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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS, POR ALE HEIDENREICH




 ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS |01


Por Ale Heidenreich

NEM GUERREIRA E NEM PRINCESA

 

" Mãe, compra um pai pra mim?"

 

Era essa a pergunta que a menina franzina, olhos tristes (é assim que se manifesta em sua memória) e de cabelos longos, (de promessa) fazia para a sua mãe, todas às vezes que ela saía para ir ao centro da cidade.

" Compro, minha filha!" Respondia aos risos, e se ía.

Era a filha caçula de uma jovem viúva com oito filhos.

A vida nunca lhe fora doce, mas também não era amarga de tudo. Tinha o básico para viver, e o mais importante: o amor de mãe.

Dizem que "a reza de uma mãe, arromba as portas do céu!" E acredito que reza de mãe é isso mesmo. Pois a sua mãe era brava e, como se fala hoje em dia, "uma guerreira".

Ela, como as mulheres de hoje, nem queria guerrear.

A "luta" de uma mãe solo (viúva ou deixada), para criar filhos não é nada fácil. E numa sociedade machista e misógina, então, nem se fala.

A mãe dela, não tinha outra opção, o marido havia falecido a deixando viúva aos 33 anos (e já tinha acumulado a média de um filho por ano). Aos 22 anos, aproximadamente, teve seu primeiro filho, e com 33 já tinha oito filhos, normal para um tempo em que a mulher só "servia" para parir e cuidar da casa. Mas deu o "azar" de o marido morrer e ficar sozinha para criar a "penca de menino". A mais nova com um ano e meio de idade. Criar, entenda-se: dar o que comer, vestir e educar para o mundo.

No caso daquela mãe, o destino, quis assim.

Mas falemos de mães solo, que são propositadamente abandonadas  na gravidez, porque o macho alfa acha que usar o pênis sem preservativo, (que tem o propósito ainda de evitar um filho "indesejado", de evitar se transmitir ou se contaminar com as doenças venéreas da vida  Sim! Elas ainda existem!  irá torná-lo menos macho.

Jogam a responsabilidade da prevenção contra a gravidez unicamente para a mulher, que se bombardeia de pílulas anticoncepcionais, muitas vezes, já desde a adolescência, e que raramente procura orientação médica para isso, correndo o risco já desde remotamente sofrer uma Trombose e vir a perder a sua vida, dentre outras consequências.

A responsabilidade, desde já, colocada no colo das mulheres: engravidou? "Toma que o pacote é teu!"

Dedos em riste, a Sociedade menospreza e as atiram à sua margem. Mais uma vítima sua, da falta de Educação Sexual, ausente nas escolas, e que poderia dar o verdadeiro Empoderamento do Corpo às suas meninas. "Meu corpo pertence a mim!",  e orientar os meninos desde cedo que o corpo das mulheres não é um "parque de diversões" deles, mas um templo da vida, e deve, sim, ser respeitado.

É preciso desmistificar e desconstruir o fato de que o homem pode enfiar o pênis onde quiser, dar as costas e deixar seus rastros, com milhões de crianças órfãs de pais vivos e omissos. Chamar a responsabilidade para ausência proposital e negligenciada, colocando um fardo mais pesado nas costas das mulheres, que igualmente ao homem, também queriam o prazer de um orgasmo, e saiu com um filho não planejado. - O prazer na cama é uma "via de mão-dupla".

Não queremos ser "Guerreiras"! Um título que só serve como "prêmio de consolação", igual que o de "Princesa", colocando a mulher no pódio da "inutilidade".

Mas, se somos guerreiras, seria essa uma "batalha" justa?

 

"Nos  colocam na arena,

Com machados de plástico,

Para derrotar leões ferozes e famintos.

Escudos toscos que nada protegem."

 

[Fragmento de "Nem Guerreira e nem Princesa" por A. H.]


No final das contas, somos intituladas disso e daquilo, mas não aliviam o nosso fardo. Não percebem, que não queremos sair por aí matando leões e nem dando "tchauzinho de miss", queremos apenas e tão somente, o respeito e a visibilidade pelo fato de sermos Mulheres.


"Dias Mulheres virão!"



terça-feira, 9 de agosto de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: O PROPÓSITO, POR RITA ALENCAR CLARK



                                            LIÇÕES DE SILÊNCIO|01

O PROPÓSITO

POR RITA ALENCAR CLARK


Diante dos meus olhos, o luxo, a pompa e circunstância, gente bonita transitando em trajes de gala, o convite do casamento chegara com bastante antecedência. “Ministro fulano de tal e Senhora convidam para o enlace matrimonial...” muito bem, agora só precisaria ficar atenta onde pisar. Não estava disposta a ser alvo daqueles velhos endinheirados, bem vestidos e amorais que circulam por entre os eventos importunando as incautas. Não, não dessa vez! Naquele evento pomposo eu não estava sozinha. Estava noiva e meu noivo era um cara legal, um dândi, como eu gostava de imaginá-lo. Só precisava, agora, saber que tipo de música se "dançava" naquela festa.

Devia estar por meus 22, quase 23...linda, crédula, culta, alma flamejante e romântica, fazia poemas. E vou relembrando...olhando de fora, hoje, com os olhos dos meus 58 anos.

Nessa noite conheci o Ateliê de Francisco Brennand, o mestre pernambucano. Uau...um casamento lá! Éramos convidados, padrinhos, uma distinção ao meu noivo dândi. O casamento ocorreu como um daqueles shows do Pink Floyd com formas, luzes, sensações, jardins com enormes esculturas que brotavam do chão, dos telhados, em formas fálicas... como a delimitar fronteiras naquele universo paralelo dos ricos, dos muito ricos, gerações, dinastias de ricos, pensei.

