domingo, 11 de setembro de 2022

ELES LEEM ELAS: AS LARANJAS DE ALICE MAZELA, DE GÉSSICA MENINO, POR RONALDO RHUSSO


ELES LEEM ELAS|12

AS LARANJAS DE ALICE MAZELA, DE GÉSSICA MENINO 



Achei interessante “eles que leem elas”, escreverem a respeito de quem ou da obra que leram, e escolhi “As Laranjas de Alice Mazela” (Editora Toma Aí Um Poema, 2021) da estreante Géssica Menino e que tem a excelente Apresentação da Flavia Ferrari.

É um livro de contos que me surpreendeu no sentido em que leva o leitor a fazer reflexões acerca do cotidiano e, a mim, fez-me pensar um pouco acerca de cada personagem com um olhar que nos leva a perceber claramente não ser propriamente nosso, mas uma, por assim dizer, apropriação do olhar da autora a qual, desconfio, fala muito de si mesma e de histórias que vivenciou em cada um desses contos.

Cada livro é um Universo particular ou mesclado, e a autora inicia o seu livro de uma forma poética “Quando conquistei uma bolsa para ir estudar na universidade meus prantos, de alegria, ao chão se derramaram”.

E aqui eu já percebo o abrir de alma da autora ao mencionar “seus prantos”... Alguém diria que pranto poderia inferir uma coisa só, um choro em demasia causado por algum infortúnio, mas aqui o leitor nota que houve sucessões de prantos e infortúnios, os quais foram exorcizados ou derramados a partir de uma notícia muito boa, a de que a tão sonhada oportunidade de buscar uma formação superior agora seria um fato e que sejam lá quais foram os infortúnios passados, seriam superados e, enfim, lançados ao chão a fim de, no máximo, servirem como adubo para o surgimento de uma nova vida...

Assim, a Géssica inicia o conto cujo título é Lembranças e que, no livro, inicia uma sessão de catorze contos, curiosidade que levará um sonetista inveterado como eu, por uma mera questão de costume, ver uma relação com a arte de compor essas pequenas canções em catorze versos, de maneira que passa a encarar essa coleção como uma simbólica Ode à dedicação na Arte de escrever e externar aquilo que ao autor sufoca, mas é capaz de encantar o leitor e, como antecipei, fazer refletir...

[foto arquivo pessoal da autora]

“O Barba Azul”, “É Apenas por Enquanto” e “Relativo” completam o que vou chamar de primeira estrofe. Cada Conto com sua peculiaridade. A gente se demora em pensar no fato de que até as características ditas ou vistas como negativas nos rotulam, classificam e nos põem no círculo das atenções sejam elas quais forem, mas, se nos despimos dessas características é como se desaparecêssemos! Dia desses, conversando com uma aluna, menina linda e gentil, me dizia que sofrera bullyng porque era gordinha quando começou a frequentar a escola, de forma que se esforçou para emagrecer e teve que suportar muita fome se privando das guloseimas que a mãe, uma doceira, fazia. Quando conseguiu emagrecer bastante passaram a chamá-la de “sem corpo” numa alusão de que a mesma, embora na puberdade, tinha corpo de criança... Assim torna-se fato a conclusão de que mudar não vai agradar a todos e a gente pode, na melhor das hipóteses, perder a única atenção que nos davam... É aí que a gente cai na real de que toda a sensação de falta de sentimento pode-se dizer que “é apenas por enquanto” e se o que pensam de nós ou os “para quês?” da vida são relativismos, nos resta valorizar a percepção de que algumas coisas, que são tão comuns em nosso cotidiano, como legumes que nos são servidos à mesa e dos quais fazemos pouco caso, porém quando vistos nas barracas de feira, encaramos a realidade do quanto custam e do quanto fazem diferença no orçamento e, principalmente, na nutrição física que pode ou não vir a gerar ótimas ideias na mente e se tornarão textos que encantarão leitores que se identificam com os cenários convertidos em palavras.

“Sem Destino”, “O Distinto”, “Para se Pensar” e “As Laranjas de Alice Mazela” formam o segundo Quarteto do livro e parece proposital que essa parte do meu “Soneto mental”, enquanto vou lendo, feche com o conto que empresta o título ao livro da Géssica.

“Ela escuta o barulho horrendo do vidro brigando com o chão”. Eu nunca pensei assim quando da queda de um frasco de perfume ou com outro conteúdo. Em “Sem destino” a gente não tem muita certeza de quem está narrando, porém a quantidade de observações aos detalhes contidos na casa e no jardim, com a rotina daquela que se vê menina na foto guardada no computador é muito interessante! Há uma ponte para “O Distinto” que, talvez, nem tenha sido proposital na organização do livro, entretanto as reflexões acerca do que seria a “Arte de amar” e a abrupta enumeração de episódios trágicos ocorridos com pessoas que têm nome, com pessoas que deixam pessoas que, também, têm nome é, de fato, “Para se pensar”, porque em todos os casos o Distinto, o Amor, esteve presente e a tudo testemunhou! Até a história de Lucinda e Marcos, a primeira menina mulher do acaso que vivenciou Movimentos e tormentos, enquanto o outro, o “bebum”, num apenas tênue interagir com Lucinda é só mais um dos “pirões perdidos” para o mundo e Alice? Sem mazelas, a não ser no nome, narra sua epopeia e se torna aquela que já não irá mais ouvir a velha pergunta: “Ainda estás aqui”?

