)encontrei pelas mãos de uma amiga, por meio do livro: Minhas recordações de Cáceres (1999), uma obra recheada de letras afetuosas sobre o seu lugar e a sua gente, parece que eu estava conversando com Paulina no horário dos intervalos, na então Escola Estadual Milton Marques Curvo, senhora afetuosa e que quase todos os dias me presenteava com uma guloseima ou fruta.  Nascida nessa pequena cidade do interior do Mato Grosso – Cáceres/MT, Paulina poetizou sua profunda admiração pela terra que a viu crescer. Em 2022, o mundo se despediu de Paulina, mas suas palavras poéticas e suas homenagens a terra e às pessoas que marcaram sua vida continuarão a ecoar como um legado imortal que, mesmo tímido e com pouca visibilidade já perdura por quase 25 anos.

As poesias de Paulina homenageiam os lugares e as pessoas que fizeram parte de sua história. Seu jardim não era apenas um espaço físico, mas um símbolo de crescimento e transformação: “no jardim tinha retreta / dando volta os namorados / que bela forma de amar / com muitas rosas do lado” (1999, p.11). “Recuperar a dimensão humana do espaço é um problema político dos mais urgentes” (Bosi, 2003, p. 76).

Em seus versos, a autora atribui vida às ruas da cidade, cada esquina contava uma história, e o transporte era mais do que um meio de locomoção; era uma ponte entre o passado e o presente, entre os sonhos e a realidade “o Etrúria fazia as viagens / de Corumbá para cá / Trazia mercadorias, / atravessando o pantanal” (1999, p. 15). A memória é o ponto focal da produção poética de Paulina: “[...] Naquele tempo em Cáceres / Só tínhamos uma balsa / Era o Geraldo quem atravessava o rio / trabalhando noite e dia / fazendo a travessia” (1999, p.15).

Paulina também dedicou suas palavras às primeiras indústrias que impulsionaram o desenvolvimento de sua cidade natal: “À Usina da Ressaca / fazia pinga e açúcar / tinha açúcar de potô / que era morena e fina / igualzinha a um pó” (1999, p. 17) acrescento: “A Descalvados era outra fazenda / fábrica de graxa, charque e sabão / ela foi naquela época // muito importante para a região” (1999, p. 17). Em suas poesias, essas indústrias eram comparadas a gigantes adormecidos que despertavam para trazer progresso e oportunidades para as pessoas do lugar. Os monumentos históricos, por sua vez, eram descritos como guardiões do tempo, testemunhas silenciosas das transformações que contribuíram na formação cultural da identidade local.

É importante compreender no contexto supramencionado que:

 

A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente mas porque se relacionam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre ela incide o brilho de um significado coletivo. (Bosi, 2003, P. 31)

 

A primeira escola de sua cidade foi outro tema recorrente. Para Paulina, essa escola era um farol de sabedoria, um lugar onde as crianças começavam a trilhar seus caminhos e descobrir suas vocações. Os profissionais liberais e autônomos, como médicos, advogados, comerciantes e artesãos, eram celebrados como pilares da comunidade, cujas mãos e mentes construíam o futuro coletivo. “Ao professor Natalino / a quem eu peço licença / Dona Estela e outros / que foram grandes na história / e vão ficar na memória” (1999, p. 22) ou ainda, “[...] haviam as costureiras sob medidas / Branca da Rocha e Maria Maia / com máquinas sem motor / faziam tudo com muito amor” (1999, p. 23), complemento: “o famoso carpinteiro / trabalhando o ano inteiro / Em tudo: portas, janelas, móveis em geral / fazendo também funeral” (1999, p. 25).

Os eventos públicos eram momentos de união e celebração, onde a comunidade se reunia para compartilhar alegrias e tradições “os nossos pantaneiros / também eram violeiros / com sua viola e ganzá / rimava fazia versos / nas festas dos santos / tirava os biscoitos do altar” (1999, p. 51). As palavras poéticas de Paulina descrevem essas ocasiões como danças harmônicas, em que cada participante desempenhava um papel essencial na grande sinfonia da vida “mostrando a natureza / todo tempo trabalhou / para que as tradições deste lugar / não pudessem acabar”. (1999, p. 51). Os pássaros e as árvores surgem como símbolos de liberdade e continuidade, simbolicamente anunciam a conexão entre o ser humano e a natureza “As árvores da Praça Barão / são as grandes moradias / das andorinhas que aqui passeiam / todos os anos, alguns dias”  (1999, p. 45) “A Praça Barão do Rio Branco / É o grande cenário / Onde elas sobem e descem / fazendo o seu espetáculo” (1999, p.44).

