terça-feira, 9 de agosto de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: O PROPÓSITO, POR RITA ALENCAR CLARK



                                            LIÇÕES DE SILÊNCIO|01

O PROPÓSITO

POR RITA ALENCAR CLARK


Diante dos meus olhos, o luxo, a pompa e circunstância, gente bonita transitando em trajes de gala, o convite do casamento chegara com bastante antecedência. “Ministro fulano de tal e Senhora convidam para o enlace matrimonial...” muito bem, agora só precisaria ficar atenta onde pisar. Não estava disposta a ser alvo daqueles velhos endinheirados, bem vestidos e amorais que circulam por entre os eventos importunando as incautas. Não, não dessa vez! Naquele evento pomposo eu não estava sozinha. Estava noiva e meu noivo era um cara legal, um dândi, como eu gostava de imaginá-lo. Só precisava, agora, saber que tipo de música se "dançava" naquela festa.

Devia estar por meus 22, quase 23...linda, crédula, culta, alma flamejante e romântica, fazia poemas. E vou relembrando...olhando de fora, hoje, com os olhos dos meus 58 anos.

Nessa noite conheci o Ateliê de Francisco Brennand, o mestre pernambucano. Uau...um casamento lá! Éramos convidados, padrinhos, uma distinção ao meu noivo dândi. O casamento ocorreu como um daqueles shows do Pink Floyd com formas, luzes, sensações, jardins com enormes esculturas que brotavam do chão, dos telhados, em formas fálicas... como a delimitar fronteiras naquele universo paralelo dos ricos, dos muito ricos, gerações, dinastias de ricos, pensei.

Sentei-me, obviamente, aonde me conduziram a sentar. Lado oposto à mesa, como era de bom tom, ao meu noivo. Achei péssimo. Falávamos por gestos e olhares. Alguns fulminantes! Sentou-se ao meu lado a esposa do ministro. Por alguns momentos me diverti pedindo ao garçom pra deixar a garrafa de espumante...do outro lado da mesa ele fazia um gesto de tampar a taça, sabe como é? - A pessoa, naquela festa glauberiana, não vai beber?  Pior, um noivo dândi querendo me regular a loucura, querendo lógica no absurdo?! O garçom deixou a garrafa. Ela entreolhou-me e sorrindo perguntou, antes de dar o desejado gole, “Você já sabe qual é o seu propósito, não  é  meu bem?... “. Ainda envolvida pelos ares dos jogos de domínio e sedução, estanquei diante de seus olhos; verdíssimos, com ímpetos subliminares de sabedoria e decadência, realçados pelos cílios borrados deixando marcas esfumadas, controladas ao olhar. Respondi meio no impulso, “Nessa festa?” Ela deu uma boa gargalhada, rimos juntas e brindamos. Havia uma corte ao seu redor, percebi depois, pessoas com rádios nas mãos, falando em códigos...Gente, por falar em código... procurei-o tentando demonstrar certo enfado de minha parte, apenas para confortar o ego do noivo. Ela insistia, olhos cravados em mim. “Já sabe o seu propósito?” E começou a me dizer do seu próprio propósito, como a desenhar os rudimentos da vida de uma mulher que casa com homem poderoso. Foi um tapa no meio da cara, pra acordar. A esposa do ministro desfiava um monte de mágoas e frustrações, ódios tardios, humilhações e raivas ancestrais. 