Sentei-me, obviamente, aonde me conduziram a sentar. Lado oposto à mesa, como era de bom tom, ao meu noivo. Achei péssimo. Falávamos por gestos e olhares. Alguns fulminantes! Sentou-se ao meu lado a esposa do ministro. Por alguns momentos me diverti pedindo ao garçom pra deixar a garrafa de espumante...do outro lado da mesa ele fazia um gesto de tampar a taça, sabe como é? - A pessoa, naquela festa glauberiana, não vai beber?  Pior, um noivo dândi querendo me regular a loucura, querendo lógica no absurdo?! O garçom deixou a garrafa. Ela entreolhou-me e sorrindo perguntou, antes de dar o desejado gole, “Você já sabe qual é o seu propósito, não  é  meu bem?... “. Ainda envolvida pelos ares dos jogos de domínio e sedução, estanquei diante de seus olhos; verdíssimos, com ímpetos subliminares de sabedoria e decadência, realçados pelos cílios borrados deixando marcas esfumadas, controladas ao olhar. Respondi meio no impulso, “Nessa festa?” Ela deu uma boa gargalhada, rimos juntas e brindamos. Havia uma corte ao seu redor, percebi depois, pessoas com rádios nas mãos, falando em códigos...Gente, por falar em código... procurei-o tentando demonstrar certo enfado de minha parte, apenas para confortar o ego do noivo. Ela insistia, olhos cravados em mim. “Já sabe o seu propósito?” E começou a me dizer do seu próprio propósito, como a desenhar os rudimentos da vida de uma mulher que casa com homem poderoso. Foi um tapa no meio da cara, pra acordar. A esposa do ministro desfiava um monte de mágoas e frustrações, ódios tardios, humilhações e raivas ancestrais. 

Quanto mais ela falava, mais ela bebia, whisky, cowboy, alguém providenciava gelo, ela não queria, nem a Perrier. Queria papo, queria passar mais uma festa, e se divertia comigo, talvez com minha total inconsciência de tudo que ocorreria diante de mim naquela noite. Ela adorou minha espontaneidade, minha alegria genuína... talvez até tenha visto uma sombra de pena em seus olhos, mas não era o que seu sorriso luminoso demonstrava. Curiosa, queria saber que propósito é esse que se autoalimenta de sua dor, deixando marcas ao redor dos olhos que não saem com demaquilante?... Valeu(vale) a pena?!  Ela quer saber de mim. “Eu quero casar, ter filhos, estudar mais, escrever, namorar, viajar... fazer bodas de prata... ficar velhinho e cuidar um do outro.” Ela pediu mais uma dose, dupla, sem gelo, um charuto? “não, obrigada”, enquanto ria, ria pausado, aos poucos, explodia uma gargalhada, dava um gole, outra gargalhada, outro gole... comecei a desconfiar que ria de mim, de minha incorrigível sinceridade.” O seu propósito não conta para acompanhá-los, o seu propósito será o propósito que ele decidir, pensou que era passe livre, minha querida? ” Imagina, eu”... Ela não me dava trégua. “Precisa aprender a fazer o jogo do nada sei, não quero saber. Há pactos que surgem após o início do jogo. O jogo do silêncio.”

O jantar estava indescritível de tão bom, as bandas, as luzes, a elegância das pessoas, esse perfume de riqueza e poder, tudo criava, em mim, uma atmosfera de sonho. Pensei na iminência de um desmaio... socorreu-me o noivo, levou-me para o jardim, deu-me água e algumas broncas pelo meu mau comportamento social! “Você sabe que está sentada ao lado da esposa do ministro? Ela não pode beber, fica agressiva e vulgar, faz o ministro passar vergonha!” Sério? Ela não pode beber? Já tomou pelo menos 3 duplos, sem gelo. Está divertidíssima! Ele voltou, a contra gosto, ao seu lugar.

Hora do brinde. Tim tim tim! Os noivos estavam tensos, não se olhavam, o microfone já estava aberto e a mulher do ministro dava tapinhas checando, olhei para o outro lado da mesa e vi o noivo enxugando a testa. “Boa noite...” a mulher estava embriagada, completamente, não havia o que se pudesse fazer! Um clima de pânico já se instalara no ambiente, tive pena, mas ao mesmo tempo estava ansiosa para ouvir o que tinha a dizer, uma espécie de sarcasmo íntimo, inconfessável. O ministro, blasé, olhava para o nada. Antes que conseguisse falar alguma coisa, a mulher caiu sobre a mesa, tremendo e esbravejando, louca de raiva ao tentar arrancar a garrafa de whisky das mãos do garçom. Uma tropa de assessores tentou contê-la, porém antes de ser retirada ainda teve tempo de pegar o microfone e xingar o marido: “Assassino de alma, corno de merda, matou minha vida...me larga eu vou beber!! Eu vi você passando a mão nas coxas daquele rapazola, eu vi! Esse é o verdadeiro propósito menina, olhava cambaleante para mim, o silêncio! O meu silêncio, em troca de uma boa vida!!” E gargalhava! Nesse momento os fogos de artifício espocaram nos céus de Brennand (para alívio de todos) e a festa rolou solta até de manhã. Não ficamos para o café da manhã.

