Por
Isa Corgosinho
Eles
se conheceram já adultos no circo ou naquilo que sobrou dos circos. No cenário
monetizado do entretenimento virtual, os circos foram ficando cada vez mais à
deriva das naturais, espontâneas alegria e diversão. As crianças radiosas não
se interessam mais nem por palhaços, que dirá por anãs e homens sem mãos! Nem
os circos de vocações mambembes escaparam da liquidez dos tempos.
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Sem
mais valia, sem serventia, o rapaz viciado em bolachas recheadas teve que
buscar trabalho no circo. A mãe morreu vítima do amor incondicional e ele, diabético, ficou largado à própria gula.
Como não tinha mãos, devoradas pelo açúcar, seu
trabalho era alimentar com sua saliva a colmeia, ali cultivada para
adoçar a tristeza dos palhaços e a aguardente das trapezistas. Foi lá que
encontrou a mulher Anã de Cabeça Plana.
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A
anã, após ter sido espancada na cabeça durante anos, foi deixada ali pelo
pai. Com sua fantasia de bailarina, dormia com os malabaristas, os mágicos, o
homem fera, a mulher barbada, o homem elefante, mas era propriedade, monetizada
pelo dono do circo, sempre fantasiado de leão. A maioria era impotente, por
isso apreciava o sexo com a Anã de Cabeça Plana: sem pensamentos, sem vontades!
Ela
se deparou com o homem sem mãos no dia que ele adormeceu todo inchado, picado
pelas abelhas, com a língua em viva carne, sangrando. Ela vinha de uma jornada
gosmenta de cópulas com o leão faminto.
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Ele
estava caído na entrada de um trailer sem porta, quando ela tão pequenina
tropeçou nele. Ficou ali parada sobre aquele homem e, pela primeira vez em
muitos anos, ergueu a cabeça e viu asas de abelhas coroando o rosto do rapaz.
Sentiu ânsias de mel, ergueu-se de mansinho e lambeu com a sua as feridas
expostas da língua do rapaz. Mesmo exaurido de dor, o homem a sentiu como presença
da abelha rainha, ela por fim viera curar-lhe do trabalho afoito e descuidado
de suas dedicadas operárias. Quis acariciar aquele pequeno corpo que se
estendia sobre o seu, e foi o que fizeram seus braços como se fossem mãos. Que
delicada criatura! Sentiu sua língua
amalgamada na língua suave daquele ser planando íntegro e grandioso.
Era
amor o nome daquele sentimento, ela, enfim, pensou! E o circo, que dormia
profundamente, se iluminou com a coreografia dos pirilampos, que anunciavam o
espetáculo:
A
Bailarina Anã e o Rapaz Favo de Mel!
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Arquivo da autora |
ISA CORGOSINHO é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa. Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024), Eros e Thanatos em Plenos Pecados (TAUP,2025). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.
Respeitável Conto!
ResponderExcluirIsa Corgosinho me fez viajar em "A Bailarina Anã e o Rapaz favo de mel"!
Palhaço, anã de cabeça plana, mulher gorila e homem sem mãos, protagonistas em ação! Trágicos seres talhados na história dos homens pelas suas singularidades para espantar e fazer rir, o lado vil de nossa pobre humanidade. Dores transformadas em “folhetim de humor” sobem ao picadeiro e a literatura de Isa faz transcender, no entre mel e fel da escuridão da noite, personagens iluminados pelos pirilampos e pela magia do amor. Um conto que salta dos trapézios da fantasia à saudade da infância, que fazia do circo, momentos de encontro com a arte. Eu, na inocência de menina de olhos curiosos, não sabia que, por detrás do riso frenético do palhaço, lágrimas manchavam a sua maquiagem. Grata, Isa, por nos mostrar, pelo realismo e criatividade sensível , a singeleza, a beleza e a humanidade roubadas dos artistas e de nós, expectadores do sonho!
Margarida Montejano
Querida MargaLinda, esse conto.foi escrito para olhos sensíveis como os seus. Sinto-me honrada com a sua interpretação..Beijocas!
ExcluirFico feliz, Isa! Minha viagem de volta à arquibancada do Circo foi, na verdade, um convite à releitura de nosso tempo presente. Parabéns, querida!
ResponderExcluirMargarida Montejano