[arquivo pessoal da autora]
Gessica Menino é mãe do Christopher, uma das vencedoras do concurso literário nacional “Novas Contistas da Literatura Brasileira”, pela Editora Zouk, com o conto “As curvas do tempo”, publicado em 2018 e um dos ganhadores do Concurso Literário Internacional da Academia Fluminense de Letras 2018, na modalidade conto, com o texto intitulado: “A vida de um casal de professores”. Autora do conto “Sem perder o ritmo”, publicado em 2020 na antologia “O lado poético da vida” e lançou “As Laranjas de Alice Mazela” pela Editora TAUP (Toma Aí Um Poema 2021)”.

Nesse ponto entramos no primeiro “Terceto” ou se preferirem, na terceira estrofe ou parte do livro com “Uma Descoberta”, “Um Dia Solene ou Sublime” e “Sois”...

“Uma descoberta” narra a autoconsciência de Bianca que “Escrevia todas suas ideias, pensamentos e emoções a qualquer tempo apropriado com a esperança de algum dia publicá-los, mas havia tanta comoção desastrosa de tudo que acontecera”.  Ela alimentava em si um fio de esperança que acabou, nesses nossos tempos pandêmicos, se tornando realidade para tantos que, como Bianca, se descobriram escritores... E não é um dia sublime aquele em que você tem nas mãos um livro, filho precioso contendo em seu interior muito mais que um filho gerado no útero? Ou você pode fazer um paralelo com um pequeno pássaro morto que pode simbolizar um breve ciclo que pareceu longo dado a quantidade de momentos complicados, mas que, pela força do vento das mudanças, alimentou a terra, como um livro alimenta intelectualmente aqueles que o leem... E é aqui que, eu que leio elas, uso as palavras da Géssica Menino: “Pois sois belas, sois uma beleza de conquista, uma guerreira da vida, a geradora da fonte inesgotável, a desculpa alheia de espinhos. Sois tudo e nada ao mesmo tempo em que carrega consigo um silêncio arrebatador e um grito de um vencedor. Sois”.

A Chave de ouro ou segundo Terceto desse meu Soneto mental no qual inseri esse livro se descortina com “A Letra C”, “A Porta Azul” e “A Menina do Laço de Fita”...

Sem se prender a aliterações ou que chamaríamos de tautogramas a Géssica mostra um personagem dessa era do “teclado” procurando aquela palavra certa e conclui consternadamente que o mundo se encontra convalescente...

“Era uma manhã ensolarada com raios de sol que despojavam como um suco de laranja avassalador gritando ou em confronto com um copo de vidro”. Você já olhou para si, de longe, com um binóculo? Já se viu em sua rotina, se olhou mais velha, mais nova outra vez e guardou na mente uma referência qualquer como uma barreira entre você e você mesma, tipo uma “Porta azul”?

E com ela o livro termina, mas um novo ciclo começa porque todo esse despir de alma poética, a meu ver, mostra “A menina do laço de fita. Agora, atormentada, desiludida, envergonhada. Perguntava a si mesma: Onde estava o amor”?

Quem escreve e descreve com essa forma singela e sensível, talvez nem saiba, mas permite que muitas pessoas se vejam nesses cenários e entendam o quanto “tudo vale a pena se a alma não é pequena” como cunhou Pessoa a nos dizer que pessoas somos e pessoais são os nossos sonhos e, em vez de limão, que tal uma laranja? Que tal as de Alice Mazela? Ou será Géssica Menino?

Uma leitura muito recomendável! Divirta-se!


[foto arquivo pessoal]

Ronaldo Rhusso: autor anual de “Meditações para o Pôr do Sol” da Casa Publicadora Brasileira pela União Sudeste dos IASD, do Compêndio poético “2016, o Dia, o Tema e o Poema” (produção independente) e de “Atos de Jesus” pelo Clube de Autores (2022), além de cordéis em parceria com membros da Academia de Cordel do Vale da Paraíba. Escreve, principalmente, no site “Descanso das Letras” e em seu blogue particular “A Sós Com a Poesia”.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

VERBO MULHER: HELENA SOLTE SUAS FERAS, POR HELENA TERRA

 


V E R B O M U L H E R|02

HELENA SOLTE SUAS FERAS

POR HELENA TERRA 


        “Escute as feras” é o nome do livro da antropóloga francesa Nastassja Martin, que teve o rosto desfigurado por um urso. Um urso de verdade, quadrúpede, animal irracional vivendo em seu ambiente e território. Agressivo sob o nosso ponto de vista humano. Um urso como qualquer outro se o pensarmos de acordo com a sua programação genética. Talvez até passivo dentro de sua própria espécie. Mas um exemplo de violência dentro da nossa. Um urso parecido com as centenas de milhares de homens, milhões na verdade, que diariamente atacam nossas mentes e corpos e que tentam nos eliminar ou a nossos planos e ambições como se fossemos insetos. Falo de nós, as mulheres. E falo de mim. Como Tolstoi, que disse que falando de sua aldeia estaria falando do mundo, acredito que falando sobre a minha existência falarei sobre a de todas as outras mulheres, mesmo daquelas que discordam em gênero, grau e número comigo e votam no senhor que ocupa a presidência do país como um monarca a um trono nos tempos do Brasil colônia.