Pensei por muito tempo nessa mulher... tinha horror de um dia transformar-me nela - numa metamorfose kafkaniana - tão rica, tão bela, tão infeliz! Serviu de lição, sempre pensava no tal propósito. Mulher não tem direito a ter um propósito de vida só dela, afinal? Um casamento sem propósito comum era apenas um pacto? Ainda penso naquele noivo dândi, poderia não ter desistido dele tão rápido, poderia ter insistido mais... não consegui. Tive medo de acordar no meio da noite, velha, bêbada, triste, sem propósitos na vida, sem autoestima, apenas uma triste figura de olhos borrados e verdes. Uma mulher que não se reconheceria no reflexo, cheia de mágoas e raivas rochosas. 

Agora, estou eu aqui, nesta noite chuvosa, a vida veio e passou, deixou suas marcas em mim, levou anéis caros, casa de praia, obras de arte..., mas deixou-me o que importa, afinal: os filhos desejados, a poesia e os gatos. 


sexta-feira, 29 de julho de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|11


CRÔNICA: CONEXÕES

Por Carollina Costa


Ontem estive em um encontro de mulheres que surgiu através de uma postagem de Instagram incentivando a nós, mulheres, a nos unirmos mais. Fiquei pensando na postagem, nesse movimento, na necessidade de nós, mulheres, olharmos mais para nós mesmas e me surgiu a crônica que segue. Mesmo que curta, espero que possa incentivar você, leitora, a buscar a si mesma e conexões que apoiem o seu transformar.


Conexões

É comum que ao nos compararmos com outras pessoas sigamos um desses dois vieses: ou acreditamos que todos têm uma vida igual a nossa ou que somos a única pessoa no mundo que vive de determinada forma e ninguém é capaz de nos compreender. Dois extremos problemáticos. O primeiro não nos permite enxergar as diferenças, ora sutis ora gritantes, que existem entre uma pessoa e outra, uma forma de vida e outra. A segunda nos cega quanto às semelhanças que partilhamos, seja nos detalhes expostos do dia a dia ou na sutileza do nosso modo de ver e pensar sobre as coisas da vida.

Esses dias, por causa de uma simples, porém não tão simples postagem de Instagram, conheci diversas mulheres que se reuniram no intuito de partilharem suas jornadas individuais com outras mulheres e formarem, juntas, uma rede de conexão para que não nos sintamos tão sós em nossas caminhadas. Nessa conexão o foco somos nós, para nós e por nós, individualmente e coletivamente. Parece pouco, mas é uma atitude e tanto.

É comum às mulheres olharmos sempre para o outro: o que o outro pensa, como o outro nos vê, o que o outro acha de nós, o que o outro quer de nós, como podemos agradar mais ao outro, como podemos ser mais e melhor aceita pelo outro... E esse outro não é necessariamente um parceiro, pode ser a família, um grupo de amigos, um grupo de convívio social ou mesmo a sociedade onipresente como um todo. Mas é sempre um outro, nunca ela. Nunca nós. Entramos, assim, numa espiral descendente de desejos e expectativas do outro sobre nós que, honestamente, jamais serão supridas, visto que é próprio do ser humano, seja homem ou mulher, desejar constantemente. Nessa espiral nós também desejamos constantemente e sem retorno, porque ao desejar incansavelmente a aprovação do outro que nunca estará completamente satisfeito nos perdemos de nós e aí descemos mais e mais, nos perdendo cada vez mais.

Ao traçar o limite entre o eu e o outro — lembrando que limite não é muro, é sobrevivência e sanidade — muitos chãos tremem, muitos laços se desfazem e cordas se rompem. É nesse lugar meio limbo meio transformação em que buscamos novas mãos amigas para nos levantarem enquanto ainda não conseguimos ficar de pé. Um lugar partilhado por muitas de nós quando decidimos conhecer quem nós somos fora dos moldes pré-dispostos nas prateleiras do convívio, e é aí que essa postagem de Instagram e tantos outros movimentos de união entram, nos convidando a sair desse lugar e concretizar o novo.

Cada mulher que caminha em direção a outra e estende suas mãos para esse movimento de união pode transformar a condição daquela que ainda não conseguiu se levantar. Não é sobre sair da sua caminhada para incorporar os passos de outra, mas sobre cada uma de nós, seguindo seu próprio ritmo e caminho, respeitar e ajudar a mulher ao lado a caminhar com suas próprias pernas em sua própria jornada com mais sororidade.




sábado, 4 de junho de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|10


ANCESTRALIDADE É POESIA

Por Carollina Costa


Já faz um tempo que a temática de ancestralidade tem sondado meus rascunhos. Aquela ancestralidade familiar, de pai e de mãe, olhando para os antepassados e tentando conectar essa passagem de tempo com o tempo presente que sigo vivendo. Lembrando das mulheres da minha família, fui resgatando os desafios, as forças, as fraquezas, as transcendências — para mim, amar sem barganhar já é um ato transcendente — e fui tecendo falas, cenas, memórias que tenho ou me foram passadas por essas mulheres. Desses pensamentos nasceu um poema que dei o nome de Raízes, e porque ele trata da minha ancestralidade materna achei que essa coluna seria um bom espaço para compartilhá-lo.

Quantas histórias a gente escuta, quantas mais a gente assiste e só vem entender depois. Seja na felicidade ou na dor, ter a companhia dessas mulheres em mim através de ventres e memórias é a certeza de que jamais estarei só.

E vamos ao poema. 


Raízes

Avó
Mulher mais forte
que já conheci

Madrinha
A canção de ninar
que nunca esqueci

Mãe
O coração infinito
que no ventre me fez ter sentido
sentindo amor
até no chute que podia trazer dor

Bisavós
Trisavós
E outras mais

Tantas mulheres que
de ventre em ventre
viraram minhas ancestrais

Do saber passado
Cada qual com seu próprio fado
Fardo

Transforma tristeza em alegria
para a chegada da nova cria
que, talvez, quem sabe
saiba reciclar memórias




sábado, 30 de abril de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|09


CRÔNICA: EMPODERAMENTO É BRUXARIA

Por Carollina Costa


Essa semana tive a felicidade de estar no card de estreia da seleção de poetas para a coletânea I Tomo das Bruxas e comecei a pensar um pouco mais sobre essa personagem: a bruxa.