Quanto mais ela falava, mais ela bebia, whisky, cowboy, alguém providenciava gelo, ela não queria, nem a Perrier. Queria papo, queria passar mais uma festa, e se divertia comigo, talvez com minha total inconsciência de tudo que ocorreria diante de mim naquela noite. Ela adorou minha espontaneidade, minha alegria genuína... talvez até tenha visto uma sombra de pena em seus olhos, mas não era o que seu sorriso luminoso demonstrava. Curiosa, queria saber que propósito é esse que se autoalimenta de sua dor, deixando marcas ao redor dos olhos que não saem com demaquilante?... Valeu(vale) a pena?!  Ela quer saber de mim. “Eu quero casar, ter filhos, estudar mais, escrever, namorar, viajar... fazer bodas de prata... ficar velhinho e cuidar um do outro.” Ela pediu mais uma dose, dupla, sem gelo, um charuto? “não, obrigada”, enquanto ria, ria pausado, aos poucos, explodia uma gargalhada, dava um gole, outra gargalhada, outro gole... comecei a desconfiar que ria de mim, de minha incorrigível sinceridade.” O seu propósito não conta para acompanhá-los, o seu propósito será o propósito que ele decidir, pensou que era passe livre, minha querida? ” Imagina, eu”... Ela não me dava trégua. “Precisa aprender a fazer o jogo do nada sei, não quero saber. Há pactos que surgem após o início do jogo. O jogo do silêncio.”

O jantar estava indescritível de tão bom, as bandas, as luzes, a elegância das pessoas, esse perfume de riqueza e poder, tudo criava, em mim, uma atmosfera de sonho. Pensei na iminência de um desmaio... socorreu-me o noivo, levou-me para o jardim, deu-me água e algumas broncas pelo meu mau comportamento social! “Você sabe que está sentada ao lado da esposa do ministro? Ela não pode beber, fica agressiva e vulgar, faz o ministro passar vergonha!” Sério? Ela não pode beber? Já tomou pelo menos 3 duplos, sem gelo. Está divertidíssima! Ele voltou, a contra gosto, ao seu lugar.

Hora do brinde. Tim tim tim! Os noivos estavam tensos, não se olhavam, o microfone já estava aberto e a mulher do ministro dava tapinhas checando, olhei para o outro lado da mesa e vi o noivo enxugando a testa. “Boa noite...” a mulher estava embriagada, completamente, não havia o que se pudesse fazer! Um clima de pânico já se instalara no ambiente, tive pena, mas ao mesmo tempo estava ansiosa para ouvir o que tinha a dizer, uma espécie de sarcasmo íntimo, inconfessável. O ministro, blasé, olhava para o nada. Antes que conseguisse falar alguma coisa, a mulher caiu sobre a mesa, tremendo e esbravejando, louca de raiva ao tentar arrancar a garrafa de whisky das mãos do garçom. Uma tropa de assessores tentou contê-la, porém antes de ser retirada ainda teve tempo de pegar o microfone e xingar o marido: “Assassino de alma, corno de merda, matou minha vida...me larga eu vou beber!! Eu vi você passando a mão nas coxas daquele rapazola, eu vi! Esse é o verdadeiro propósito menina, olhava cambaleante para mim, o silêncio! O meu silêncio, em troca de uma boa vida!!” E gargalhava! Nesse momento os fogos de artifício espocaram nos céus de Brennand (para alívio de todos) e a festa rolou solta até de manhã. Não ficamos para o café da manhã.

Pensei por muito tempo nessa mulher... tinha horror de um dia transformar-me nela - numa metamorfose kafkaniana - tão rica, tão bela, tão infeliz! Serviu de lição, sempre pensava no tal propósito. Mulher não tem direito a ter um propósito de vida só dela, afinal? Um casamento sem propósito comum era apenas um pacto? Ainda penso naquele noivo dândi, poderia não ter desistido dele tão rápido, poderia ter insistido mais... não consegui. Tive medo de acordar no meio da noite, velha, bêbada, triste, sem propósitos na vida, sem autoestima, apenas uma triste figura de olhos borrados e verdes. Uma mulher que não se reconheceria no reflexo, cheia de mágoas e raivas rochosas. 

Agora, estou eu aqui, nesta noite chuvosa, a vida veio e passou, deixou suas marcas em mim, levou anéis caros, casa de praia, obras de arte..., mas deixou-me o que importa, afinal: os filhos desejados, a poesia e os gatos. 


Um comentário:

  1. Seja muito bem-vinda ao Feminário Conexões, querida poeta. E parabéns pelo texto! É preciso ter bem claro qual "o propósito" de nossas vidas. Excelente!👏👏👏

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