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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR JOCINEIDE MACIEL

Clique na imagem e baixe o I Tomo das Bruxas gratuitamente
 

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO NO I TOMO DAS BRUXAS


POR JOCINEIDE MACIEL


O livro I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, organizado por Marta Cortezão & Patrícia Cacau, é composto por três partes que relacionam às três condições necessárias para a liberdade: meu Corpo, minhas normas, meu Templo Sagrado; Dos Silêncios que ardem no fogo das injustiças e dos Prodígios da Palavra; Da chama Poética que abrasa o ventre Divino das Bruxas.

Ao percorrer a primeira parte da obra, o leitor poderá encontrar diversos eus poemáticos que se embrenham na perspectiva histórica sobre o lugar que a mulher ocupou/ocupa ao longo da história da humanidade, principalmente as mulheres que ousaram sonhar, pensar, e acima de tudo assumiram a autonomia dos seus corpos e de suas vozes “negra índia branca amarela/ sou mulher!/ [...] não me julgue pelo que vê/ ou pelo que tenho na bolsa/ respeite minha identidade biológica ou social/ esse lugar é meu e dele não abro mão!” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p.43).

O encadeamento dos poemas que compõem a segunda parte da obra permitirá o vislumbre da escrita feminina num olhar que transcende: “as obrigações imposta socialmente a mulher” e alcança a magnitude da alma humana, em um envolvente jogo de palavras em que o fazer poético e o existir se metaforiza “[...] Quando eu começar a escrever,/ a mulher que, até um dia,/ pelas janelas olhava,/ abrirá as portas que nunca/ lhes deveriam ter sido fechadas,/ E será, na vida, tudo aquilo/ que um dia havia desejado.” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 105).

A última parte do livro finaliza a grande roda, onde cada uma e todas têm o seu lugar, onde os corpos bailam aquecidos em volta da fogueira que elas acenderam para clarear os caminhos e as noites escuras, nos gritos eufóricos por liberdade de expressão, elas se fortalecem na compreensão de que as bruxas nunca andam sós, mas são povoadas por muitas, com diversas paragens, espaços em que a escrita é a única e necessária poção “[...] é tempo de origens/ e coreográficas travessias/ despojadas da carne/ expõe-se às fibras/ e a nada mais” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 192).

Destacamos a escrita da poeta, professora, doutora, crítica literária e pesquisadora Elizabete de Nascimento, que nessa coletânea nos agracia com dois poemas intitulados: Promessas do meu Patoá e Essa miserável, uma dobradinha perfeita, que repercute dois pontos essenciais na produção dessa obra de forma geral. No primeiro poema, compreendemos que a vida e a poesia são metaforizados pelo próprio sangue a correr na veia: “[...] Sangue, música torrencial dessa vida dissoluta, minha essência./ Você! Ah, você!?/ Você é minha melhor poesia,/ é quem sustenta as missivas da minha biografia”. (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 132) e o segundo reúne a força de todas as escritoras que se lançam à escrita, e que em suas condições de poetas anseiam pelo reencantamento do mundo: “[...] Essa miserável, que dá boca e orelha ao papel, que torna público o impublicável/ Ah! Essa miserável, a poeta, ainda tiro-a do anonimato e entrego-a à forca” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 133).

Que esse meu eco de leitura encontre com os ecos de outros leitores e promovam um alarde literário a fim de fortalecer, ainda mais, a escrita feminina contemporânea.

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Referência bibliográfica:

CORTEZÃO, Marta; CACAU, Patrícia (Org.). I Tomo das bruxas: Do Ventre a Vida. Juiz de Fora, MG: Editora Siano, 2022.

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Jocineide Catarina Maciel de Souza é Quilombola Pita Canudos, possui graduação em Letras (2009) e Mestrado em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2014). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL/UNEMAT (2021). Componente do Grupo de Pesquisa em Poesia Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil - GPFENNCO-UNIR/CNPQ. Professora de língua portuguesa, atuando como formadora no DRE/CEFAPRO em Cáceres/MT. Bolsista do Programa de Apoio à Pós-Graduação da Amazônia Legal Edital 013/CAPES. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura mato-grossense, historiografia literária, Literatura de Autoria Feminina, literatura e ensino, letramento literário, literatura afro-brasileiras e Poéticas orais. É membra fundadora (2017) do Coletivo de Mulheres Negras de Cáceres/MT.

 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA


LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|14


SOBRE A VISIBILIDADE DAS ESCRITORAS NEGRAS + RESENHA DO LIVRO "O QUE É LUGAR DE FALA?" DE DJAMILA RIBEIRO


Por: Carollina Costa


Novembro mal começou e parte dos algoritmos na internet já se "mobilizaram" para aumentar a visibilidade de diversos criadores de conteúdo que falam sobre racismo e negritude. Pena que esse empenho só acontece uma vez por ano.

Vendo os anúncios, em especial de escritores e artistas, comecei a me perguntar quantos autores negros tenho na minha estante de livros e, mais ainda, quantas autoras negras. Para minha vergonha, não tantas quanto deveria. Apesar de ser brasileira e do meu país ter uma maioria da população negra, percebo que nos livros e nas artes esse grupo ainda é uma minoria, talvez nem tanto de produção, mas com certeza de alcance e divulgação. Isso me lembra uma professora de teoria literária que tive na faculdade contando sua experiência durante a palestra da famosa ativista negra estadounidense Angela Davis no Brasil.

Minha professora, assim como várias outras pessoas que foram empolgadas para ouvir a palestra de Angela Davis na conferência "A Liberdade é uma Luta Constante", não esperava que Angela exaltasse uma ativista e intelectual brasileira ao dizer "Eu acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo" (tempo do vídeo: 51:40). Angela não entendia porquê nós no Brasil buscávamos referências negras fora do Brasil, se ela própria tinha como referência uma brasileira. E de fato buscar fora do país estudos que expliquem o nosso país e nossas questões melhor do que nossos intelectuais é, no mínimo, curioso.