        O Brasil, apesar de estarmos no ano de 2022, em um certo sentido, segue colonial, oprimindo a si mesmo e preso a seu próprio provincianismo e ao seu patriarcado de terceiro mundo. Sim, o patriarcado, embora uma estrutura homogênea, apresenta diferentes camadas de ação. Aqui, nessa terra quase sem Pau-Brasil e com uma grande diversidade de bichos, nós, as mulheres estamos mais para Gregor Sansa que para Madame Bovary, personagem, diga-se de passagem, também pouco aspirável. Pois é, eu me identifico com o Gregor Sansa. Kafka não sabe, mas ele falava de uma mulher.  “A Metamorfose”, as metamorfoses somos nós, muitas vezes cumprindo três turnos de jornada, recebendo menos por nosso trabalho e ainda tendo de ouvir críticas maldosas a respeito de nossas aparências, gostos e opiniões. E quando falo em críticas maldosas estou sendo, como muitos homens gostam de dizer, boazinha, porque uma boa parte dos homens gosta de verdade de nos ofender e de diminuir a nossa autoestima. Mais de um tentou me fazer sua vítima:

Helena, você está muito magra!

Helena, e esse fio de cabelo branco?

Helena, não entendi essa sua roupa!

Helena, não quero dizer que você não é inteligente, mas você não sabe o que está dizendo.

Helena, você é louca!

             E por aí vai.

        E por aí também se foram os que não conseguiram controlar o seu machismo e misoginia. Não servem para mim. Não gosto de gente rude. Não servem para ninguém, sabemos, como também sabemos que uma parte considerável de pessoas ainda ignora o importante ditado que diz “quem avisa, amigo é”. Fazer o quê? Ler. Conversar com as outras mulheres. Terapia. Se possível, análise mesmo. Graças a minha, tenho conseguido me manter distante dos homens com complexo de inseticida ou de chinelo de borracha que, por inveja, pensam em me esmagar. Essa é uma das minhas descobertas mais recentes: há uma quantidade expressiva de homens invejosos ao redor. Eles são o som ao redor, e não é fácil abafar suas vozes. De tão inseridas na dinâmica patriarcal, acabamos naturalizando à toxicidade e à agressividade como se elas fossem partes legítimas e positivas das relações. E de tão desamparadas pela sociedade, e mesmo por nossas famílias, acabamos por esconder as agressões que sofremos e, de certa forma, também por pôr em dúvida o nosso discernimento. Levante a mão quem nunca foi chamada de louca, maluca, pirada, despirocada, histérica, doida, raivosa etc. Se tem uma forma de violência enraizada no inconsciente coletivo masculino é essa de tentar nos tirar a razão e de nos jogar no mundo irracional das feras. Falemos então de feras. Conheço muitas de calças, camisas e barbas sobre as faces vivendo fora dos zoológicos e mostrando sorrisos antes de mostrar as garras.  Os índices de violência, em suas mais diversas formas, contra as mulheres estão altíssimos mundo afora. Mas vou falar desse mundo adentro em que vivo e, como o Cazuza, vou cantar “Brasil, mostra a tua cara”. Mostra, Brasil, a cara dos seus homens.

        Conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, trinta mulheres sofreram agressão física por hora; uma mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos; três mulheres foram assassinadas por dia e uma travesti ou mulher trans foi assassinada a cada dois. Ou seja, 2020 foi o circo romano e a matança das baleias. Aliás levante a mão também quem nunca foi chamada de baleia ou teve uma amiga que tenha sido. Em 2020, morremos. E em 2021 também. Eu morri em 2021, 2020, 19, 18. Morro desde que nasci. E de nada adianta cantar que neste ano não morrerei porque eu sou uma mulher que morre com as outras. Não tenho vocação para ilha. Os outros torrões, como escreveu John Donne, no “Meditações”, me interessam. Eu sou uma pessoa continente. E sou uma mulher cheia de vida e de sobrevida por persistência, como uma das minhas alunas no presídio em que trabalho fala. Persistir é um dos meus verbos preferidos. Os meus verbos, apesar de toda a oposição que me cerca, são construtivos, leais e amigos. Amigos como poucos homens conseguem ser de uma mulher. Os meus amigos conto nos dedos da mão esquerda embora eu seja destra. E falo em esquerda porque posso. “Ser de esquerda é ter uma posição filosófica perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo”. Frase do Pepe Mujica. Não me falta senso de solidariedade. Minha consciência e ação social não são só da boca para fora. Não vivo só em causa própria. Não exploro as outras pessoas. Não tiro proveito de seus bens, personalidades, capacidades produtivas e sentimentos. Trabalho e convivo com as pessoas por elas, por mim e por nós todos como se fossemos um único corpo, uma grande placenta.