A autora e também costureira, Paulina Maciel, tinha um profundo respeito pelo Pantanal, uma das maiores riquezas naturais da região em que nasceu. A fauna e a flora desse ecossistema único são descritas em suas poesias com apreço e reverência quase sagrada. Cada animal, cada planta era uma peça vital de um mosaico, onde a beleza e a harmonia da natureza se manifestavam para narrar a pacata cidade de Cáceres no interior de Mato Grosso, bem como, as relações que o lugar propiciava “Naquele tempo em Cáceres, / usava-se uns lampeõezinhos / pois as ruas eram escuras / conversávamos nos vizinhos” (1999, p. 13) ou ainda: “[...] quase todas as famílias eram ligadas, / por algum tipo de parentesco, / uns porque eram compadres, / outros por amizade” (1999, p. 13).

Paulina ressalta a importância da família. Para ela, a família era o alicerce de tudo, a raiz que sustentava sua existência e a fonte de seu amor e inspiração. Por meio de seus versos, expressa gratidão e admiração por cada membro de sua família ao reconhecer o papel fundamental que desempenharam em sua existência. Enfatizamos que:

 

O sonho, com efeito, não remete apenas à história individual, mas é igualmente a marca ancestral da espécie. É a expressão específica de um eu profundo que ultrapassa os limites da identidade oficial. Pode-se mesmo dizer que o sonho é o abandono total do princípio de identidade. Nele, graças a ele, cada um de nós ‘se despedaça’ e vive pequenas histórias múltiplas que o fazem participar de todas essas fantasias coletivas constitutivas da história humana. Fantasias cujos vestígios encontraremos nos contos e lendas de nossa infância, mas que estão na própria base do sentimento de pertencimento a um lugar e uma comunidade específicos. (Maffesoli, 109)

 

Paulina Maciel Castrillon partiu para outro plano em 2022, mas suas poesias continuam a florescer aqui no plano terrestre, nos corações daqueles que tiveram a sorte de conhecê-la ou de ler sua obra. Sua vida é um testemunho do poder transformador da educação e da capacidade humana de encontrar beleza e significado nas coisas simples e cotidianas. Suas palavras, carregadas lirismo vivencial, nos convidam para que todos nós olhemos com mais cuidado e amor para a terra que nos abriga e para as pessoas que fazem parte de nossa história, afinal “na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças” (Bosi, 2003, p. 35).

A autora nos deixa uma importante contribuição ao poetizar sua vida, aponta à possibilidade de perceber que não importa quando começamos a aprender ou a criar, o importante é que nunca deixemos de florescer e de espalhar nossa luz pelo mundo. Eu, ironicamente, fui aluna da filha de Paulina Maciel na graduação na Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT e, posteriormente, tive a honra de ser professora de Paulina na Educação de Jovens e Adultos/atual EDIEB Milton Marques Curvo, muito mais aprendi que ensinei. Partilhei de histórias com essa senhorinha e tenho a impressão de que ouvi alguns desses poemas na sua voz-melodia, afirmo: ela teve luz própria e esses poemas reverberam o brilho e amorosidades impregnados em Paulina Maciel Castrillon!

 

 

REFERÊNCIAS

Bosi, Ecléa. O tempo da memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

Castrillon, Paulina Maciel. Minhas recordações de Cáceres. Cáceres/MT: Gráfica Laser Ltda: 1999.

Maffesoli, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007.

 

Paulina Maciel Castrillon – “Nossa casa era sempre muito alegre. Ela costurava e cantava... cozinhava e cantava... fazia doces de frutas e cantava... cuidava de suas roseiras e cantava... brilhava a casa e cantava. Sempre gostou muito de ler e escrever. Mesmo tendo a quarta série primária, publicou um livro, contendo poemas onde narra suas recordações de Cáceres” (Castrillon, Maritza Maciel/filha-(2) Facebook).


Maria Elizabete Nascimento de Oliveira - Doutora em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso/Unemat, da tese publicou o livro: Sinfonia de Letras: Acordes Literários com Dunga Rodrigues (2021). Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT, com a pesquisa que originou o livro: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos (2019). Também é autora dos livros de poemas: Asas do inaudível em asas de vaga-lume (2019) e Granada (2023). Acadêmica do curso em Tecnologia de Teatro, na Ênfase de Produção Cultural pela Unemat, em parceria com a MT Escola de Teatro.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

LEIA MUITO, MARIA! NÃO ESTAMOS SOZINHAS, POR ELIZABETE NASCIMENTO


LEIA MUITO, MARIA! NÃO ESTAMOS SOZINHAS 

      Maria Elizabete Nascimento deOliveira[1]

Saímos de um estado que embora insatisfatório, embora esmagador, estava estruturado sobre certezas. Isso foi ontem. Até então ninguém duvidava do seu papel. Nem homens, nem muito menos mulheres. [...] Mas essa certeza nós a quebramos para poder sair do cercado.