São muitas as vertentes que esse questionamento pode apresentar, mas me atenho aqui à visibilidade — ou falta de — que muitos estudiosos, artistas, criadores, escritores negros possuem em nosso país. Quando pensamos nas mulheres negras, menos ainda. Atualmente temos a Carolina Maria de Jesus, que foi "redescoberta" como escritora quase 50 anos depois de sua morte. Quando pensamos em como essas e outras escritoras, artistas e intelectuais negras conseguem visibilidade, não há como negar a importância que ainda tem a validação de uma elite intelectual qualquer ou a existência de um espaço de alcance democrático. Mesmo com algumas limitações e controvérsias, a internet cumpre esse papel de espaço democrático que, apesar do alcance dos algoritmos, ainda permite aos usuários existir e resistir no compartilhamento de artes e ideias.

Olhando cuidadosamente minha estante de livros, encontrei um que acredito explicar de forma bem didática alguns processos de visibilidade, em especial da mulher negra, é O Que É Lugar De Fala, da filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro. Cheguei a escrever uma breve resenha dele ano passado para minha página pessoal do Instagram e decidi compartilhar novamente esse ano, dessa vez no espaço do Feminário, que existe e resiste como um espaço virtual para mulherências diversas.


RESENHA: O QUE É LUGAR DE FALA?, DE DJAMILA RIBEIRO

Existe um termo que tem sido muito usado atualmente que é “Lugar de Fala”. Porém, seu significado muitas vezes é mal interpretado e utilizado como desculpa para pessoas optarem pelo silêncio por julgarem não ter “lugar de fala” sobre determinado tema ou realidade.

O Que É Lugar De Fala? é um livro em formato de bolso, de 111 páginas e dividido em 4 capítulos + Apresentação e Notas. Possui diversas referências teóricas citadas de forma muito didática e bem explicada. O livro aborda principalmente a questão do feminismo negro e a predominância do saber acadêmico eurocêntrico e utiliza esses temas para desdobrar o significado e uso do termo “Lugar de Fala”. 

O que Djamila Ribeiro, filósofa e intelectual do feminismo negro brasileiro, vem nos mostrar com esse livro, ao explicar o termo que ela própria difundiu no Brasil, é que todos têm lugar de fala. Lugar de fala é de onde você vê determinada realidade, diferente de protagonismo, que é você viver determinada realidade. A consciência de que todos temos um ponto de onde observamos diversas situações é essencial para entendermos nossa força de ação sobre ela, mas nem todos enxergam a influência que têm seus lugares.

Uma citação de Lélia Gonzalez abre o livro de Djamila e convida o(a) leitor(a) para uma viagem pela história da luta das mulheres negras desde o início do movimento feminista ao surgimento do feminismo negro, seguindo para explicações do termo "Lugar de Fala" e suas formas de uso.

Acredito que esse livro seja uma leitura essencial para quem já faz muito uso do termo, sabendo pouco ou muito sobre ele. Mas para quem não tem familiaridade com o assunto e busca uma forma didática, simples e ao mesmo tempo completa para um primeiro contato com o conceito, esse também é um excelente livro!

terça-feira, 8 de novembro de 2022

ELES LEEM ELAS: DESTINOS DESDOBRADOS, DE TERE TAVARES, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 


ELES LEEM ELAS|14


DESTINOS DESDOBRADOS, DE TERE TAVARES

 POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 

É possível conciliar o espírito da poesia com as formas da prosa? Foi pergunta semelhante, mas bastante esclarecedora, que Charles Baudelaire considerado como o responsável por uma guinada decisiva na poesia moderna, dirigiu em carta a um editor de seus textos, ali por volta de 1861: “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”.

Desde então e, cada vez com mais frequência, os escritores(as) têm produzido uma escrita algo arbitrária, despida de formalidades de composição, e com o espírito próximo da anotação íntima. Parece-nos que um impulso reflexivo serve de meio condutor para despertar imagens e ideias. E temos afinal, uma abordagem ao mesmo tempo lírica e incomodada, atenta às subjetividades e ao mundo ao redor sem, no entanto, deixar de estar relacionada com as qualidades da prosa; por isso mesmo, apresentando tendências voltadas para acolher textos maiores – narrativos ou não –, mesmo que procure fixar um olhar lírico sobre a realidade. As frases e parágrafos acabam por supor uma dinâmica extensiva para o texto e as imagens evocadas.

 

[Foto aquivo pessoal da autora]

A palavra perde seus contornos unívocos, e torna-se multisignificativa, irradiadora de significados variados. Com o andar da leitura, percebe-se o caráter de prosa desses textos – presente em tênues fios de enredos e nas conjecturas das personagens, interessadas em resgatar fatos e sentimentos que envolvem o fio narrativo. Textos em prosas poéticas que eventualmente, recorrem a figuras típicas da poesia, como a aliteração, a metáfora, a elipse, a sonoridade das frases etc. Contudo, o emprego desses elementos subordina-se ao ritmo mais alongado do discurso.