          Placenta. Pensando agora, talvez pareça estranho eu recorrer a essa palavra. Não é porque podemos produzir uma que temos de produzi-la. Não é porque uma mulher pode ser mãe que ela tem de ser. Quem insiste com essa ideia, por incrível que pareça, são justo aqueles que dizem ter tirado Eva de suas costelas.  E isso também é estranho porque soa religioso, cristão, do reino de Deus. “O que realmente duvido é do amor do pai e do filho. Não acredito nesse sentimento genuíno de um ser que é cem por cento Deus e cem por cento homem e morreu por nós. Um homem? Ah, não! Talvez se fosse Maria, Nossa Senhora era mais fácil de acreditar.”, uma das narradoras do “A filha primitiva”, da Vanessa passo, diz. Pois é. Eu também tenho dificuldade de dialogar com esse senhor que fez apenas metade da população do planeta à sua imagem e semelhança. Eu não me pareço com ele. Ele não se parece comigo, ignora uma menstruação, não gera crianças, tampouco as perde ou ganha em um parto. Deus não sente o que se passa debaixo da minha pele e ainda me orienta a ser compreensiva e piedosa com aqueles que “não sabem o que fazem”. Vem cá, desde quando os homens não sabem o que fazem? Os homens não são cheios de saberes, opiniões e verdades?  

Disse Santo Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão.”

Disse São João Crisóstomo: “em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais nocivo do que a mulher.”

Disse São Paulo, esse que dá o nome a maior cidade da América Latina: “o homem não foi tirado da mulher, e sim a mulher do homem; e o homem não foi criado para a mulher, e sim esta para o homem”.  

        Santos! Todos santos, a nata da religião que sustenta o pensamento ocidental. Mentores desses que costumam dizer “não sou santo” para justificar seus erros. Imagina se fossem.  

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Helena Terra
[arquivo pessoal]
@helenaterracamargo

Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, POR RILNETE MELO



N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|03

 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA  DO BRASIL


Por RILNETE MELO


              Era final de outono na Bahia, o sol começava a se esconder ao longe, no horizonte da estrada de terra batida da fazenda Itapororoca. Pelo caminho uma dupla prosseguia a pé, cantando o refrão: “Pelo bem dessa nação/ pela terra e pelo pão /independência na cabeça e amor no coração” ... Era Quitéria e seu cunhado soldado Medeiros que voltavam de mais um dia de caça. Durante todo o percurso matutava na cabeça de Quitéria a ideia de ingressar no exército, e assim como José Medeiros lutar pela independência do seu país, bem como dar um basta nessa ideologia de desigualdade de gênero. Naquele dia, ao chegar em casa, tirando o casaco suado, pendurando o canil no armador da rede, exibindo o cinturão com algumas munições e a espingarda que lhe descia quadril abaixo, ela batia na mesa dando socos e em voz alta gritava: Eu vou amanhã naquele quartel! Nem que eu tenha que fugir de casa! Ah! Juro que eu vou!

Na semana anterior, um emissário do governo havia ido à casa do pai de Quitéria com o objetivo de convocar voluntários para o combate libertário. O velho Gonçalves disse que não tinha nenhum filho para enviar à guerra e que deixassem ele em paz. Escondida atrás da porta Quitéria ouvia todo aquele blá blá blá com paixão, curiosidade e o peito de mulher guerreira batendo descompassado, ardendo de vontade de dizer que ela ia, e pensava; Ah! Como eu queria ser homem nessa hora!

Mas, desgarrando-se do modelo de família cristã burguesa, tendo conhecimento de que seus hormônios femininos não tiravam seus atributos de inteligência e criatividade, teve um insight brilhante!

—Tetê! Eu vou me apresentar no exército brasileiro amanhã! - disse Quitéria.

—Você enlouqueceu menina? No exército não aceita mulher, sem esquecer que nosso pai jamais aceitará essa sua decisão. - retrucou Tereza

Tetê, como Quitéria chamava sua irmã mais nova, fora cuidada por ela desde que sua mãe havia falecido lhe deixando com 10 anos de idade, dois irmãos e uma irmã para cuidar.  A vida não fora fácil para Quitéria depois que sua mãezinha foi morar no céu, pois sua madrasta não aceitava esse seu espírito independente, com sede de emancipação e quebra de tabus. E nessa lengalenga ela cresceu, ouvindo que mulher nasceu para bordar, tecer, fiar, cozinhar e cuidar da casa e do marido. O tempo passou, Tereza casou-se com José Medeiros e Quitéria permaneceu solteira, não teve oportunidade de estudar, mas de caça, pesca, montaria, armas e anseio de autonomia... ah! ela entendia até demais!