                          [Marina Colasanti]

 

 

Apresentamos a obra - Chão Ancestral - de Margarida Montejano (2023), por intermédio de um recorte já anunciado no título dessa reflexão ao evocar o título de três poemas da autora. Ainda nesse viés, exibimos, na íntegra, essa tríade poética que ostenta a figura feminina nas suas diversas facetas e nos impulsionam às trilhas de emancipação e autoria de percursos.

 

LEIA MUITO

 

leia muito.

 

Leia marx

leia cristo

leia paulo freire

leia poesia!

 

Reflita, discute, estuda

dispa-te da venda

que te nutre a cegueira

 

e destrava

tua língua

tuas florestas

tuas matas

teus rios

teus bichos

 

resgate a ti deste lugar onde te calaram

(Montejano, 2023, p.49)

MARIA

 

tarde da noite Maria sai

enfrenta as ruas

os olhares de esgueio

o julgamento alheio

Maria sabe que a caminhada é longa

que há perigos à espreita

e, mesmo temendo, confia

endireita o tronco, respira fundo

floreia e segue

espanta o medo, segura a fé

enfrenta o mundo

sente na pele o preconceito, o machismo, a ignorância sente no corpo a sede,

a fome, o cansaço

Maria segue

Maria resiste

 

Maria vence.

(Montejano, 2023, p. 75)

NÃO ESTAMOS SOZINHAS

 

somos uma rede e em rede enredadas estamos

 

somos uma, somos muitas somos intocáveis

 

quando ferem a mim ferem elas

 

quando ferem elas ferem a mim

 

sou-somos um fio da rede e quando desfiadas, integramos outras

 

estamos “(entre)laçadas”.

(Montejano, 2023, p. 27)

 

O poema Leia muito traz a força da voz imperativa que pode ser interpretada como um apelo à leitura crítica e consciente que propõe a luta pela libertação pessoal e social por meio do conhecimento e da reflexão crítica. Composto por versos livres, sem rima ou métrica fixa, confere uma sensação de espontaneidade e urgência, onde a ausência de pontuação sugere um fluxo contínuo de pensamentos e de ideias.

O eu poemático evoca figuras icônicas como Marx, Cristo e Paulo Freire, além de “poesia”. Cada um desses nomes carrega uma simbologia de ideias e pensamentos que convidam à reflexão sobre diferentes aspectos da vida: política, espiritualidade, educação e a arte como expressão humana. Nos versos “Reflita, discute, estuda”, há um chamado à ação intelectual, onde os verbos no imperativo incitam o leitor a não ser passivo, mas a participar ativamente do processo de aprendizagem e questionamento do seu lugar no mundo.

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A metáfora: “dispa-te da venda que te nutre a cegueira” insinua a necessidade de remover a ignorância imposta, que é nutrida pela falta de conhecimento ou pela aceitação passiva de informações, fato que fortalece a ideia de que essa venda mantém a cegueira e se constitui como um impedimento ao necessário entendimento e à liberdade.

Versos como: “destrava tua língua / tuas florestas / tuas matas / teus rios / teus bichos” podem ser interpretados como um chamado para se reconectar com a essência natural e original do ser humano ao contexto externo, conexão vista como parte do processo de libertação e autoconhecimento.

Já o último verso: “resgate a ti deste lugar onde te calaram” reforça a ideia de que a leitura e o conhecimento são ferramentas poderosas para fortalecer a própria voz e identidade, que podem ter sido silenciadas por forças externas ou internas ao longo do tempo. Assim, o poema é uma convocação à emancipação intelectual e pessoal por meio da leitura e do pensamento crítico, onde a inclusão de figuras históricas e literárias serve para ilustrar a diversidade de pensamentos que enriquecem a compreensão do leitor sobre o mundo e sobre si mesmo; pois ler e refletir são atos revolucionários que desatam as amarras da ignorância e da opressão, permitindo uma reconexão mais profunda com a própria essência e com o entorno natural.

O segundo poema, intitulado: Maria apresenta uma narrativa sobre a resistência e a perseverança de uma mulher chamada Maria. Trata-se de um poema escrito em versos livres, sem rima ou métrica regular em que a linguagem é simples e direta contribui na intensidade e na clareza da mensagem. A estrutura linear da narrativa poética acompanha a trajetória de Maria e cria um efeito de progressão e movimento que permeia seu cotidiano. O poema situa Maria em um momento específico do dia: “tarde da noite”, horário que sugere um contexto de vulnerabilidade e perigo. Maria “enfrenta as ruas / os olhares de esgueio / o julgamento alheio”, indica que sua jornada não é apenas física, mas também social e emocional. Apesar dos perigos e do julgamento, Maria continua: “mesmo temendo, confia / endireita o tronco, respira fundo”. Destaca-se nesses versos a coragem de Maria que enfrenta seus medos com determinação e com uma postura física que simboliza resistência.