Destinos desdobrados, da escritora e artista plástica Tere Tavares segue tal seara de fortes conotações poéticas embasadas na preocupação com o humano e em refinado trabalho com a linguagem, que permitem considerar os textos como prosa poética. Poéticos porque são textos que não se fecham num sentido único, ao contrário, abrem-se ao final da leitura e apontam para o infinito, para o futuro e para dentro do “eu”. Faz-nos meditar sobre o penoso e solitário trabalho de aperfeiçoamento da consciência individual, conseguido graças à contemplação atenta do mundo e à investigação minuciosa dos submundos que compõem a alma. Trecho do texto “Maria Pedro”:

 

Arte: Tere Tavares, 'Beija-flor com flores vermelhas'- óleo sobre tela- 18 x 24 cm- 2019
[Foto arquivo pessoal da autora]


Escrevendo como se falasse, eu lhe permito confiar em dados diferentes, em escalas de conflitos insuperáveis e frases finais. Ensino-lhe a ver a dor maior para que ele sinta a sua dor diminuir. Abasteço-o com arquejos inéditos como um alfabeto infinito, onde cada soluço propõe uma nova música. Ele se entretece nessa leitura como um estudo de concordância às normatividades vibracionais capturadas quando se cola os ouvidos ao chão fechando as pálpebras. Isso supera avaliações de forma ou conteúdo. Eu lhe permito um sinal para outras fronteiras, a interpretação mapeada das catástrofes desconhecidas, das monumentais ideografias que completam a paisagem involuntária da sua própria luz; bastam-me esses voos que evolam de mim por puro deslumbramento”.

Se alguns textos se recolhem ao silêncio de confissões envolventes, outros guardam, todavia, uma atitude de provocação libertária, sobretudo naqueles que, de alguma sorte, tocam no sentir feminino e nas tantas e tamanhas violências que as mulheres ainda hoje padecem, e que ao final das contas acabam por se constituir nas “lost voices” do mundo. E isto percebemos já a partir do título da obra que se caracteriza por uma intenção manifesta. Desdobramentos da alma feminina. Percebe-se nitidamente a centelha de inquietação de uma prosa levada ao estado da poesia, mas sem abrir mão do plano narrativo. Verdadeira simbiose entre os gêneros tradicionais. Alquimia entre prosa e poesia.

 

[Foto aquivo pessoal da autora]

Mas isto também se faz por uma tendência meditativa que vai se acentuando e constituindo linha de força da produção da autora. O pendor reflexivo desdobra-se num leque de muitas faces, afinal. E pode mesmo prescindir da centralidade do sujeito lírico, articulando um ponto de vista que se entremostra oculto sob um fluxo de frases impessoais, e de que são exemplos flagrantes, textos como: “A feminina arte de nascer”, Notas de amor de uma mulher em muitas”, “Hino às obras inversas”, “Deméter”, “Filhos de papel e tinta”, “A arte não conhece o impossível” e “Sobre o filho de José”. Já na segunda parte da obra sob o título de “Outros destinos ou ensaios dos fins” que, dentre outros aspectos, foca no perpassar do tempo em nossas vidas, merecem destaque textos profundamente reflexivos como o são, “Nada precisa ser perfeito”, “Ensaio dos fins”, “Amulherquedesejaser” e “Translúcida”.

Para o espírito reflexivo interessam mais as ambiguidades e torções de sentido; são mais adequadas as palavras da ironia, do jogo de contrastes ou da liberdade associativa. Desvios que a linguagem poética produz para se afastar do imaginário comum. Acionado pela força do detalhe ou do objeto, por um ângulo ou por um gesto fortuito, o procedimento reflexivo costuma recorrer aos valores elementares – sensações, sentimentos, percepções –, com o propósito de expressar determinada condição. Qualquer coisa ou ser, têm o poder de estimular os sentidos e produzir entrelace de imagens.


[Foto arquivo pessoal da autora]

Saliente-se finalmente, que a atitude meditativa que prevalece em boa parte dos textos não provoca necessariamente uma depreciação do efeito poético. Ao contrário, essa mesma visão crítica recusa os mecanismos sociais que banalizam a linguagem e continua desejosa de uma expressão outra, em que seja possível uma linguagem pessoal e ao mesmo tempo comprometida com a experiência vivida. Sem dúvida uma atitude geral que tende à uma concepção Holística da vida, uma forma de se ver a si mesmo e de ver o mundo e todos os seres de uma forma global, como um todo, onde tudo está interligado, onde nada é isolado, tudo pulsa simultaneamente, onde o todo está presente em cada parte. Não existe nada desligado, isolado. Uma maneira de ver que cada ser humano está diretamente conectado com todos os seres humanos e com todas as demais coisas do universo.

Num mundo que está passando por tão rápidas mudanças em todos os sentidos, seja nos avanços tecnológicos, seja nos costumes e crenças, é de suma importância adquirirmos uma visão ampliada e um entendimento maior da vida. A autora ao caminhar rumo às sombras que existem no interior do ser e que guardam os mistérios primordiais, aposta no profundo poder da arte para transformar o indivíduo e incorporar poesia à vida humana, para que esta se transforme num poema contínuo e numa encantada realidade. Positivamente soube urdir textos que arrebatam o leitor numa torrente de símbolos, imagens e significados.

Krishnamurti Góes dos Anjos

Escritor e Crítico Literário

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Tere Tavares nasceu em São Valentim, RS, é escritora e artista visual. Reside em Cascavel, PR. Autora dos livros Flor Essência, Meus Outros, Entre as Águas, A linguagem dos Pássaros, Vozes & Recortes, A licitude dos olhos, Na ternura das horas, Campos errantes, Folhas dos dias, Destinos desdobrados e Diário dos inícios. Participante de 17 antologias e coletâneas no Brasil e exterior, algumas resultantes de concursos literários. Os livros Campos Errantes e Folhas dos dias, foram contemplados pela Lei Aldir Blanc, Edital Arte em toda Parte 2020. Possui publicações em diversas revistas no Brasil e exterior. Integra a Academia Cascavelense de Letras. Blog: http://m-eusoutros.blogspot.com.




Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo - Romance Histórico, Gato de Telhado - Contos, Um Novo Século - Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Participação em 27 Coletâneas e antologias, também em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

LIVROS & ENCANTAMENTOS: TRAVESSIA, DE ANA LIA ALMEIDA, POR CRIS LIRA

 



LIVROS & ENCANTAMENTOS/08

 'TRAVESSIA', DE ANA LIA ALMEIDA


POR CRIS LIRA


Hoje é dia de falar do Volume III da Coleção III do Mulherio das Letras, a novela Travessia, da autora Ana Lia Almeida. Começo dizendo que este livro me fez rir muitas vezes, também me fez chorar, e eu o li devagar, apesar de ser um livro de bolsa, porque cada um dos textos que juntos contam essa viagem, para pensar na ideia primeira do termo travessia, pressionou meus botõezinhos – para não confessar que estou pensando em inglês – em diferentes lugares.

[foto arquivo pessoal Cris Lira]

Desde menina, diante de uma certa profecia, eu decidi que não seria mãe. Há alguns meses, quando um pai de santo me disse, na Bahia, que minha orixá era Yemanjá, a primeira coisa que saiu da minha boca foi “mas eu nem sou mãe”. Ao que ele respondeu, “há muitas formas de se maternar”. Eu simpatizo com essa fala dele, mas, sei, também, que a travessia tão astutamente contada por Ana Lia Almeida é uma que eu nunca fiz e nunca farei, portanto, como eu a agradeço por ter me dado a mão, por meio do seu texto, para que eu me aproximasse um pouco do segredo.  

Dividido em três partes Quedas, Tropeços e Passagem, o livro nos atravessa, como o próprio trem de ferro, mencionado por Adélia Prado, que aparece como a epígrafe motriz do livro. Nos primeiros textos vamos acompanhando os acontecimentos à medida que a própria personagem vai vivenciando as experiências ao mesmo tempo que temos acesso à mente ansiosa, os cenários díspares que vão se formando, cada um mais caótico, tosco ou engraçado, e isso traz uma leveza ao texto ao mesmo tempo que não deixa de emprestar um pouco de ironia. Num deles, a personagem cai e pensa logo nas pessoas que podem vê-la ali, “toda suja nessa beira de calçada” (21). Dentre tantas, a maior ansiedade é que seja a sua médica, “[p]ois a médica mãe de dois filhos vai parar o carro bem aqui ao meu lado e vai me ordenar: “Levante já daí! Todas nós ficamos grávidas, não tem nada de mais” (21). Eu ri. A protagonista queria que eu risse. O jeito como conta me leva a pensar isso. Mas as perguntas que se seguem, o medo de não encontrar “o meio do caminho entre a mãe total e a desnaturada” (23) vão me chamando a escuta. Há uma mãe em construção aqui. Há um serzinho se formando e com ele há mil dúvidas e medos. Há também uma pessoa que se sente perdida de si, desencontrando-se de si mesma, “seria possível terminar o mestrado?” e que vai encontrando nos outros – especialmente nas outras mulheres – apoio e também julgamento. Apoiada neste livro, eu poderia falar muito sobre socialização feminina (a vizinha, a amiga Isadora, a mãe), o mito da beleza, solidão materna, entre outros tópicos. Nada do que eu pudesse fazer, porém, chegaria perto do trabalho feito por Ana Lia Almeida ao nos entregar essa sua travessia, ao criar as pontes para nos aproximarmos um pouco dessa experiência que, de certa forma, une as mães e, ao mesmo tempo, é sempre única e, tantas vezes, pouco revelada.

[foto arquivo pessoal Ana Lia Almeida]

Como diz uma amiga que estou sempre a citar pelas leituras que faço quando me deparo com sua voz a partir do que me traz os livros, a vida é uma contradição. Não há situações ideais, tudo está sempre em constante mudança. Permanecer enquanto se faz a travessia desses espaços turbulentos e contraditórios é o que tonaliza a vida. Por isso, deixo com vocês uma das partes do livro de que gostei mais:

Leite

“Meu peito esquerdo estava quase sangrando quando resolvi dar uma mamadeira de leite em pó a Nina. Não bastasse eu me sentir uma fracassada por isso, ainda tive de lidar com o julgamento dos outros. Minha mãe, quando descobriu, só faltou me xingar. Isadora (*amiga – grifo meu) também não gostou. A pediatra, muito menos. Por ironia do destino, só quem me apoiou naquele momento foi D. Edna (* a vizinha).

(...)

Enquanto D. Edna preparava o crime na cozinha, eu sofria por ser tão horrível a ponto de dar leite em pó para a minha filha. Estava certa de jamais me perdoar por aquilo. Que tipo de mãe eu era, com aqueles peitos sangrando, cheios um leite que minha filha não conseguia mamar?

(...)

Tive de aguentar o julgamento da minha mãe, de Isadora e da pediatra, o que me fez voltar atrás e insistir novamente na luta de amamentar.

(...)
Quanto mais Nina mamava, mais eu doava leite.

(...)

Quanto mais se dá, mais se tem: amor, vida, leite. Uma lição a cada mamada. Toda vez que me sentia alegre, meu peito começava a vazar. O amor jorrando em líquido, uma explosão de vida no meu corpo” (63-66)

Aprendamos a escutar as mães. Uma escuta verdadeiramente empática e tranquila, sem julgamentos. Deixo aqui o convite para que conheçam essa mãe se construindo na e pela palavra de Ana Lia Almeida. Espero que riam junto comigo.

Até o próximo volume!