Naquele dia, Quitéria tinha ido até a casa da irmã para lhe falar de um plano de fuga, pois soube que seu pai ia fazer uma viagem de negócios.

— Minha irmã! Eu tive uma ideia genial! posso contar com sua ajuda? – falava Quitéria entusiasmada. – Vou cortar meu cabelo igualzinho ao de um homem, vou fugir de casa e me alistar no regimento da artilharia, mas preciso que você me empreste uma roupa do Medeiros. Tereza ficou estatelada com aquela atitude da irmã, mas não podia negar seus favores àquela que sempre cuidara dela como se fosse sua mãe:

— Oxe Mainha! inté eu fiquei com vontade de ir! Não fosse o Zé e as crianças eu ia também! – disse Tereza

— Pois ande logo que eu tô avexada! Me empresta o uniforme do Zé que hoje eu vou usar seu codinome e vou ser Soldado José de Medeiros e ninguém me segura!

Esse era o maior desejo de Quitéria, pois seus ideais estavam bem longe do patriarcado machista imposto pela sociedade.   Com a necessidade de legitimar suas inquietações, agora se dirigia até a barbearia do velho Quincas para a transformação...

Então, decidida a tomar o passo mais importante da sua vida, adentrou a barbearia, dando um tapinha no ombro do Quincas, pediu que deixasse suas madeixas com um corte masculino daqueles bem militar. O velho barbeiro esbugalhou os olhos - sem entender nada - disse-lhe apenas que iria cumprir o seu papel, mas sabia que aquele feito não seria do agrado do seu pai, pois ele conservava suas filhas no âmbito doméstico, limitando o seu espaço feminino e os costumes sociais.

— Pois assunte bem Sr. Quincas! Eu não vou seguir à risca esse papel social imposto pela sociedade, e aproveitando que meu pai viajou, hoje eu vou me alistar no exército e não ouse dar com a língua nos dentes.

Cabisbaixo, sem saber a quem obedecia, mas com a ética absoluta de um bom profissional, Quincas prometeu sigilo à menina Quitéria, que agora, deixando aquele recinto em busca do jogo da vida que lhe tornaria mais feliz, sacodia os últimos fios de cabelos que teimavam em agarrar-se à sua nova pele. Um vento de reforma profunda soprava seu rosto e descia entre a abertura do uniforme, indo até o seio arfando, apertado pela faixa que tirava a protuberância feminina, dando vazão a sua autonomia e ao seu desejo incansável de luta.

As botinas eram pesadas; mas nos pés de Quitéria pareciam travesseiros de plumas. A calça folgada escondia as belas curvas e davam-lhe segurança no disfarce da sua nova identidade. A aba do quepe sobre os olhos não conseguia esconder o brilho que afugentava suas retinas, os passos acelerados iam de encontro ao batalhão “Regimentos de artilharia”, onde o sonho de lutar pela independência do brasil e a sua emancipação, ia se concretizar. Era manhã de sol forte, a rua estreita que dava acesso ao quartel agora parecia agigantar-se. Somente vira assim, a estrada densa da floresta, a mira na sua caça e o sonho de conquistar sua própria independência.

Quitéria pensava em tudo que deixaria para trás, o seu cavalo de boa montaria, as manhãs de pesca, os tiros ao alvo... e o perdão do seu pai. Não via agora com os olhos do corpo e sim com os olhos da alma lutadora e forte. Pouco conhecera da vida da cidade, mas o que ouvia sobre o laço colonial que existia entre Brasil e Portugal era suficiente para romper os obstáculos que encontrasse até chegar àquele quartel. A fila para alistamento estava grande, mas grande mesmo era a vontade de romper a fronteira predominantemente machista e poder ter sua contribuição na sociedade.

— Nome?  José da Silva Medeiros. - Goza de boa saúde? Sim senhor! – Promete honrar o seu compromisso com a pátria? Sim senhor! – Quitéria respondia a todas as perguntas sentindo que estava atendendo aos critérios militares. No início tudo estava sob o controle e seu sexo não foi reconhecido, mas passado algum tempo, seu velho pai, por desforra à sua fuga, revelou ao oficial comandante a sua verdadeira identidade. O saiote estilo escocês de Quitéria, customizado por suas delicadas mãos, deu o ar da graça em infinitas batalhas a favor da independência, afogando o machismo, que agora ficava embaixo do que vestia o seu ego, quebrando barreiras e mostrando a força da mulher.

Era manhã de verão no Rio de Janeiro, o sol trazia os primeiros raios, que entravam pela janela do quartel iluminando o diploma na parede dos aposentos do capitão do Batalhão do Imperador, que agora fumava seu charuto e descansava suas belas e torneadas pernas, após devorar um prato de farofa de ovo com bacon, tomate e cebola, preparado por suas mãos, graças aos seus dotes femininos...