No geral, quando pensamos nos contos de fadas e filmes, a bruxa é aquela mulher mais velha, má e amargurada que quer sempre prejudicar a princesa protagonista da história, mas por que essa relação? Como isso afeta o nosso imaginário, nosso entendimento do feminino e até mesmo como a sociedade enxerga — ou encaixota — os diversos tipos de mulheres? Meus pensamentos sobre isso tomaram o formato de crônica e, em homenagem à estreia do I Tomo e às múltiplas mulheres que habitam cada uma de nós, resolvi compartilhá-la por aqui no texto dessa semana.


Empoderamento é bruxaria


Não há uma mulher que não tenha crescido ouvindo que deveria ser uma "boa menina", seja em casa ou na sociedade ou por todos os lados. Ao crescerem ouvem que devem ser "boas mulheres", e não é possível ser uma "boa mulher" se você não tiver um pouco da "boa menina" dentro de si. Mas o que é ser "boa" e "boa" para quem?

A "boa menina" e "boa mulher" normalmente são boas para todo mundo, menos para elas próprias. Você é "boa" se não discute, se não discorda, se sabe se vestir e se "comportar", você é boa principalmente se se esvaziar das suas necessidades para enxugar o gelo das necessidades infindáveis de todos a sua volta. Reconhecemos aí a imagem clássica das princesas.

Do mesmo modo, é "má" aquela mulher que olha para si mesma, que reconhece suas necessidades, que reage quando ferida e que impõe limites para não ser mais explorada — emocionalmente, psicologicamente, fisicamente, da forma que for. É "má" a mulher que clama pela e com a própria voz, que diz Sim quando quer dizer sim e Não quando quer dizer não, sem rodeios. É "má" a mulher que toma posse de si mesma, de seus encantos e desencantos, de seu corpo, sua mente, sua caminhada. Vemos aí a imagem das bruxas, nem todas as de contos de fadas, mas principalmente as humanas que foram queimadas.

Se você toma um chá e cura uma gripe, é bruxa. Se envelhece, é bruxa. Se tem mais saberes que um homem sobre algo, é bruxa. Se diz não, é bruxa. Quando penso nos contos de fadas antigos, especialmente os da Disney, que embalaram minha infância, lembro das princesas sendo reféns da vontade de alguém o tempo inteiro, trocando apenas de algoz. Quando penso nas bruxas lembro de mulheres que, mesmo com o mundo virando as costas para elas, eram dotadas de poderes sobre-humanos, criavam e "descriavam", tinham o que queriam quando queriam e como queriam sem se render a algoz nenhum.


Hoje em dia os contos de fadas estão mais modernos e desconstruíndo a muralha por séculos erguida entre a bruxa e a princesa, a "moça boa" e a "moça má". Elza vai em busca de si mesma e encontra seu lugar em meio à natureza. Malévola recupera suas asas e, estando inteira, abraça a inteireza da sobrinha Aurora, amando-a mais que o príncipe e salvando-a no final. Merida se disfarça de menino e luta pela própria mão em casamento, superando todos os príncipes e vencendo a disputa. Rapunzel rende um fugitivo e foge com ele da torre para explorar o mundo. Princesas com traços de bruxas. Os contos estão tentando ficar um pouco mais próximos da realidade.


Vibro ao ver essas narrativas mudarem, mas até serem internalizadas no imaginário social com a força dos contos tradicionais vai levar um tempinho e essa divisão simplista vai demorar para se desfazer. Até lá, escolho abraçar a bruxa que há em mim. A bruxa que diz não, que protege seu caminho e seu espaço, que na jornada do empoderamento não será vencida pelo cansaço. 


Como Malévola e Aurora receberam uma a outra, assim as "Carollinas" que me habitam vão se recebendo em amor, respeito e crescimento.





sábado, 16 de abril de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 





LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|08


VERONICA FRANCO: BIOGRAFIA E POESIA


Por Carollina Costa


Buscar referências femininas na literatura é sem dúvidas uma reeducação do nosso olhar e julgamentos sobre o que é literatura e quem a escreve. Não raro nossa lista de referências é repleta de autores masculinos, com uma Clarice Lispector aqui, uma Virginia Woolf ali, uma Carolina de Jesus acolá acenando de longe. E que bom que, apesar dos pesares, essas mulheres conseguiram seu espaço no universo literário, espaço esse que precisa ser constantemente reafirmado das mais diversas formas.


Pensando sobre as diversas formas de expressão da mulher nas letras, essa semana resolvi tirar mais uma escritora da lista das desconhecidas e trazer para a coluna do Batom Vermelho. Poeta que conheci através de um filme de ficção biográfica que me comoveu profundamente e me fez refletir se, sendo uma mulher ambiciosa em um tempo que mal podíamos pensar, seria possível ter escolhas ou destinos felizes. Apresento aqui uma breve biografia da poeta e cortesã italiana Veronica Franco, finalizando com um poema de minha autoria intitulado À Veneziana.