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Maria sente “na pele o preconceito, o machismo, a ignorância”. Esta tríade de opressões representa os desafios sociais que muitas mulheres enfrentam diariamente e que cada dia está mais evidenciado nas mídias e no contexto social. A menção ao “preconceito”, “machismo” e “ignorância” indica uma crítica social e um reconhecimento das lutas de gênero, no entanto, além das adversidades sociais, Maria também enfrenta dificuldades físicas: “sente no corpo a sede, / a fome, o cansaço”. Assim, destaca-se que a resistência de Maria é tanto física quanto emocional, ao mostrar sua capacidade de superar múltiplas adversidades. Nesse viés, a mulher quando fala, mesmo na voz de um eu poemático está, muitas vezes, a falar “de sua própria tessitura verbal, algo tão vivo, frágil e poderoso como a própria vida ali representada pela ficção”. (Coelho, 1993, p. 274).

O poema culmina com a afirmação de que “Maria segue / Maria resiste / Maria vence”. Este desfecho é uma celebração da força e da resistência de Maria que simboliza a superação de todas as mulheres que enfrentam desafios similares. Trata-se de uma ode à força e à resistência, especialmente daquelas que enfrentam preconceitos, machismo e outras formas de opressão. A figura de Maria é emblemática e representa a luta diária e a perseverança que muitas mulheres encarnam em suas vidas. A narrativa do poema é simples, mas não simplista porque destaca a trajetória de Maria desde a vulnerabilidade inicial até a superação. Cada verso acrescenta uma camada à compreensão do leitor sobre a experiência de Maria que culmina em um final que celebra a resiliência, a coragem e a resistência feminina e reconhece os desafios que enfrenta em sua trajetória cotidiana em busca de um processo evolutivo necessário e urgente. Evolução que como disse Nelly Novaes Coelho, “[...] podemos resumir como o embate dialético entre o eu e o outro, entre a unidade e a dispersão, entre o pensamento e a linguagem, ou em termos de forma poética, entre o ‘discurso’ e a ‘escritura’”. (Coelho, 1993, p. 60).

O terceiro poema: Não estamos sozinhas explora a ideia da coletividade e da interconexão entre mulheres ao destacar a solidariedade e a força que emergem da união. Escrito em versos livres, com uma estrutura compacta que reforça a ideia de união e interconexão, o texto traz ainda a ausência de pontuação tradicional, como pontos finais, fator que contribui para a fluidez da leitura e reflete a continuidade e a interdependência das experiências femininas.

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Nos versos: “somos uma rede e em rede enredadas estamos” nos reportam imediatamente a metáfora central do poema: a rede que simboliza a conexão entre as mulheres e sugere que estão intrinsecamente ligadas, que suas vidas e experiências estão interconectadas. Em: “somos uma, somos muitas / somos intocáveis” há uma dualidade que destaca a individualidade de cada mulher, mas também a força coletiva que representam. O termo: “intocáveis” insinua uma força inquebrável quando estão unidas.

Já nos versos: “quando ferem a mim ferem elas / quando ferem elas ferem a mim” enfatiza a empatia e a solidariedade mútua; onde a dor de uma é sentida por todas, instigam a pensar em como as experiências individuais de sofrimento são compartilhadas e reconhecidas coletivamente. Em: “sou-somos um fio da rede e quando desfiadas, integramos outras” alude que mesmo quando uma mulher é prejudicada ou enfraquecida (“desfiada”), ela encontra força e apoio na rede, integrando-se em outras conexões e renovando-se na/pela coletividade.

O termo: “entrelaçadas” reforça a ideia de que as mulheres estão firmemente ligadas umas às outras. A forma como a palavra é apresentada — “(entre)laçadas” — sugere uma camada adicional de significado e enfatiza que tanto a união, quanto a complexidade das relações destacam a força da coletividade e a importância da solidariedade. A metáfora da rede é central para a compreensão das experiências femininas e simboliza a interconexão e a interdependência de suas lutas cotidianas.

