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domingo, 20 de março de 2022

POESIA NA REDE: A GUERRA E AS MULHERES, POR FLAVIA FERRARI




POESIA NA REDE|05


A GUERRA E AS MULHERES

                                                                                                 Por Flavia Ferrari


Neste mês, no dia 8 de março, as redes ficaram divididas entre celebrar o “dia das mulheres” e questionar a tal data, dado que a condição da mulher no Brasil e mundo afora não encontra motivo para comemoração. 

As falas repugnantes de um tal deputado a respeito das mulheres em condição de guerra provocaram uma reação de repúdio por parte de todos aqueles que têm alguma sensibilidade. Provavelmente (e lamentavelmente) ele seguirá com o seu mandato, pois o machismo estrutural tem a consistência maciça de chumbo em algumas estruturas, como na política por exemplo. 

Eu me deparei nas redes com o compartilhamento de um poema da polonesa Wislawa Szymborska que, para mim, é um poema que conta a história de mulheres, mães, crianças, famílias, de um país inteiro.

As guerras são muitas e estão sempre em andamento, mesmo que não tenhamos notícias de várias delas no jornal da tarde.

Este século talvez não testemunhe o fim das guerras e das desigualdades. O poema de Szymborska poderia ser reescrito todos os dias, em diferentes locais. O desamparo escancarado pelo poema é um estado de alma cuja dor é aguda e insuportavelmente durável.

Vietnã - Wislawa Szymborska

Mulher, como você se chama? - Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.
Desde quando está está aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.
De que lado você está? - Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.
Tua aldeia ainda existe? - Não sei.
Esses são teus filhos? - São.

*_*    *_*   *_*    *_*


Referência: Szymborska, Wislawa. Poemas; seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.




sábado, 19 de março de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|06


CLAUDINE, CLAUDETTE, COLETTE: DA CRIAÇÃO À CRIADORA


Por Carollina Costa


Nesse mês de março celebramos o Dia Internacional das Mulheres no dia 8 e esse marco da nossa constante busca por voz e direitos não poderia ser esquecido por aqui. Para celebrar a data e tudo que ela simboliza, trago aqui uma breve resenha do filme Colette, baseado na vida da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette.

Nascida no interior da França no século 19, Colette foi uma romancista casada com o editor Henry Willy que fez dela uma das escritoras fantasmas que ele possuía em sua editora. Colette sempre foi criativa e a frente do seu tempo, e foi baseada em suas memórias de adolescência que criou as histórias da série Claudine (1900), obras que por muito tempo Willy assinou como se fossem apenas dele, a ponto de vender os direitos para uma editora sem consultar Colette sobre o assunto. No fim, Colette consegue resgatar os direitos de suas obras e passa a escrever com seu próprio nome, continuando sua carreira de escritora, agora também atriz de teatro encenando, inclusive, livros seus que viraram peças teatrais.

Embora fosse mais liberal do que muitos maridos de sua época, Willy usou sua vaidade como forma de ter controle sobre a esposa. No filme, há cenas em que Willy tranca Colette em casa ou no quarto e só a deixa sair após ela escrever determinada quantidade de páginas de alguma história que ele aprove. Ele tinha seu time de homens escritores fantasmas, mas nenhum deles lhe deu tanta fama e sucesso quanto as histórias escritas por Colette, uma mulher e sua esposa.
Através de Willy, Colette foi apresentada ao meio dos artistas e literatos e, aos poucos, aprendeu a tirar proveito dessa influência para si mesma. Conheceu mais mulheres também artistas, envolvendo-se romanticamente com algumas e criando laços de amizade e cumplicidade com outras. Por fim, largou o marido enfurecido e foi seguir seu próprio caminho nos palcos e nas letras, sendo reconhecida e aclamada ainda em vida.

Ao menos hoje em dia podemos escrever usando nossos próprios nomes sem grandes problemas. Não precisamos mais que um homem de um pequeno círculo de intelectuais nos autorize a escrever ou publicar. Embora ainda tenhamos muito o que conquistar, é gratificante enxergar o progresso que já fizemos.

Em diálogo com o filme, fiz esse curto poema intitulado Claudette que fala sobre a liberdade da mulher na arte e sua conquista sobre si mesma.


Claudette

Tal qual menina perdida
Você me encontrou atraída
Por tua pose
Terno e fita
Do filme que encenava
Sempre que me via

Casei tendo liberdade
Para fazer tuas vontades
Fingindo que eram minhas

Para que subisses
Eu descia
Para que brilhasses
Eu desaparecia
Como singelo apetrecho
Acompanhava o desfecho
Das histórias que querias

De terno e gravata
A verdade veio me visitar
Dizendo que era hora
Ou Claudine
Ou Colette
Guiaria o resto de minha história

Claudine est mort

Refeita
Vagando
La Vagabonde de Paris est libre
Livre para os palcos
Pelas letras
Livre de ti







sábado, 5 de março de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|05


PACARRETE: ARTE E SENSIBILIDADE


Por Carollina Costa



Vez ou outra me pego pensando na velhice. Sei que é um assunto que muita gente evita em qualquer idade, mas quando vejo tanta gente fugir de alguma coisa, fico querendo saber o porquê.

Há algum tempo assisti ao filme brasileiro Pacarrete, baseado na vida da pianista e bailarina clássica cearense Maria Araújo Lima (1912-2004). O filme mostra a vida da artista já como professora de dança aposentada que tinha o sonho de voltar aos palcos, porém a idade impunha seus limites físicos e sociais, visto que além de seu corpo não se sustentar mais na ponta dos pés como outrora, os habitantes da pequena cidade onde morava limitavam ou excluíam a participação de Pacarrete dos eventos de dança.  Misturando comédia e drama de forma bela e sensível, o filme narra a incessante trajetória da protagonista em busca de manter viva sua arte, não importa as limitações em seu caminho.