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Ana Lia Almeida é natural de Recife/PE e mora em João Pessoa/PB, onde leciona para o curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Ainda nas primeiras incursões pelo mundo literário, é autora de “Curtinhas da Quarentena”, livro de mini-crônicas publicado também pela Ed. Venas Abiertas, e da série de contos “Rita na Luta”, publicada quinzenalmente em seu blog Salto de Palavras. analiavalmeida@gmail.com @ana.lia.almeida



Cris Lira é paulista e escreve desde que se entende por gente. Com a Editora Venas Abiertas, participou das Coleções I, II e III do Mulherio das Letras. Seu mais recente livro, Fragmentos do Interior, foi lançado em 2021. Atualmente, é professora e supervisora do Programa de Português da Universidade da Geórgia, em Athens, nos Estados Unidos. Redes Sociais: Instagram: @lircris Facebook: facebook.com/cris.lirica Youtube: Vamos ouvir o Mulherio

terça-feira, 27 de setembro de 2022

LIVROS & ENCANTAMENTOS: AS CORES NA PONTA DA LÍNGUA, DE ADRIANNA ALBERTI, POR CRIS LIRA



LIVROS & ENCANTAMENTOS/07


 'AS CORES NA PONTA DA LÍNGUA', DE ADRIANNA ALBERTI


POR CRIS LIRA


Como comentei na postagem da resenha anterior, na coluna Livros & Encantamentos, estou lendo a Coleção III do Mulherio das Letras e vou compartilhar neste espaço impressões de leitura como um convite para que mais leitoras e leitores conheçam a vigorosa produção literária do Mulherio das Letras.

[foto arquivo pessoal Cris Lira]

Hoje, falo sobre As cores na ponta da língua, de Adrianna Alberti. Desde o título, o livro nos chama a vivenciá-lo a partir de vários sentidos, despertando em nós um pouco do lúdico, da forma de experimentar o mundo pelos olhos das crianças, mas com um olhar de quem já conhece um bocado da vida e do cotidiano atroz que nos consome.

Organizado em 4 seções: “Céus azuis e sóis cinzas”, “A melodia do arco-íris”, “Memórias de ipê” e “Elas na ciranda”, o livro é composto por pequenas narrativas que são sempre introduzidas por um título instigante. Confesso que, como leitora, sou dada a títulos. Gosto dos que não me entregam nada, que me deixam sem qualquer expectativa, mas que iluminam as entrelinhas quando me aproximo do fim. O primeiro texto, por exemplo, “Quando os dias são bons”, narra sequencialmente os acontecimentos de uma manhã qualquer, num dia qualquer, cujo triunfo é conseguir chegar ao trabalho. Não há qualquer menção à depressão, à angústia, à tristeza. É a disposição dos afazeres feitos e por fazer que indica por onde anda o estado mental da protagonista: “respirar era simples” (28). Há várias narrativas com o mesmo tom no livro, indicando a força do cotidiano para a compreensão do mundo, as repetições como o caminho para aceitar perdas e descobrir novas formas de estar presente, como é o caso de “Seu nome é perpétuo” (31). O universo que se abre com este livro é o que nos oferece possibilidades para olharmos para a nossa própria rotina, para a beleza das coisas mínimas e mundanas que se mostram diariamente. Não é esse, também, um dos papéis a ser desempenhado belos bons livros? Fazer-nos ver, no nosso dia a dia, reflexos das histórias que trazemos do papel para as nossas vidas? Acho que justamente por isso gostei tanto de “O quintal do inferno” (55). Só quem viveu e amou em geografias outras, sentindo-se fora do lugar, é capaz de compreender o peso do clima na nossa forma de habitar o mundo. Reproduzo, aqui, um trechinho: “O primeiro mês foi sofrimento. Noites quentes, o ar morno e seco, mas a roupa sempre molhada, cheia de suor nojento. . . . O povo do sotaque diferente, sorridente, mas quem poderia ser feliz em um lugar onde faz 45 graus na sombra?” Ler esta pequena narrativa foi como receber aquela troca de olhar que apenas as amigas que se conhecem há muito tempo sabem trocar. Piscamos, ali, uma para a outra, ambas um pouco perplexas de como há quem exista, ame e coma em lugares que podem ser tão inóspitos e, ao mesmo tempo, tão queridos por nós. É uma lembrança de que somos seres contraditórios, sempre na corda bamba, à espreita de algo que hoje pode ser bom, mas que amanhã talvez seja ruim. Não há medida para a totalidade é o ensinamento de “As cores na ponta da língua”, de Adrianna Alberti.

[arquivo pessoal da autora Adrianna Alberti]

Quero deixar uma nota para agradecer o prefácio primoroso assinado por Carolina Mancini. Diz a autora, na abertura, “Você precisa sentir primeiro”. Pois, então, sintamos!

 

Não mudem os livros de lugar (p. 34)

 

Primeiro, um importante fato sobre mim: eu peço o mesmo sorvete há sete anos na sorveteria da cidade. Portanto, na noite em que, sem nenhuma sugestão, eu coloquei queijo ralado no meu miojo, considerei uma vitória. Apenas uni o pensamento que sopa é excelente quando vai queijo ralado, miojo é quase uma sopa, então deveria ficar bem. Não ficou. Decepção. O queijo empelotou e o miojo ficou com cheiro esquisito e sabor estranho de queijo velho, quando deveria ter o sabor e o cheiro artificial de galinha caipira. Me senti orgulhosa, mas completamente decepcionada. E, é por essas e outras, que peço o mesmo sorvete há sete anos na mesma sorveteria da cidade.