A estrutura do poema, com versos curtos e a ausência de pontuação tradicional, contribui para a sensação de continuidade e interligação ao refletir a própria natureza das conexões descritas. Cada verso adiciona uma nova dimensão à metáfora da rede, de modo a aprofundar a compreensão do leitor sobre a complexidade e a força da união feminina. A ideia de que as mulheres estão unidas em uma rede de apoio mútuo é central. A solidariedade é apresentada como uma fonte de força e de resiliência ao mostrar que a dor e a luta de uma são compartilhadas por todas. Esses elementos reforçam a ideia de que quando uma mulher é afetada, a rede de apoio permite a renovação e a continuidade da luta, sobretudo, ao despontar a resiliência coletiva, mesmo diante das adversidades.

Ao enlaçarmos essa tríade poética destacamos os quão interconectados precisam estar os aspectos focais apresentados nestes textos líricos na existência da figura feminina, primeiro pela necessidade de estarmos conscientes da árdua tarefa de construirmos rupturas por entre esse sistema econômico, político e cultural que sempre privilegiou a casta masculina; segundo pela necessária batalha para conhecer a nós, mulheres, nesse percurso que até pouco tempo foi delineado por homens e terceiro pela consciência do lugar que estamos a erigir e da necessidade da feitura desse lugar ser realizado no coletivo, no entrelaçar de mãos pungentes e, também, femininas. Desse modo, reafirmamos “a eterna tarefa dos poetas: ‘pensar o mundo’ e nunca pactuar com qualquer forma de poder arbitrário que aprisione ou esmague a liberdade de pensar, falar e agir de todos” (Coelho, 1993, p. 95).

                                                                            

Referências                                                                                                 

COELHO, Nely Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.

MONTEJANO, Margarida. Chão Ancestral. Fotografias de André Montejano. Curitiba: Eu-i, 2023.

XAVIER, Elódia. Tudo no feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.



[1] Doutora em Estudos Literários, atualmente, professora formadora do componente curricular de Língua Portuguesa na Diretoria Regional de Educação/DRE-Cáceres/MT.

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Margarida Montejano é natural de Mogi Guaçu, SP. Reside em Paulínia, SP. É doutora em Educação, funcionária pública municipal em Campinas. Poeta e escritora. Autora dos livros de contos "Fio de Prata", 1ª ed., Scenarium Livros Artesanais em 2022, reed. pela Ed. Siano em 2023 e, do livro de poemas “Chão Ancestral”, Ed. TAUP em 2023.


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Elizabete Nascimento é Doutora em Estudos Literários. Autora das obras: A Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos (2012); Asas do Inaudível em Luzes de Vaga-lume (2019); Sinfonia de Letras (2021); Granada (2023). Identidade mais sublime nessa vida: vovó do Samuel e da Alícia; acredita que o amor é infinito.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

O PORTO ALEGRE DE ALICE NO PAÍS DOS ASSOMBROS - POR ISA CORGOSINHO

 O PORTO ALEGRE DE ALICE NO PAÍS DOS ASSOMBROS

POR ISA CORGOSINHO

A questão inicial que se coloca no romance Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, é o deslocamento. Numa primeira instância, temos a geográfico, que se desdobrará progressivamente como jornada socioexistencial. O destino da professora paraibana aposentada é Porto Alegre (Nordeste x Sul), que parte para cuidar da família embrionária da filha, desenhada com traços pequeno-burgueses com projetos individualistas (uma crítica sem intenções de sutilezas, principalmente, aos filhos da classe média). A chegada em Porto Alegre é a queda no poço do não pertencimento. Alijada do lugar e dos objetos afetivos, largada pela filha, Alice se vê à revelia dos assombros. 

Na restrita bagagem, a narradora personagem traz um caderno com a capa estampada pela boneca Barbie, signo consagrado do consumo e modelo de beleza que alimentou o sonho de gerações de crianças e adolescentes no mundo inteiro (e agora, para não perder o mercado, ainda retorna com o discurso midiático do feminismo).

A presença desse signo no caderno, feito de diário da professora que lê Wislawa Szymborska, insere a ironia como estrutura mestra para compreender a composição de Quarenta dias.  A mudança, a queda, a travessia estão relacionadas à busca de um filho conterrâneo que emigrou para Porto Alegre em busca de trabalho.    

Para compreensão dos mecanismos interdiscursivos que constituem a ironia, é preciso considerar a presença de elementos da oralidade, principalmente na relação entre a narradora Alice e o diário com a Barbie, que é também uma das faces do leitor empírico.  Isso significa que o discurso irônico joga essencialmente com a ambiguidade, convidando o receptor a uma dupla leitura: linguística e discursiva. Esse convite à participação ativa coloca o receptor na condição de coprodutor da significação, o que implica sua instauração como interlocutor.

