O que eu penso, o que eu faço / de onde vim pra onde vou/ é no outro que eu traço / o perfil do que sou”.
do livro Eu, Comigo, Aqui e Agora, de Letícia Lanz (Geraldo Eustáquio de Souza)
Esses versos são de Letícia Lanz que, como psicanalista, sabe que o outro tem importância fundamental, e fundante, em nossa vida. Não se trata de submeter-se ao outro, a questão é que, querendo ou não, nos construímos e constituímos sob esse olhar. E se é uma coisa que essa escritora e psicanalista mineira de setenta anos de idade e radicada em Curitiba, entende, é exatamente desse olhar que tantas vezes a fitou com espanto ou desdém.
Letícia tem uma trajetória tanto fascinante quanto difícil. Nasceu Geraldo, em família muito católica, onde ela mesma diz “o diabo tinha muito prestígio lá em casa”. As brincadeiras típicas de menino lhe entediavam, e as de menina, ao contrário, a fascinavam. Sofreu muito por ser impedida de dar vazão aos seus desejos de criança. “Pecado, menino, honre o que você tem entre as pernas”. Aos cinquenta anos de idade, deu início ao processo de transição de gênero. Letícia se define como uma mulher trans lésbica, pois sempre teve atração por mulheres, de forma que continua casada com a sua companheira, mãe dos seus três filhos, com quem está junto há 44 anos. Quando perguntei a ela como se sentia quando pensava no seu passado como Geraldo, ela me disse: “penso em uma ausência. As pessoas confundem escolha com identificação. Escolha implica em existência de alternativas, e identificação, em modelo de referência. Ser uma pessoa transgênera não é uma escolha, mas algo que você se identifica e passa a ser você.” E segue: “infelizmente, a mesma estrutura hierárquica e de privilégios que existe dentro da sociedade, nós vemos nos movimentos identitários, que ainda são extremamente binários e sexistas. Muitos acham que para ser mulher, é preciso fazer uma cirurgia, retirar o pênis. Como se isso determinasse o gênero da pessoa. As pessoas confundem sexo com gênero. Identidade e expressão de gênero vão muito além do órgão genital”.
Por perceber que o enquadramento de gênero é a base que constitui a sociedade, Letícia faz questão de aprofundar e divulgar seus estudos nessa área, o que lhe rendeu um livro, que se chama “O corpo da roupa”. Essa obra é fruto de um mestrado que a escritora fez em Ciências Sociais. Seu livro é o único, em língua portuguesa, de introdução aos Estudos Transgêneros. Questionada a respeito do título, diz: “na nossa sociedade não é a pessoa que tem a roupa, é a roupa que tem a pessoa. Uma espécie de camisa de força”.
Ainda como Geraldo, publicou uma trilogia de livros de poemas. Letícia vê a escrita como seu principal canal de expressão e como uma forma de estar sempre construindo novos sentidos e significados para o que percebe e o que lhe acontece. A única coisa que a angustia na escrita é quando não consegue achar a palavra adequada para o que quer expressar, conflito de toda escritora ou escritor, diga-se de passagem.
Por outro lado, Letícia sabe que as palavras, muitas vezes, só vêm depois. Há sempre um hiato entre elas e nós, que se chama vida.
Jornada
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Às vezes bate uma ideia de desistir.
Então a gente para, põe o sonho de lado
e fica por aí pensando e sofrendo.
Mas não é por muito tempo não.
Qualquer coisa da estrada
passarinho flor montanha nuvem
o menino que nos acenou sorrindo
esperança à toa que seja vira roteiro de viagem.
Precisa ver os olhos brilhando com que partimos
mochila nas costas cantando o sol e a sede
prazer e cansaço de quem caminha sempre em frente
em direção de algo mais além de nós mesmos
de nossos desejos, medos e frustrações
Porque é para lá que estamos indo
- é só para lá que sabemos ir
Passos de uma caminhada
que nenhum de nós sabe quando começou
nem quando terminará.
***
Eu Prometo
(Para Angela)
Eu prometo não te prometer nada
Nem te amar para sempre
nem não te trair nunca
nem não te deixar jamais.
Estou aqui, te sinto agora
sem máscaras nem artifícios
e enquanto for bom para os dois que o outro fique.
Nada a te oferecer senão eu mesmo
Nada a te pedir senão que sejas quem tu és
a verdade é o que de melhor temos para compartilhar.
Tuas coisas continuam tuas e as minhas, minhas.
Não nos mudaremos na loucura de tornar eterno
esse breve instante que passa.
Se crescemos juntos
ainda que em direções opostas
saberemos nos amar pelo que somos
sem medo ou vergonha
de nos mostrarmos um ao outro por inteiro.
Não te prendo e não quero que me prendas
Nenhuma corrente pode deter o curso da vida
nenhuma promessa pode substituir o amor
quero que sejas livre como eu próprio quero ser.
Companheiros de uma viagem que está começando
cada vez que nos encontramos novamente.
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