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[arquivo pessoal da autora]

Adrianna Alberti é a paulista mais campo-grandense dessas paragens. Já passou dos trinta, workholic, vive com alguns gatos endemoniados. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e graduação e mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grasso do Sul (UEMS). Pesquisadora de Literatura Fantástica, contista nas horas vagas e poetisa por identificação dos leitores. Publicou o livro de poesias O silêncio na ponta dos dedos em 2020, seu primeiro livro solo, tendo publicado desde 2011 contos fantásticos e poesias em antologias pelo Brasil. Colunista do coletivo literário O Bule. Adrianna.alberti@gmail.com  @tykkaa



[arquivo pessoal da autora]
Cris Lira é paulista e escreve desde que se entende por gente. Com a Editora Venas Abiertas, participou das Coleções I, II e III do Mulherio das Letras. Seu mais recente livro, Fragmentos do Interior, foi lançado em 2021. Atualmente, é professora e supervisora do Programa de Português da Universidade da Geórgia, em Athens, nos Estados Unidos. Redes Sociais: Instagram: @lircris Facebook: facebook.com/cris.lirica Youtube: Vamos ouvir o Mulherio

sábado, 24 de setembro de 2022

LIVROS & ENCANTAMENTOS: RUMOS POÉTICOS, DE ADRIANA PARDO MALTA, POR CRIS LIRA

Capa de "rumos poéticos", de Adriana Pardo Malta


LIVROS & ENCANTAMENTOS/06


 'RUMOS POÉTICOS', DE ADRIANA PARDO MALTA


POR CRIS LIRA


O Mulherio das Letras, coletivo literário-feminista, criou a oportunidade para que muitas mulheres escritoras pudessem se conhecer e imaginar juntas formas de adentrar o mercado livreiro brasileiro. Este ano, 2022, o coletivo celebra 5 anos do primeiro encontro em João Pessoa em 2017. Como não poderei estar com as minhas colegas em novembro, vou usar este espaço para falar sobre a última Coleção do Mulherio, a Coleção III, publicada em 2021 pela Venas Abiertas, que conta com 33 livros de bolsa. Começo dizendo que, como escritora, um dos meus maiores desejos é, justamente, encontrar leitoras e leitores, então, que as observações que aqui compartilho fiquem de convite para que conheçam a obra vasta que está sendo produzida pelas mulheres que fazem parte do Coletivo.

[foto arquivo pessoal Cris Lira]

O livro de hoje é Rumos poéticos, de Adriana Pardo Malta. Como adianta Silvana Silva de Farias Araújo, que assina o prefácio, trata-se de um livro que “pulsa vida”. Composto de vários poemas breves que tratam de temas diversos como a escrita “A minha lama inquieta / é composta de sim e de não . . . E flutuo em uma névoa de palavras. . . / Jogadas ao vento / E trazidas pela solidão / do nosso próprio existir” (Palavras) e até a necessidade do lúdico no cotidiano “Pode parecer infantil (e é!!) / Mas, através dos meus sobrinhos / percebo um mundo mais pueril” (Sobrinhos), o livro é, sobretudo, um convite para o diálogo. Enquanto eu o lia, percebi o convite da poeta para que pudesse entrar em contato com os seus textos de modo mais profundo do que a partir da pena da crítica literária. Era um convite para a escuta, como se ela me dissesse, senta aqui comigo e contempla. Talvez seja por isso que tenha ficado feliz ao me deparar com o seu “Faces da minha Bahia” (51). 

Faces da minha Bahia

 

Em teu ventre místico

Geras a cria bem criada do humano

E num ato insano

Revelas tuas faces,

Tuas cores,

Teus sabores...

Herdastes a doçura de Oxum

E a força de Ogum.

Deixastes no ato dos teus rastros

O sangue e as pétalas.

Suores dos peregrinos,

suores dos sem destino!

Cultuas o sagrado,

Celebras o profano!

Luzes e sombras

Partilham do teu entardecer.

Marés de magia

E de orgia

Movimentam o teu cenário.

Teu povo imponente

De dentes sorridentes

Compõem a tua história.

As tuas múltiplas imagens.

Nos envolve,

Nos alegra,

Nos entristece...

Continuas sendo musa

E a tua grandeza permanece!

Rendo-me ao teu encanto

E consagro

A tua eterna magia!


{Adriana Pardo Malta}


Ali, compartilhamos um segredo. E mais não digo.

Até a próxima leitura com o Volume II.

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[foto arquivo pessoal da autora]

Adriana Pardo Malta á natural de Feira de Santana, Bahia, e reside no Rio de Janeiro. Pedagoga e psicopedagora. Pós-graduada em Educação Especial/Inclusiva (UNIA – Espanha). MBA em Gestão Empresarial (UNESA/RJ). Autora dos livros: Rumos poéticos e Rimas na janela. Integrante da Confraria Poética Feminina e do Mulherio das Letras – Bahia. Membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB) e da Academia Internacional Mulheres das Letras. Participação em diversas antologias. adrianapardo25@hotmail.com


[foto aqrquivo pessoal da autora]

Cris Lira é paulista e escreve desde que se entende por gente. Com a Editora Venas Abiertas, participou das Coleções I, II e III do Mulherio das Letras. Seu mais recente livro, Fragmentos do Interior, foi lançado em 2021. Atualmente, é professora e supervisora do Programa de Português da Universidade da Geórgia, em Athens, nos Estados Unidos. Redes Sociais: Instagram: @lircris Facebook: facebook.com/cris.lirica Youtube: Vamos ouvir o Mulherio

domingo, 28 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|10: NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana, POR LAU SIQUEIRA

 


ELES LEEM ELAS|10

NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana


Por Lau Siqueira


O primeiro livro é sempre uma provocação e um desafio. Uma estirada de Língua do poeta ou da poeta. Especialmente porque as facilidades para a publicação nesses tempos modernos, geralmente convidam ao abismo. Os canais de divulgação da Poesia e principalmente da nova Poesia brasileira, são inúmeros. Os blogs, as plataformas, as redes sociais. Dificilmente um escritor ou escritora fica inédito por muito tempo. Escreveu, publicou. Ninguém está isolado. A bolha dos poetas municipais, estaduais ou federais, todavia, explodiu enquanto “tiravam ouro do nariz”.