O diário de Alice parodia os diários adolescentes com a inserção de variados gêneros textuais verbais e não verbais recolhidos nas andanças, peregrinações da narradora personagem. Os capítulos são introduzidos por textos que Alice vai recolhendo em suas andanças, uma espécie de mapeamento da cidade, sinalizações semânticas da travessia, significâncias do percurso social e existencial.

Maria Valéria Rezende
No poço do não pertencimento, a Alice de Maria Valéria vai traçar uma nova cartografia do êxodo nordestino na cosmopolita Porto Alegre, quebrando as rotas normalmente conhecidas e mapeadas pela literatura (a autora nos mostra a extensão indiscriminada desse êxodo).  É nos rastros de um jovem desgarrado do sertão, em busca de trabalho, que a narradora refletora nos mostrará a periferia porto-alegrense, com a caligrafia e os desenhos conhecidos do mapa de exclusão no Brasil.          

O diário instaura a proximidade com o leitor empírico, parte de uma descrição minuciosa, dramática e humorística do percurso da personagem, nos vemos representados no prosaísmo das imagens e linguagem nas andanças de Alice. O uso do discurso indireto livre é um jogo de perspicácia da autora. A conversa com a Barbie é de uma coloquialidade irônica e brincalhona, está sempre simulando ou descrevendo o trajeto, as peregrinações, o modo de agir e sentir, como deve se portar, nos envolvendo num jogo que devemos aprender no meio da partida.

As transformações da personagem, que chega a morar nas ruas de Porto Alegre, são carregadas de episódios irônicos e muitas vezes responsáveis pela leveza necessária às dramáticas travessias de Alice. Outra questão relevante é o fato de a narradora personagem não abrir mão da condição de leitora. Observamos a preocupação em aliar a escritura com a humanização, o prazer da leitura, duas atividades estreitamente conexas no romance. A leitura é prazer, enquanto a escritura é trabalho, necessidade. O fato de Alice não abrir mão de portar livros entre os itens básicos de sobrevivência como moradora de rua, nos revela a condição diferenciada do vínculo da literatura com a vida, mesmo e, sobretudo, na precariedade.   

Quarenta Dias é substancialmente um jogo literário, que implica a possibilidade de alcançar o conhecimento do real, drama vivido pelo confronto dialógico do mundo escrito no diário da Barbie e o mundo abertamente vivenciado pelos personagens estreitados nos becos, nas ruas, nos espaços periféricos trilhados por Alice. O leitor experimenta o cansaço, as frustrações, a angústia da personagem nos desafios da busca por si mesma nos rastros do jovem nordestino, invisibilizado nas comunidades proletárias do Brasil. O jovem pedreiro é o duplo da filha acadêmica de Alice. A relação temporal forma uma coreografia entrecruzada de passado e presente, instalando a dúvida do que é verdadeiro ou falso, fora e dentro de nós, gerando a incerteza de uma identidade fixa.

Outro viés que merece atenção é o metaficcional. Patrícia Waugh[1] indica algumas interpretações importantes a esse respeito: uma extrema autoconsciência sobre a linguagem, a forma literária e o ato de escrever ficções; uma incerteza generalizada sobre a relação da ficção com a realidade.  Em síntese, a metaficção é o termo dado à escrita ficcional que autoconsciente e sistematicamente chama a atenção ao seu status como artefato para propor questões sobre a relação entre ficção e realidade.

Ao fornecer uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritas não só examinam as estruturas fundamentais da narrativa ficcional, mas também exploram a possível ficcionalidade do mundo externo ao texto literário. O resgate do romanesco metaficcional é intencionalmente guiado pela imprevisibilidade, fertilizado por misturas de sementes literárias variadas, cuja floração permite ao leitor empírico o contato com dialógicas confluências de estilos, gêneros e tempos narrativos.

Se o nosso conhecimento do mundo é mediado pela linguagem, a ficção literária, que são mundos construídos inteiramente de linguagem outra, continua a ser uma travessia útil para a aprendizagem sobre a construção da “realidade” enquanto tal. Esse dilema é confrontado em Quarenta Dias por meio de uma prática que resulta na escrita que consistentemente mostra a sua convencionalidade que, explicita e abertamente, exibe a sua condição de artifício e que, por meio disso, estuda a relação problemática entre a vida e a ficção.

A metaficção pode-se desdobrar em alguns tipos de relação: com aquelas convenções particulares do romance que mostram o processo de sua construção; com a forma da paródia, que serve tanto como exemplo quanto como uma crítica do conhecido romance parodiado. Esta última foi a opção de Maria Valéria com a retomada paródica do clássico Alice no país das maravilhas, de Lewis Caroll.