Veronica Franco: Breve biografia

Nascida em uma época que só existiam dois tipos de mulheres — e uma jaula social para cada uma —, Veronica Franco (1546-1591) foi  uma cortesã da Itália renascentista e filha de Paola Fracassa, que também foi uma cortesã e lhe apresentou a profissão. Naquela época havia um documento chamado “Catálogo de todas as principais e mais honradas cortesãs de Veneza” (1565) e nele constam os nomes de Paola e Veronica, o que as caracteriza como cortigiane oneste (meretrizes honradas, virtuosas).

As cortigane oneste eram as mulheres que não só eram cortesãs, mas acompanhantes sociais de homens da alta sociedade veneziana por serem as únicas mulheres permitidas à estudos como literatura, geografia, política e economia, além de viagens e presenças em festas. A intelectualidade dessas mulheres fazia parte do trabalho de acompanhante, além de ser um atrativo que diferenciava a cortigana onesta de outras colegas de profissão, como a meretrice.

Em Poems and Selected Letters, livro organizado pela Universidade de Chicago com poemas e cartas escritos por Veronica, é contada um pouco da biografia de Veronica ressaltando que ela também foi poeta e sua escrita era respeitada pelos homens da alta sociedade veneziana, algo incomum para uma mulher daquela época e com sua profissão. Quanto mais crescia como cortesã, mais se envolvia com os círculos de intelectuais da época, tornando-se anfitriã de muitas das reuniões dos Salões Literários italianos.

Veronica escrevia sobre a situação das mulheres de Veneza, algo considerado atualmente como protofeminismo — fazendo, inclusive, referência a outras mulheres escritoras de sua época como Isotta Nogarola, Cassandra Fedele, Laura Cereta e Olimpia Morata — e seus poemas flertam com o erotismo. Sua linguagem erudita e conhecimento das formas poéticas, como o soneto petrarquiano, a colocava par a par com seus correspondentes masculinos, resultando em vitórias em duelos de rimas nos círculo de intelectuais venezianos e um tutor que ajudou Veronica a publicar seu primeiro livro de poemas chamado Terze Rime.


Em 1580 Veronica foi acusada de bruxaria pela Inquisição Veneziana. Foi levada a julgamento e o filme de ficção biográfica chamado Em Luta pelo Amor (que não é tão romântica quanto o título sugere), retrata essa cena com um discurso de Veronica forte e emocionante sobre suas escolhas de vida e a situação da mulher veneziana. Ela foi absolvida, porém sua reputação não foi mais a mesma. Veronica morreu aos 45 anos numa das vizinhanças mais pobres da cidade.

Na biografia ficcional que assisti, uma das cenas que me marcou muito foi quando Veronica, já cortesã, conversava em segredo com sua antiga amiga de infância Beatrice — oferecida pelo pai em casamento para um senador quase 30 anos mais velho — e Bea pede para Veronica tornar sua futura filha uma cortesã pois "nenhum inferno bíblico poderia ser pior do que o inferno vivido nessas quatro paredes" em que Beatrice se encontrava dia após dia, isolada e controlada por tudo e todos a sua volta. Em resposta, Veronica diz que ela "não sabe o que pede" porque "essa jaula pode parecer grande, mas ainda é uma jaula" que também mantinha Veronica presa, só que de outra forma. Ambas sentiam-se como fantoches nas mãos dos homens que as cercavam, uma na cozinha e outra no quarto, limitadas aos personagens que elas deveriam representar.

Nos poemas e cartas escritos por Veronica, é possível perceber as denúncias que ela fazia acerca de sua situação e da situação das mulheres de Veneza. Não só sobre as cortesãs e meretrizes, mas também as mães e as adolescentes, e sobre como todo o sistema legal e social era organizado para que as mulheres estivessem sempre subjugadas a alguma figura masculina.

As cortesãs, em especial as cortigane oneste, eram as mulheres que gozavam de maior liberdade. Eram as únicas que tinham controle sobre suas finanças e posses, as únicas permitidas aos estudos eruditos de sua livre escolha e, até certo ponto, também escolhiam quem receberiam em seus leitos. Digo até certo ponto porque deitar com o homem certo era o que lhes proporcionava as demais liberdades. No fim das contas é apenas uma jaula maior. Mas em época que à mulher só era permitida uma vida enjaulada, valia a tentativa de escolher a jaula menos claustrofóbica.


Os séculos passaram e celebro, como em postagens anteriores, a atual liberdade da mulher em ser dona de si mesma e de tudo que possui, incluindo palavras e corpo. Celebro aqui com minha escrita através de um poema que fiz relacionando cenas do filme Em Luta pelo Amor com passagens do livro Poems And Selected Letters.



À Veneziana


Veneza

Paraíso, orgulho e beleza

Onde o prazer é o único dever


Dançamos com destinos selados

Mas até este encontro

Enfeitemos os fatos


Da mulher celebramos a beleza

E a que não pudermos desfrutar

Mantemos presa


Já as que podem nos agradar

Até ao Rei da França iremos ofertar

E em troca nos dará armas e navios

Com Veronica a representar-nos neste pedido


Veneza não é suficiente só

Uma cittadini originale é preciso

Para que nossa nação não vire pó


Ganha

Celebra

À veneziana vencemos

Com a veneziana festejemos

Até a próxima queda


Agora

Nossas Vênus penduradas semi-mortas


Veronica

A vera icona veneziana

Pela Inquisição inquirida

Pelo Estado absolvida

Finda os dias

Sem festas ou acolhidas

sábado, 2 de abril de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|07


RESENHA: O DIÁRIO DE ANNE FRANK


Por Carollina Costa


As diversas crises que estamos vivendo ao redor do mundo não estão deixando ninguém passar ileso. Desde o final de 2019 todos passamos por perdas e sofrimentos de diversas ordens e longe de mim entrar numa de "essa dor é maior do que aquela".