Para adquirir Artéria, fale com Clareanna Santana via perfil @clareamente
 ou via perfil Facebook 

Anos atrás alguns acelerados acendiam o alerta máximo sobre o que seria a tal “literatura na internet”. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, mas o medo das novidades mordeu muitos calcanhares. Nos primórdios da conexão discada os poucos textos expostos eram generalizados como “escritas rasas”. Era o veredito geral da Suprema Corte Literária. Até que os “togados” também entraram nas redes. Os desconfiômetros foram sutilmente desligados.  Não se falou mais nisso. Salvo por alguns absurdos apocalípticos, a prudência sempre evitou acidentes fatais e injustiças silenciadas, mas nunca deteve a história. Assim, conclui-se que os meios não melhoram nem pioram a literatura de ninguém, mas ampliam os campos da visibilidade.

Na medida em que pensamos no turbilhão que é a atual produção poética brasileira, não nos cabe negá-la. Muito menos negligenciar sobre quem chega. Afinal, escrever e escrever poemas muito especialmente, é sempre um aprendizado cheio de boas lições. No mais, a chamada “literatura eletrônica”, não é e nunca será um novo gênero, mas uma realidade intransferível. Segundo N. Katherine Hayles, tudo isso afetou o sistema cognitivo humano e “aquilo que ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura”. Ou seja: um paradigma saiu silenciosamente pela janela enquanto outro instalava-se no jardim.

Nunca sei onde começa de fato um livro de poemas. Com “Artéria” (Editora Libertinagem-SP) não é diferente. Falo com a convicção de quem lê compulsivamente, mas também escreveu poemas e teve a sorte de vê-los publicados. Sou um leitor movido prioritariamente pelo prazer da leitura. Anárquico e apaixonado. Desde sempre prevalecem as minhas escolhas eletivas. Mas por onde começar e onde terminar a leitura de um livro de poemas sem deixar esquecida uma única página? Tenho meu próprio método. Nunca faço uma leitura linear. Apenas percorro este farfalhar de silêncios que, por exemplo, encontrei na poesia de Clareanna Santana. Muito jovem ainda, Clareanna aprendeu a pensar profundo. Sabe que a palavra - arma vital da poesia, também é letal. Serve para glorificar, mas também pode trucidar.

Artéria está à venda pelo site da Libertinagem, clique na imagem.

A poesia de Clareanna traz uma tradução literal da sua própria pele. Expressa um toque destemido, um mergulho represado. Um sol e uma lua que se dissolvem entre si de forma ritmada. Todos os sentidos e todos os signos conversam e trocam de lugar o tempo todo. Sim, fiz minhas escolhas e colhi bons frutos nos versos desta poeta talentosa nascida em Eunápolis, no Sul da Bahia. Hoje mais que poeta baiana, é do mundo. Integra um universo literário que apresenta ao Brasil nomes como Sérgio de Castro Pinto e Maria Valéria Rezende. Morando na Paraíba, habita um dos cenários de maior efervescência da literatura contemporânea. Sem pressa, vai ocupando espaços. Refazendo-se permanentemente, reinventando uma poesia que já se faz necessária.

O poema “coração de baleia” foi minha primeira leitura deste livro. Portanto, segui a minha lógica pessoal de leituras. Não é o primeiro poema do livro, mas um dos primeiros. Poema curto que exige leitura demorada. Fiquei buscando as paisagens nele contidas, as agonias, as fraturas expostas de cada verso e ao final me rendi aos seus apelos: “a veia recheada/ meio carne/ meio máquina/ reserva-se pronta e cheia./ liga-se ao músculo salpicado/ entre doçura e pecado:/ meu coração de baleia”. A escrita de Clareanna faz pensar e pensar um poema é a melhor maneira de senti-lo. Em “coração de baleia”, assim como em outros poemas, a poeta abre alas para uma caminhada que vem de longe, sem medo de revelar suas pegadas.

Em Clareanna Santana não vemos disfarce. Apenas um leve fingimento pessoano. Ela finge completamente “a dor que deveras sente”, mas não a disfarça. O filósofo francês Mikel Dufrene escreveu que “(...) a espontaneidade é, a um só tempo, a condição e a recompensa de sua operação e, antes de tudo, de sua docilidade.” Na espontaneidade da poesia de Clareanna é onde encontramos os seus maiores disfarces. Uma espontaneidade lírica que logo é encoberta pela artesania, pelo meticuloso trabalho com a palavra. Nossa poeta justifica as ideias de Domício Proença Filho: “(...) Na maioria dos casos é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra literária de faz, fazendo-se.” Clareanna constrói em seus versos uma teoria para os seus próprios poemas.

Sua escrita tem uma unidade definida: é corpo, mente e mistério. A certeza de existir e a força onírica das suas indefinições. Tudo resumido em cada estrofe. Especialmente em poemas como “o corpo”, onde ela diz: “se de massa/carbono me faço/ é de antimatéria que vivo/ sobrevivo em meio ao cansaço/ sou matéria de corpo sofrido”. Ela sabe como afinar o instrumento. Conhece e reconhece as trajetórias do seu próprio corpo e as incertezas da pele. Sabe que o mergulho profundo é sempre revelado nas superfícies. No escambo dos sentidos, na dor e seus renascimentos. Sua verve nasce das alamedas percorridas e dos labirintos onde as certezas se perdem. Mergulhada em linguagens, vive visceralmente seus processos e suas relações impermanentes com a invenção. Vive cada vez mais profundamente a doma dos próprios delírios.