Em virtude de sua abrangência autoconsciente, a prática metaficcional tem-se tornado particularmente importante na compreensão da ficção contemporânea. A metaficção exibe, exagera e mostra as bases de sua instabilidade: o fato de que os romances são criados por meio de uma assimilação contínua das formas históricas cotidianas da comunicação. Não há uma “linguagem de ficção” privilegiada. Há linguagens de memórias, jornais, diários, histórias, registros de conversações, arquivos, jornalismo e documentação, comics etc. Essas linguagens competem entre si, de tal forma que uma extensão da “linguagem de ficção” é sempre, se não muitas vezes secretamente, autoconsciente.

Ao declarar a opção por uma escrita metaficcional que persegue a complexidade por meio de um catálogo de possibilidades linguísticas diversas, Maria Valéria retoma o viés plurilinguístico do romanesco tanto como uma resposta quanto uma contribuição a um sentido radical mais extremo de que a realidade ou a história são provisórias: já não há mais um mundo de eternas verdades, mas uma série de construções, artifícios e estruturas inconstantes.

Os escritores metaficcionais voltam-se interiormente ao seu próprio meio de expressão para examinar a relação entre a forma ficcional e a realidade social. Nessa perspectiva, Waugh observa que eles têm focalizado na noção de que a linguagem cotidiana defende e sustenta tais estruturas de poder pelo contínuo processo de naturalização, por meio do qual as formas de opressão são construídas em representações aparentemente “inocentes”.

O desafio que a obra se propõe é disputar o leitor contemporâneo, assediado por uma indústria cultural que interpela e embrutece mentes e sentidos, e trazê-lo à leitura de textos desafiantes, que apontem outras formas de compreensão e interpretação do mundo e da arte. Quarenta dias apresenta uma abrangente pluridiscursividade dialogizada. No nível do dialogismo intrínseco, a autora cita diversos escritores em epígrafes, com as quais estabelece um diálogo de interação e intercomplementação discursivas.

Qualquer começo é só prosseguimento e o livro dos eventos está sempre aberto ao meio . Wislawa Szymborska. (REZENDE, 2014, p.  25)

Não pergunte por que lhe escrevo. Escrevo porque as palavras estão aí, como a cidade, a noite, a chuva, o rio, diante de mim, dentro de mim, uma torrente de palavras que não me cumprem. (Marília Arnaud). (REZENDE, 2014, p. 7)

Passo agora o dia todo a escrever o diário. (...) Dá-me a sensação da onipotência, da onisciência, de ser dono dos meus dias, das minhas horas e minutos, da minha verdade enfim... (Edson Amâncio). (REZENDE, 2014, p. 21).

Ao lado desse coro autoral, Maria Valéria comparece com igual isonomia entre as demais consciências, apresentando seu projeto maior que se intitula Quarenta dias, em diálogo estreitíssimo com o conjunto de citações que precedem cada capítulo, sem abdicar do seu papel de regente do coro de vozes. Fica evidente, portanto, que a liberdade dos demais autores ficcionalizados é sempre relativa, que não se situa fora de um programa, de uma poética da autora.

Maria Valéria Rezende
Outro procedimento intertextual usado por Maria Valéria são as tipologias textuais, verbais e não verbais que a personagem vai recolhendo em suas andanças pela cidade: folhetos publicitários dos mais variados serviços e empreendimentos, guardanapos com anotações, comandas de restaurante, listas, santinhos, recibos etc. A diversidade textual serve de registro para interpretação do grande texto semiótico que é a cidade, estão ali colados no diário da Barbie. Essa colagem textual revela um desenho disforme do abandono e da opulência de um Brasil dos assombros.

O sentido dialógico presente na obra ultrapassa o contexto intrínseco das personagens e avança rumo ao diálogo cronotópico, reatando laços e rompendo outros no grande coro de galos cantantes que tecem a aurora, o pôr do sol e a noite do tempo grande do romance.

  O crítico argentino Ricardo Piglia[2] afirma em seu ensaio sobre memória e tradição que o ato criador é o entrecruzamento de textos. Ao discutir a tradição, ele exclui as relações de posse pessoal do escritor em face da linguagem, ao entender a memória cultural de cada um como um tecido cuja trama se compõe de citações, lembranças e esquecimentos.

Nos dias de hoje, tornam-se cada vez mais complexas as definições dos conceitos de inspiração, de originalidade e de intertextualidade já que nossa cultura tem-se caracterizado por traços impessoais e anônimos e pelo desaparecimento gradativo da noção de sujeito. Tudo isso se reflete na diluição da figura do autor e contribui para o alargamento do espaço textual e discursivo, pois tanto a obra quanto o escritor participam do sistema coletivo de enunciação de saberes. Dessa forma, é possível um diálogo permanente entre os textos, que passa a receber o sopro revitalizante de receptores futuros e da inevitável transformação dessa mesma tradição.   