Só quem sente é que sabe. Os sapatos dos outros são sempre dos outros e cada um utiliza o seu para caminhar em sua própria jornada. E agora também com tantos conflitos bélicos em alta ao redor do mundo, todo esse cenário de caos me fez lembrar um único livro de uma autora surpreendentemente singular: Anne Frank.

No texto dessa semana irei apresentar uma resenha do livro O Diário de Anne Frank, seguida se um poema de minha autoria que fiz relacionando o livro com os eventos atuais.


Resenha: O Diário de Anne Frank, editado por  Otto H. Frank e Mirjam Pressler

Anne foi uma menina judia nascida em Frankfurt, Alemanha, de família humilde que se mudou para Holanda assim que surgiu a Alemanha de Hitler. Ela, sua família e outros judeus viveram por dois anos no sótão do escritório de seu pai até serem delatados e levados aos campos de concentração. Nesse tempo ela escreveu um diário sobre as experiências vividas em seu mundo interior e exterior durante esse período.

Anne foi uma criança de extrema sensibilidade que, mesmo entendendo tudo o que se passava ao  seu redor, ainda assim conseguia trazer toques de leveza e humor para seu cotidiano e, claro, para suas anotações. Certa vez, próximo do fim da guerra, ela ouviu no rádio que o governo holandês colheria testemunhos escritos e oculares dos sobreviventes, e foi aí que ela resolveu que faria de seu diário um livro.

Anne morreu de tifo aos 15 anos e seu pai, Otto Frank, foi o único familiar sobrevivente do Holocausto. Em busca de realizar o desejo da filha, entregou os manuscritos ao Instituto Estatal Holandês, que, com o tempo, veio a ser estudado e se tornou um livro. Em 1960 foi inaugurada a Casa de Anne Frank, um museu em Amsterdã que fica exatamente onde era o antigo esconderijo de Anne e sua família.  

Misturando alegria, medo e várias outras emoções num grande caldeirão, O Diário de Anne Frank é um livro que indicaria em qualquer época, mas acredito que nesse momento é possível criar uma conexão com o livro de uma forma que em nenhum outro tempo seria possível. E a linguagem é bem tranquila, o que ajuda nesse processo.



Antes dos quinze

É preciso coragem para

Ser feliz

Isso já é sabido

Mas essa coragem só vem

Quando se olha além

Do próprio umbigo


Ninguém tem autoridade

Para dizer que a dor do outro

Só vale metade

E que só a sua própria

É verdadeiro sufoco


Antes dos quinze anos de idade

Já havia uma pequena

A um pé do campo de concentração

Ensinando lição

A muito adulto airado


Enxergar bem o que se tem

Não é pecado

Querer ir além

É mais que desejado 

Juntar os dois

É garantia de sustento

Da sola de sapatos gastos

De quem caminhou por tantos altos e baixos

Mas ainda escolhe ficar de pé




sábado, 19 de março de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|06


CLAUDINE, CLAUDETTE, COLETTE: DA CRIAÇÃO À CRIADORA


Por Carollina Costa


Nesse mês de março celebramos o Dia Internacional das Mulheres no dia 8 e esse marco da nossa constante busca por voz e direitos não poderia ser esquecido por aqui. Para celebrar a data e tudo que ela simboliza, trago aqui uma breve resenha do filme Colette, baseado na vida da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette.

Nascida no interior da França no século 19, Colette foi uma romancista casada com o editor Henry Willy que fez dela uma das escritoras fantasmas que ele possuía em sua editora. Colette sempre foi criativa e a frente do seu tempo, e foi baseada em suas memórias de adolescência que criou as histórias da série Claudine (1900), obras que por muito tempo Willy assinou como se fossem apenas dele, a ponto de vender os direitos para uma editora sem consultar Colette sobre o assunto. No fim, Colette consegue resgatar os direitos de suas obras e passa a escrever com seu próprio nome, continuando sua carreira de escritora, agora também atriz de teatro encenando, inclusive, livros seus que viraram peças teatrais.

Embora fosse mais liberal do que muitos maridos de sua época, Willy usou sua vaidade como forma de ter controle sobre a esposa. No filme, há cenas em que Willy tranca Colette em casa ou no quarto e só a deixa sair após ela escrever determinada quantidade de páginas de alguma história que ele aprove. Ele tinha seu time de homens escritores fantasmas, mas nenhum deles lhe deu tanta fama e sucesso quanto as histórias escritas por Colette, uma mulher e sua esposa.
Através de Willy, Colette foi apresentada ao meio dos artistas e literatos e, aos poucos, aprendeu a tirar proveito dessa influência para si mesma. Conheceu mais mulheres também artistas, envolvendo-se romanticamente com algumas e criando laços de amizade e cumplicidade com outras. Por fim, largou o marido enfurecido e foi seguir seu próprio caminho nos palcos e nas letras, sendo reconhecida e aclamada ainda em vida.

Ao menos hoje em dia podemos escrever usando nossos próprios nomes sem grandes problemas. Não precisamos mais que um homem de um pequeno círculo de intelectuais nos autorize a escrever ou publicar. Embora ainda tenhamos muito o que conquistar, é gratificante enxergar o progresso que já fizemos.

Em diálogo com o filme, fiz esse curto poema intitulado Claudette que fala sobre a liberdade da mulher na arte e sua conquista sobre si mesma.