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

LIVROS & ENCANTAMENTOS: "MULHER MARIPOSA", DE MARI VENTURA, POR DANIELA CARUZA



LIVROS & ENCANTAMENTOS|01

"MULHER MARIPOSA: DO MAU PRESSÁGIO FEZ POESIA", DE MARI VENTURA


POR DANIELA CARUZA


Onde dorme a poesia da mulher piauiense? Quantos desejos desconhecidos lhes convocam à noite para passear em sonhos dormidos, insones, proibidos?

Pouco sabemos das mulheres piauienses que se apropriaram da escrita, manifestando através das palavras os próprios anseios, desejos, sensações e visões, como protagonistas e testemunhas de um tempo[1]. Menos ainda sabemos daquelas que não escreveram. Da mulher sertaneja, o que se vê, de maneira geral, é um retrato estanque, mudo, calado, de uma existência submetida, sofrida, sobrevivente. Uma personagem do passado, se for. Se ouvíssemos a sua voz, o que ela diria? A reconheceríamos?

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| foto: arquivo pessoal |

A histórica exclusão do rol daqueles que escrevem e devem ser lidos e lembrados faz da escrita da mulher piauiense, ainda hoje, uma ousadia. Uma ousadia tão grande quanto a de manter viva, noite e dia, em nossos corpos e espíritos, a poesia.

A sensação que permanece é a de que fomos roubadas. Desde muito cedo na história, na curta história de uma vida, na longa história de vidas passadas. Roubaram-nos os séculos, os meses, os dias, os anos. Roubaram-nos até mesmo o sono.

Ficamos com os trapos. A dor engolida, o lamento calado, os sonhos enterrados, os medos vividos. Uma raiva amarga e ferida, numa vida comprida, corrida, ocupada, escorrida pelos dias. Dormindo abraçadas com a solidão. Fingindo costume.

| foto: arquivo pessoal |

Mari Ventura
é uma mulher do sertão Piauiense que nasceu e vive entre linhas e letras. É professora, artesã e escritora. Entende escrita como um lugar de essência (subjetividades e plurissignificação), existência (ter voz e vez), resistência (construção desconstrução e reconstrução de concepções e contextos sociais). Se reconhece como uma poetisa do avesso ao verso. Ainda tem um estoque de medos, mas vai bebendo a coragem em pequenas doses. Autora do livro MULHER MARIPOSA publicado em 2022 pela Editora Voz de Mulher. 

Nem mesmo nos reconhecemos. Silenciadas, roubadas de nós mesmas, nos tornamos prisioneiras, encarregadas da própria carceragem. Acusadas do crime do desejo, o desejo de existir. Não parece haver saída, a não ser fugir, roubar de volta o que nem sabíamos que nos havia sido roubado. Afinal, não é possível viver fugindo de si mesma.

Assim é que, furtiva, nos nasce a poesia. Escondida, acuada, proibida, sentindo-se culpada, fugitiva. Até que irrompe, furiosa, voraz. Por vezes se debate, peleja, padece, mas já não pode ser contida. Grita. Nua, em carne viva, desafia. Parece até loucura, tanta vontade de ser. Preferimos chamar coragem.

Capa do Mulher Mariposa, Editora Voz de Mulher, 2022

Com sua poesia, Mari Ventura questiona os lugares que são considerados apropriados para uma mulher na sociedade, os papéis de gênero que nos são impostos, o teor pejorativo associado à mulher que se entrega à noite, aos devaneios, à poesia, a mulher da vida. É a mulher que fala em sua própria voz, de seus próprios desejos, território que lhe foi proibido. A mulher que se encontra em sua própria companhia. Fala também de cura e da descoberta da luz/lucidez em meio à escuridão.

As poesias ocultas na noite são como sementes guardadas debaixo da terra. Despertam silenciosas, e, vagarosamente, enraízam por baixo e por dentro, antes de sair ao sol. São também como a mariposa, que, antes de ser ela mesma, rasteja, e bravamente recolhe-se em seu casulo, sua solidão, para dentro de si compor-se em asas, até sair voando pelo mundo.

Vê-las voando é, para muitos, um assombro. Para nós, é pura poesia. Um sopro de luz.

Que alegria poder se criar assim, afinal.


**O texto acima é o prefácio da o obra Mulher Mariposa, de autoria de Mari Ventura.


Daniela Caruza
| foto: arquivo pessoal |

Cantora e compositora, Daniela Caruza vive em São Raimundo Nonato, na região da Serra da Capivara, e sua música pulsa com as forças que encontra no sertão e na caatinga. Os versos e a musicalidade de Daniela Caruza leem o mundo a partir dessa paisagem e criam poesia, misturam guitarras com forró e baião. Para ela, cantar a partir desse chão é um convite para nos conectarmos com nossas heranças mais profundas.