O sopro revitalizante escolhido por Maria Valéria Rezende é o já citado Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, ele próprio composto de infinitas referências literárias, como destaca Sebastião Uchoa Leite, tradutor brasileiro do romance de Carroll. 

(...) é a comprovação das alusões históricas dos textos de Alice e, sobretudo das alusões literárias. Este é o caso das canções inseridas nos textos. (...) dos 24 poemas dos textos de Alice, são paródias de poemas e canções inglesas bem conhecidas na época  (LEITE, p. 150).

O que importa assinalar aqui é o quanto a fantasia carrolliana está presa a um universo de referências, inclusive as literárias, sendo, nesse último aspecto, tão metaliterária quanto inúmeras passagens dessa épica paródica que foi o Ulisses, de James Joyce.  Também os personagens de Carrollianos são, em grande parte, referenciados seja em poemas infantis e contos da tradição popular, seja a expressões e costumes locais. (LEITE, p. 150-151).

Assim como no Alice de Carroll, o leitor vai encontrar citações explícitas que comparecem no dialogismo extrínseco de Quarenta dias:

Tão de repente que Alice nem teve tempo de tentar parar antes de despencar no que seria um poço muito fundo. (REZENDE, 2014, p. 73)

(...) mil vezes o telefone, ecoando no apartamento vazio, vazio, porque eu não estava lá, tinha entrado pelos livros adentro, caído num poço profundo, passado para outro mundo louco, um ‘wonderland’ qualquer de onde esta Alice não pretendia voltar tão cedo.” (REZENDE, 2014,.p.. 85)    

A Alice de Maria Valéria Rezende nos apresenta, como um narrador refletor, uma Porto Alegre que não aparece normalmente na mídia. Já imersa no poço, começa a  escavação em busca do paradeiro do jovem paraibano Cícero Araújo, mas nos mostra muito mais: denuncia  a vulnerabilidade social do trabalhador informal, dos proletários  que vivem em comunidades periféricas, formadas em grande parte por moradores nordestinos que ali se estabeleceram em busca de trabalho e nunca mais puderam retornar à terra natal. Essa busca transforma-se na busca de sentido para sua própria vida, depois que se vê abandonada pela filha.  Assim como a personagem de Carroll, Alice vive sua experiência vertiginosa no poço labiríntico de uma Porto Alegre desconhecida:   

Saí, em busca de Cícero Araújo ou sei lá de quê, mas sem despir-me dessa nova Alice, arisca e áspera, que tinha brotado e se esgalhado nesses últimos meses e tratava de escamotear-se, perder-se num mundo sem porteira, fugir ao controle de quem quer que fosse. (REZENDE, 2014, p. 95) 

O salto fundamental de Maria Valéria baseia-se na utopia do reconhecimento de que a leitura do mundo, mesmo esfacelado pelas desigualdades sociais, apresenta a possibilidade de converter a angústia da escritura, vivenciada pela personagem narradora, no prazer do texto como um ato estético e ético. Oxalá possa abrir os horizontes da cultura complexa e multifacetada do mundo, e que sob nossa responsabilidade deveremos ser capazes de construir no movimento incessante de nossa peregrinação angustiada e alegre em busca do sentido da vida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

______. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et alii. São Paulo: Editora UNESP, 1993.

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas. Trad. e ensaio Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora 34, 2015.

CORGOSINHO, Isabel Cristina. Se um viajante no tempo grande do romance: entre a angústia da escritura e o prazer da leitura, em Italo Calvino no período 2010-14. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Pós-Lit. Universidade de Brasília - UnB. Brasília, pp. 278. 2014.

WAUGH, Patricia.Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction.London & New York:Methuen(New accentes), 1984. Vii , 176 .

REZENDE, Maria Valéria. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

 


[1] WAUGH , Patricia.Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction.London & New York: Methuen (New accentes), 1984. Vii , 176 p.

 

[2] PIGLIA, Ricardo. Memoria e tradición. In: CONGRESSO ABRALIC, 2,1991, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 1991. p. 60-66.

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Isa Corgosinho é natural de Brasília/DF, Professora doutora universitária, aposentada, poeta, cronista, contista, ensaísta. Livro “Memórias da pele” (Venas Abiertas, 2021). Coletânea Nós: Poesia selecionada e autora premiada/1° lugar Crônicas. (Selo Off-Flip, 2023); Coletânea Nordeste: poesia selecionada, conto destaque (Selo Off-Flip, 2023); Prêmio Off-Flip 2024 Conto Destaque; Prêmio Off-Flip 2024 Poesia Destaque.

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