Claudette

Tal qual menina perdida
Você me encontrou atraída
Por tua pose
Terno e fita
Do filme que encenava
Sempre que me via

Casei tendo liberdade
Para fazer tuas vontades
Fingindo que eram minhas

Para que subisses
Eu descia
Para que brilhasses
Eu desaparecia
Como singelo apetrecho
Acompanhava o desfecho
Das histórias que querias

De terno e gravata
A verdade veio me visitar
Dizendo que era hora
Ou Claudine
Ou Colette
Guiaria o resto de minha história

Claudine est mort

Refeita
Vagando
La Vagabonde de Paris est libre
Livre para os palcos
Pelas letras
Livre de ti







sábado, 5 de março de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|05


PACARRETE: ARTE E SENSIBILIDADE


Por Carollina Costa



Vez ou outra me pego pensando na velhice. Sei que é um assunto que muita gente evita em qualquer idade, mas quando vejo tanta gente fugir de alguma coisa, fico querendo saber o porquê.

Há algum tempo assisti ao filme brasileiro Pacarrete, baseado na vida da pianista e bailarina clássica cearense Maria Araújo Lima (1912-2004). O filme mostra a vida da artista já como professora de dança aposentada que tinha o sonho de voltar aos palcos, porém a idade impunha seus limites físicos e sociais, visto que além de seu corpo não se sustentar mais na ponta dos pés como outrora, os habitantes da pequena cidade onde morava limitavam ou excluíam a participação de Pacarrete dos eventos de dança.  Misturando comédia e drama de forma bela e sensível, o filme narra a incessante trajetória da protagonista em busca de manter viva sua arte, não importa as limitações em seu caminho.

Esse filme me fez pensar sobre o quão comum é deixarmos uma paixão sumir no tempo, normalizando quando as reviravoltas da vida nos afastam de nossos sonhos ou de uma realidade que amamos. Pacarrete insiste em não deixar seu amor pela dança morrer, nem que isso signifique dançar sozinha em casa ou na rua, sendo incompreendida por aqueles que não "ouvem a mesma música" que ela.

A dor, sensibilidade e esperança apresentadas no filme Pacarrete me inspiraram o poema autoral a seguir, que apesar de estar bem ligado à narrativa do filme, pode ser interpretado pela leitora da melhor forma que lhe couber.


Velhice

Bailarina na meninice
Aplausos sempre gostei de ter
Mas depois de um certo tempo
A saudade do não vivido
Prevaleceu como um machucado exaurido
Ao som de Tina Turner
Despertei para o corpo de minha irmã falecido
Me lembrando da morte que rondava meu abrigo
À sombra de tudo que eu não poderia viver
Eu morri
Eu morri e esqueci de me avisar
Fui pra rede me encasular
Até a Maria ir me tirar pra dançar
E eu dancei
Dancei
Depois de tanto relutar
Fazendo do meu palco a calçada
Dançando como um cisne numa noite enluarada
No palco central
Mesmo que sem plateia
Me realizo ao final




sábado, 19 de fevereiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA






LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|04

 

A VOZ DA MULHER NA POESIA


Por Carollina Costa



Na minha última postagem apresentei a resenha do livro Na Companhia de Bela, que reúne diversos contos de fadas de escritoras que foram apagadas ao longo da história. Essas semana resolvi trazer uma breve reflexão sobre a presença da mulher na poesia, que também passou por um silenciamento típico de qualquer produção feita por mulheres em outros tempos, além da dicotomia poeta/poetisa e um poema que foi fruto dessas minhas inquietações.

Quando estudei sobre trovadorismo na faculdade, me chamou atenção o fato de que era comum os homens escreverem com eu lírico feminino nas cantigas de amigo enquanto que, no mesmo período, as mulheres não podiam aparecer como escritoras. Estudei também obras literárias nas quais homens criavam personagens femininos e narravam os pensamentos dessas personagens de modo universal, esquecendo que toda percepção nasce de algum observador. Quando o observador muda, a percepção sobre o que se observa também pode mudar. Não é que um escritor homem não possa criar bons personagens femininos, mas por que não poderia a mulher também criá-los?

Saltando um pouco no tempo e trocando a prosa pela poesia, quando as mulheres começaram a aparecer mais no universo poético surgiu o termo poetisa, que tem uma razão um tanto interessante. Embora poeta também pudesse ser usado para mulheres, poetisa surgiu trazendo um efeito de separação do poeta, figura do escritor exaltado e reconhecido, da mulher que escrevia versos que rimavam. Isso é tão curioso que, por volta de 1945, quando Otto Maia Carpeaux elogia Cecília Meireles, ele a chama de "grande poeta", não poetisa. Além disso, as palavras na língua portuguesa que terminam em -iz ou -isa são normalmente derivadas do seu masculino, sem o qual elas não existiriam.

Atualmente, tanto poeta quanto poetisa são aceitas e utilizadas para denominar mulheres que escrevem poemas, tornando essa escolha de nomes mais sutil. Eu, particularmente, prefiro poeta.

Para finalizar minhas reflexões, trago um poema de minha autoria que foi escrito no semestre em que estudei um pouco sobre a voz da mulher na literatura. Nele, tento expressar em versos a ironia curiosa das vozes das cantigas de amigo e de outros textos literários.


O poeta é um fingidor
E finge tão completamente
Que faz leitor acreditar que é dor
A dor que nem sente


E se fala de amor
Como não fingir como outrora?
Tal qual um galante trovador
Que diz que é na voz da mulher
Que se canta a cantiga de amigo
Escrita por aquele senhor


E o que sabem os homens mais
Da mulher como escritor
Ou seria escritora
Porque “Writer” no português tem gênero
Mas que importa, não é mesmo?
Se tudo um dia vira
Sopa de letras ao vento.
– Será que vira?





sábado, 5 de fevereiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA


LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|03


RESENHA: NA COMPANHIA DE BELA, DE SUSANA VENTURA E CASSIA LESLIE


Por Carollina Costa



Tão importante quanto ter mulheres escrevendo é divulgar a escrita de outras mulheres. A  quantidade de mulheres escritoras reconhecidas como tal tem aumentado com o passar do tempo, mas elas sempre existiram. No intuito de tentar ressaltar a existência e importância dessas mulheres, trago aqui uma breve resenha de um livro que reúne textos de algumas mulheres que ficaram à margem com sua escrita durante muitos séculos, incluindo uma escritora anônima.