[1] Rocha, Olívia Candeia Lima. Flores Incultas e a Academia Brasileira de Letras: escritoras piauienses no contexto do feminismo no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. In: Mulheres e a Literatura Brasileira. Silva, N. F. C.; Cruz, L. G.; Tatim, J.; Pereira, M. P. T. (orgs.) Macapá: UNIFAP, 2017.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

MOSAICO DE IDEIAS: A ESCRITA, A MULHER E A BUSCA PELO ESPAÇO DE EXPRESSÃO, POR SANDRA SANTOS



MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|01 

A ESCRITA, A MULHER E A BUSCA PELO ESPAÇO DE EXPRESSÃO


POR SANDRA A. SANTOS


Não sei explicar como começou pra mim.  Só sei que sempre gostei de literatura e fui uma leitora ávida na infância e adolescência. Um dia em 2002, lidando com as coisas inóspitas que a vida por vezes nos proporciona, pensei que a qualquer momento explodiria.  Foi quando por impulso, peguei um papel e escrevi... Soltei a palavra, gostei do resultado e naquele mesmo dia mostrei a alguém. O que ouvi?

– P@##a, foi você quem escreveu isso? Você quem escreveu? Mesmo? – perguntou-me incrédulo o meu primeiro leitor.

– Sim, fui eu... Claro que fui eu. – Respondi tanto magoada quanto surpresa, num tom impregnado por um misto de desafio e orgulho ferido. Afinal, porque não seria, se eu estava ali, me expondo? E porque não poderia ser um texto meu?

– Nunca darei conta de você.... Você me assusta, você tem alma de artista. – Respondeu-me o tal interlocutor fitando-me como se aquele texto evidenciasse uma espécie de doença. Algo vil que me colocava numa posição vulnerável e em contraponto, me conferia alguma vantagem que lhe era intimidadora. Se era assim... então eu deveria me sentir culpada.

Recebi aquelas palavras como um elogio atravessado por uma ameaça velada.

Essa situação me marcou, primeiro negativamente e aos poucos tornou-se minha mola propulsora, já que amo um desafio. A vida, assim como a necessidade de sobrevivência me deixou sem possibilidades de me entregar à escrita por um bom tempo. Porém ela estava lá, latejante. A vontade de me comunicar, de gritar para o mundo o que eu via e o que eu sentia me cutucava diariamente. Havia algo a ser dito e eu queria falar.

Em algum momento cedi ao impulso e passei a escrever diariamente, fatos que me chamavam a atenção, histórias sobre pessoas e situações que eu observava, principalmente sobre o universo feminino. Mulheres que como eu, viviam suas vidas apesar das dificuldades e seus universos que me tiravam da zona de conforto. Mas, afinal existia alguma zona de conforto em mim? Talvez não, e exatamente isso que me conferia identidade. Então, viva o desconforto que me move.

Nasceram contos, poesias que ficaram muito tempo no HD do computador ou em papéis que começavam a amarelar. A princípio, não mostrei a ninguém por falta de coragem. Como poderia ser diferente se um dia, alguém colocou minha sensibilidade e minha forma de expressão no rol dos piores pecados?

Ainda bem que a gente amadurece. Ainda bem que existem espaços de fala como o “Feminário Conexões”. Salve a santa Internet que cada vez mais nos conecta.  

Com o amadurecimento, surgem a força e o amor próprio que nos fazem seguir no sentido contrário da mudez e do medo do julgamento. Força essa, que nasce na contramão do surgimento das rugas, e da quantidade crescente de velas nos bolos de aniversário. O amadurecimento traz o autorrespeito e escancara a magia fumegante da nossa potência: a potência de ser mulher.

Escolhi mostrar nessa primeira participação, o poema “O espelho” que deu origem a tudo isso, e depois de 20 anos, me conferiu o terceiro lugar, menção honrosa, no concurso do Celeiro Literário – Brasília. Esse concurso deu origem a coletânea -Tempos Adversos e me proporcionou a coragem de enviar meus poemas para o projeto Enluaradas, do qual aguardo ansiosamente, o primor de livro, intitulado "I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida”. Em alguns meses, sentirei a satisfação de realizar o lançamento do meu primeiro livro de poesias, O “Jardim dos Silêncios”, pela editora Viseu. 

Hoje, deixo que as palavras brotem, permito que fluam ganhando cada vez mais espaço em minha vida. No momento trabalho louca e apaixonadamente em meu primeiro romance, ainda com um nome provisório, “Dona Eugênia”. 

Agradeço a equipe organizadora desse blog e aproveito para a parabenizar a iniciativa, pois cada canal de fala, cada canal que permite a nossa expressão, permite trazer à tona o que nos move. Nossa genuína forma de ser e de estar no mundo.

Segue o poema que considero o ponto de virada da minha história.

 

O ESPELHO

Solidão. Veias secas.

O passado nada mais é que um peso morto sobre minhas costas frágeis.

Papéis em branco, aguçam a minha louca ânsia de escrever meu futuro

com a mesma segurança narcísica de quem escreve leis.

Hoje, só encontro manchas de sangue nas paredes do meu útero vazio.

Meus seios já não vertem mais o leite farto.

A dança do vento em minha direção brinca com as folhas mortas

intencionalmente queimadas do meu jardim.

Verti uma lágrima para cada uma delas...

Ouço teu olhar que me fala daquilo que envergonhado tu calas:

do teu suposto amor, da minha pseudosantidade que desprezei,

dos medos e perigos que procurei e que mesmo apavorada, por amor enfrentei.