Em seu arsenal de palavras não há limites. A poeta revela suas metalurgias retorcendo os aços de cada significado. Não demonstra pressa.  Parece que faz e refaz sempre o mesmo verso. Debela agonias no trapézio que é sua invenção de segredos. Num Globo da Morte onde equilibra-se nos desequilíbrios e desafia seus limites. Como uma abelha rainha que faz e desfaz seus motivos. Ela transforma o poema num espelho de surrealidades. Mira-se no açude permanente das agonias e faz suas escolhas. Sabe que para além da imagem refletida, existe um olhar que consome os dias. Consciente da sua juventude, amplia seu tempo e sua existência em ancestralidades. Percebe que nada é fruto do acaso, mas não apressa o rio. Já percebeu que “ele corre sozinho”, como disse Barry Stevens. Sempre libertária, passeia na equidistância das margens.

Não parece preocupada com reverências programadas. Percebemos a sua consciência crítica dos nossos dias em poemas como “resistir”, onde a poeta reconhece o peso das travessias num tempo de guerras, enfrentamentos e pandemias: “acordo/ sem rito/ do luto/ vivo”. Transforma o substantivo masculino “luto” no verbo unificador das suas múltiplas existências. Sabe que sua condição de mulher num mundo de misoginias e patriarcados exige uma luta irrevogável, uma resistência que vai além do corpo. Resistir é reexistir ao nascer de cada Sol e de cada Lua. Como se o que desaba em cada esquina, o que dorme nas calçadas, o que queima nas florestas, também fosse a matéria prima do seu modo de resistir e reinventar-se em suas trincheiras de mulher múltipla, espelhada no aço reverso do espelho. Como uma ‘tigresa de unhas negras’, reage enquanto o mundo moderno impõe silenciamentos.

Certamente “há uma fome insaciável” revelada em cada verso enquanto a poeta distrai a matéria bruta. Brinca com as palavras, mas não com os pilares do poema. Talvez numa releitura de Maiakovski, vai dizendo para si mesma que “nós polimos as almas com a lixa do verso”. Antes de polir as almas dos leitores e leitoras, Clareanna tomou o cuidado de polir a sua própria. Tirou o pó das entranhas. Burilou seus versos para chegar no que Fernando Pessoa nos diz em O Guardador de Rebanhos: “ser poeta não é uma ambição minha/ é minha maneira de estar sozinho.” Visita sua sempre inevitável solidão, reconhece suas entranhas e segue deixando rastros. Jamais revela o corte nas cicatrizes. Não cobre suas dores com o couro cru da lamentação. Em plena sangria, mostra sua permanente inconformidade. Especialmente com o mundo, mas também consigo mesma: “olhos, boca, tato, vida, mundo.”

Já dizia o poeta mexicano Octavio Paz: “palavras de poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”. É desta forma que Clareanna se despe aos olhares do mundo. Sem medo do que mostra. Ela mesma parece apoderar-se do que sente e vê. Quem a lê, compreende uma poesia que desnuda, mas que também estabelece distâncias. Ao falar de si, a autora reverbera seu tempo, reconfigura permanentemente seu modo de dizer. Desfralda a bandeira de uma geração que sonha e deseja um mundo de igualdades e linguagens conquistadas. Sem a imposição das certezas. Sem as convulsões do que não transborda. Sem as facilidades do que eleva, mas também oprime. Sua poesia agora não é mais apenas sua e ela sabe disso. Clareanna soltou sua alcateia de lobas famintas. Inventou sua rebelião. Como quem se alimenta das próprias feridas para se tornar imbatível. Traduz seus uivos pelas esquinas: “buscou preencher o vazio/ no corpo alheio / umbral em meio fio/ estupidez em copo cheio (eros)” Seus versos revelam bem mais do que as profusões do intimismo. Penetram na turbulência de quem os lê oferecendo generosamente o mapa dos seus esconderijos ao sabor repartido da existência.


CINCO POEMAS ESCOLHIDOS PELA AUTORA

 

a gota

 

a gota escapa da pia

como melodia ritmada

num solilóquio de dia

quebra o silêncio e nada.

 

saudade de casa

 

d’onde o sol corta a neblina

daquelas curvas acentuadas

deste barro em que sou carne

da terra indígena roubada

das linhas que marcam o asfalto

do mato que beira a estrada

do horizonte preenchido de pasto

do deserto verde que desmata

da mistura de nossas falas

das velhas cordas do violão

de todo amor que nos embala

daqueles versos de sua canção.

 

arbítrio

 

palma de cinco traços

carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas

golpeadas pela vida

eis as mãos e os calos

torneadas de danos

pele, unha e cicatriz

minha força motriz

meus caminhos mundanos.

 

a poesia está

 

na ponta da língua

na língua do dedo

no dedo a fonte

na fonte o cerne

no cerne a flor

à flor da pele.

 

terceto

 

acorda vida! Tece

a corda bamba:

tira à tira, fica a trama.

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LAU SIQUEIRA
Foto arquivo pessoal do autor

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS, em 1957. Desde 1985 reside na Paraíba. Publicou oito livros de poemas, participou de diversos projetos e publicações sobre leitura literária. Sua poesia está incluída em antologias no Brasil e no exterior. Atualmente a Editora Casa Verde, de Porto Alegre, possui exclusividade sobre a sua obra e seus livros podem ser adquiridos pelo e-mail casaverde@casaverde.art.br

 

CLAREANNA SANTANA
foto do arquivo pessoal da autora

Clareanna Santana (1987), poeta baiana radicada na Paraíba. Escreve poemas desde a adolescência. "Artéria", livro de poesia recém publicado pela Editora Libertinagem (SP), é seu primeiro livro solo.

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