Espero que essa resenha possa motivar outras escritoras a buscar mais histórias contadas por mulheres tanto quanto me motiva.


Resenha: Na Companhia de Bela, de Susana Ventura e Cassia Leslie

O livro Na Companhia de Bela: Contos de Fadas por autoras dos séculos XVII e XVIII é fruto de um projeto de pós-graduação feito em parceria pelas pesquisadoras Susana Ventura (USP) e Cassia Leslie (UEL) que reúnem nesta obra alguns contos de fadas das chamadas Preciosas, que foram mulheres autoras do atual gênero de contos de fadas na França entre os séculos 17 e 18. Naquela época não era muito comum e nem aceito —feria o “princípio da modéstia”— que mulheres publicassem livros e fossem reconhecidas por isso, o que fez com que muitas delas fossem apagadas pelo tempo e colocadas à sombra de nomes como Grimm, Perrault e Andersen. Até mesmo as que foram bem recebidas em sua época não tiveram seus trabalhos preservados pelo tempo por não serem consideradas "de qualidade".

Nesse livro, Susana e Cassia reúnem contos europeus que vão desde célebres escritoras, como Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, autora do famoso conto de fadas A Bela e A Fera, até uma homenagem às escritoras anônimas (mulheres que publicavam em coletâneas e não anunciavam seus nomes em suas publicações) com o conto O Príncipe Arco-Íris, noemando a autora de Mademoiselle Anônima.

O conteúdo do livro alterna entre as histórias, breves biografias sobre suas autoras, com destaque para a situação social e política da época em que elas viveram e produziram seus escritos, e informações extras ao fim de cada conto. O livro não é grande em comprimento, mas sua grossura de 286 páginas vem não só dos textos, mas também da ótima qualidade do papel, perfeito para sustentar as belas e detalhadas ilustrações típicas dos contos de fadas. A fonte utilizada nos textos é confortável para leitura, tendo também letras bem grandes e desenhadas para os títulos e apresentação das escritoras.

Diferente dos atuais, era típico dos antigos contos de fadas a existência de fadas boas e más, além da presença de monstros marcantes e finais não tão bonitos. As histórias dessa coleção apresentam monstros e turbulências, porém trazem consigo o consolo dos finais felizes. Também é muito presente nas histórias o folclore da antiga Europa, apresentado em cada personagem. 

Apesar do tamanho, minha leitura foi rápida por conta das páginas ilustradas. Recomendo a leitura para quem quiserem conhecer algumas escritoras da antiga Europa e seu folclore.



domingo, 23 de janeiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|02

Por Carollina Costa


É comum que, ao crescer, todos escutemos pessoas de todos os lados dizendo o que devemos fazer, ser, vestir, comer, dizer... No geral, isso tudo um dia passa e se ganha liberdade para viver a vida com sua própria graça, mas para a mulher é diferente. Algumas têm a sorte de alcançar essa liberdade normalmente, mas muitas outras somam os dizeres da casa com os da sociedade e se mantém reféns de opiniões, objeções, gostos e desejos alheios, a ponto de sequer saberem se algum dia tiveram algum desejo, alguma ambição qualquer. No meu conto "Casinha", narro a história de uma menina que segue para a vida adulta emaranhada nas  histórias dos outros e no fim, ao esvaziar-se de tudo, se preenche de si mesma.


C A S I N H A

 

Havia uma menina. Uma menina que foi ensinada a querer, a viver, a agir, a ser.

Ela queria o que queriam para ela, sonhava os sonhos sonhados para ela, era e se portava de acordo com o que fora planejado para ela. Não que isso fosse bom ou ruim, apenas era tudo o que ela conhecia. Até o sentimento de felicidade fora planejado para ela. E ela o sentia como se fosse seu.

Até que um dia ela acordou mulher e se viu numa casa a qual não pertencia, em um casamento que ela não reconhecia e com um homem que, apesar de aparente semelhança, nada tinha a ver com seu noivo da época —e não é como se tudo estivesse melhor. Precisava pagar a dívida dos pais, já tinha netos que nunca vira —mas eram só bebês, então perdoava-se— e, em um instante, ela reconheceu que ela não era ela. Montada como um quebra-cabeças feito de peças que não se encaixam, ela era aquela que acordava todos os dias para honrar o trabalho que não escolhera e a vida que não viu se formar. Estava, sim, sobrevivendo, mas isso já não bastava.

Por até então não saber que poderia ser diferente, ela fez logo o que devia: resolveu os problemas que não eram dela, abandonou aqueles que eram seus, fez da angústia sua melhor amiga e dos pássaros os seres que mais invejava. Achava que a vida era isso — quando não duvidava se sabia mesmo o que era a vida — e seguiu, até seu coração parar. Não o físico, porque este andava bem, mas o da alma.

Ao despertar, não demorou para acarretar decisões. Terminou o casamento já acabado, deu adeus aos sonhos de seus pais, desistiu do faz de conta e, finalmente longe, livre e abatida, cruzou novos mares na esperança de se refazer em outros lugares para compensar o despedaço do vazio que tanto carregou dentro de si.




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