Das preces que evitei...

Meu leito, minha morte.

Meu sorriso apagou-se na imagem da menina magra que morou no espelho.

Minhas bonecas quebradas riem-se de mim.

Meus sonhos tornaram-se minhas amarras e

como companhia que desprezo, tenho apenas anjos ociosos.

Os profundos sulcos em minhas mãos enganam a cigana experiente, linhas que

paradoxalmente, a cada ano tornam-se mais fortes enquanto meu corpo definha.

Consumo-me nas tramas que criei?

Tendência fatalista, é o que tu achas?

Que importa?

Quem lerá estas notas?

{Sandra A. Santos - Out//2002}

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Sandra A. Santos

Sandra A. Santos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.


ESSAS MULHERES: DE CABEÇA ERGUIDA, POR SIDNEI MANOEL FERREIRA


E S S A S   M U L H E R E S|01 

D E   C A B E Ç A   E R G U I D A


POR SIDNEI MANOEL FERREIRA


Aprender. Está aí um verbo que pratico em todos os encontros do Essas Mulheres (para quem não conhece: lives semanais no Instagram que faço com mulheres incríveis). Todo encontro é festa para minha alma, que sai renovada de tanto ouvir essas mulheres com suas histórias de luta, de tanto ver nos olhos delas a paixão pelo que fazem. Em cada encontro, essas mulheres me ensinam o quão o Feminismo é libertador numa sociedade eivada pelo discurso tóxico do patriarcado.

Ensinar e aprender. Aprender e ensinar. Alguém aí lembrou de uma alguma professora?

Pois eu sim! No primeiro encontro Essas Mulheres, no qual conversei com a brilhante poeta Marta Cortezão, falei, no quadro Álbum Essas Mulheres, de Antonieta de Barros (1901-1952), educadora, jornalista, escritora e política.

Nascida em Florianópolis e filha de ex-escrava, Antonieta trilhou, apesar de toda dor e barreira proprocionadas pela crueldade do indefensável racismo, uma carreira vitoriosa na imprensa e na educação florianopolitana. Escreveu para vários jornais locais e lecionou nos mais badalados colégios da capital catarinense. Também deixou a sua marca na política: foi a primeira deputada negra no Brasil e teve seu mandato vinculado à defesa incansável da educação (O dia do Professor foi, pioneiramente, criado por essa mulher apaixonada pelo ofício de ensinar). Antonieta não era propriamente uma feminista, mas defendia que a mulher deveria ir além do combo casamento, dona de casa e mãe que a sociedade machista reservava às mulheres na época.

Falar, então, dessa notável conterrânea na primeira live era inevitável e foi um momento especial. O que eu não esperava é que Antonieta voltaria a me emocionar noutra live.

Alguns meses depois, eu recebi no Essas Mulheres as catarinenses Sílvia Teske, renomada artista plástica,  e Vânia Teske, ótima contadora de histórias — o sobrenome não é coincidência, as duas são cunhadas. Eis que, na reta final da live (deliciosa por sinal), Vânia relata uma história protagonizada pela sua mãe (Nilda Teske) e Antonieta de Barros. Uma história que Nilda contava aos filhos sempre com muito orgulho.

 Nilda era aluna da antiga Escola Normal Catarinense. Antonieta era a diretora. A mãe de Vânia era uma jovem interiorana tímida, vivia de cabeça baixa na escola. Pois um dia, Antonieta postou-se diante de Nilda. A eminente diretora levantou o rosto da acanhada aluna e arrematou: “uma professora pra ser respeitada sempre deve andar com a cabeça pra cima”. Palavras que rasgam a pele. Nilda passou andar sempre de cabeça erguida. Nilda virou diretora de escola.

O Brasil é um país que ainda desvaloriza e fustiga os professores. Escola tem que ser prioridade. Por isso, enaltecemos os grandes educadores. Sim, Paulo Freire é um mestre. Não esqueçamos, contudo, de mulheres como Antonieta de Barros. Gigante Antonieta.

Sidnei Manoel Ferreira

É natural de Florianópolis/SC. Apaixonado por Fernando Pessoa. Feminista assumido. Formado em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), editor do blog Tabacaria, responsável pelo projeto Blog Tabacaria – Essas Mulheres (série de lives no Instagram, na qual entrevista mulheres escritoras dentre outras profissões). Ao lado da escritora e editora Telma R. Ventura, organizou a coletânea Ler Faz Crescer (Editora Voz de Mulher, 2021). Participou, como convidado, do e-book Geograficidade e Literatura: I Concurso Literário de Antologias Geoliterárias (Editora Pé de Jambo, 2021) e da coletânea Miçangas: um tributo a Rejane Aquino (Mondrogo, 2021). Escreve na coluna “Essas Mulheres”, no blog Feminário Conexões - https://feminarioconexoes.blogspot.com/ e-mail: sidneif@gmail.com Facebook: Sidnei Manoel Ferreira Instagram: @sidnei_manoelferreira Twitter: @SidneiManoelFer


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