Esse filme me fez pensar sobre o quão comum é deixarmos uma paixão sumir no tempo, normalizando quando as reviravoltas da vida nos afastam de nossos sonhos ou de uma realidade que amamos. Pacarrete insiste em não deixar seu amor pela dança morrer, nem que isso signifique dançar sozinha em casa ou na rua, sendo incompreendida por aqueles que não "ouvem a mesma música" que ela.

A dor, sensibilidade e esperança apresentadas no filme Pacarrete me inspiraram o poema autoral a seguir, que apesar de estar bem ligado à narrativa do filme, pode ser interpretado pela leitora da melhor forma que lhe couber.


Velhice

Bailarina na meninice
Aplausos sempre gostei de ter
Mas depois de um certo tempo
A saudade do não vivido
Prevaleceu como um machucado exaurido
Ao som de Tina Turner
Despertei para o corpo de minha irmã falecido
Me lembrando da morte que rondava meu abrigo
À sombra de tudo que eu não poderia viver
Eu morri
Eu morri e esqueci de me avisar
Fui pra rede me encasular
Até a Maria ir me tirar pra dançar
E eu dancei
Dancei
Depois de tanto relutar
Fazendo do meu palco a calçada
Dançando como um cisne numa noite enluarada
No palco central
Mesmo que sem plateia
Me realizo ao final




sábado, 19 de fevereiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA






LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|04

 

A VOZ DA MULHER NA POESIA


Por Carollina Costa



Na minha última postagem apresentei a resenha do livro Na Companhia de Bela, que reúne diversos contos de fadas de escritoras que foram apagadas ao longo da história. Essas semana resolvi trazer uma breve reflexão sobre a presença da mulher na poesia, que também passou por um silenciamento típico de qualquer produção feita por mulheres em outros tempos, além da dicotomia poeta/poetisa e um poema que foi fruto dessas minhas inquietações.

Quando estudei sobre trovadorismo na faculdade, me chamou atenção o fato de que era comum os homens escreverem com eu lírico feminino nas cantigas de amigo enquanto que, no mesmo período, as mulheres não podiam aparecer como escritoras. Estudei também obras literárias nas quais homens criavam personagens femininos e narravam os pensamentos dessas personagens de modo universal, esquecendo que toda percepção nasce de algum observador. Quando o observador muda, a percepção sobre o que se observa também pode mudar. Não é que um escritor homem não possa criar bons personagens femininos, mas por que não poderia a mulher também criá-los?

Saltando um pouco no tempo e trocando a prosa pela poesia, quando as mulheres começaram a aparecer mais no universo poético surgiu o termo poetisa, que tem uma razão um tanto interessante. Embora poeta também pudesse ser usado para mulheres, poetisa surgiu trazendo um efeito de separação do poeta, figura do escritor exaltado e reconhecido, da mulher que escrevia versos que rimavam. Isso é tão curioso que, por volta de 1945, quando Otto Maia Carpeaux elogia Cecília Meireles, ele a chama de "grande poeta", não poetisa. Além disso, as palavras na língua portuguesa que terminam em -iz ou -isa são normalmente derivadas do seu masculino, sem o qual elas não existiriam.

Atualmente, tanto poeta quanto poetisa são aceitas e utilizadas para denominar mulheres que escrevem poemas, tornando essa escolha de nomes mais sutil. Eu, particularmente, prefiro poeta.

Para finalizar minhas reflexões, trago um poema de minha autoria que foi escrito no semestre em que estudei um pouco sobre a voz da mulher na literatura. Nele, tento expressar em versos a ironia curiosa das vozes das cantigas de amigo e de outros textos literários.


O poeta é um fingidor
E finge tão completamente
Que faz leitor acreditar que é dor
A dor que nem sente


E se fala de amor
Como não fingir como outrora?
Tal qual um galante trovador
Que diz que é na voz da mulher
Que se canta a cantiga de amigo
Escrita por aquele senhor


E o que sabem os homens mais
Da mulher como escritor
Ou seria escritora
Porque “Writer” no português tem gênero
Mas que importa, não é mesmo?
Se tudo um dia vira
Sopa de letras ao vento.
– Será que vira?





sábado, 5 de fevereiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA


LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|03


RESENHA: NA COMPANHIA DE BELA, DE SUSANA VENTURA E CASSIA LESLIE


Por Carollina Costa



Tão importante quanto ter mulheres escrevendo é divulgar a escrita de outras mulheres. A  quantidade de mulheres escritoras reconhecidas como tal tem aumentado com o passar do tempo, mas elas sempre existiram. No intuito de tentar ressaltar a existência e importância dessas mulheres, trago aqui uma breve resenha de um livro que reúne textos de algumas mulheres que ficaram à margem com sua escrita durante muitos séculos, incluindo uma escritora anônima.

Espero que essa resenha possa motivar outras escritoras a buscar mais histórias contadas por mulheres tanto quanto me motiva.


Resenha: Na Companhia de Bela, de Susana Ventura e Cassia Leslie

O livro Na Companhia de Bela: Contos de Fadas por autoras dos séculos XVII e XVIII é fruto de um projeto de pós-graduação feito em parceria pelas pesquisadoras Susana Ventura (USP) e Cassia Leslie (UEL) que reúnem nesta obra alguns contos de fadas das chamadas Preciosas, que foram mulheres autoras do atual gênero de contos de fadas na França entre os séculos 17 e 18. Naquela época não era muito comum e nem aceito —feria o “princípio da modéstia”— que mulheres publicassem livros e fossem reconhecidas por isso, o que fez com que muitas delas fossem apagadas pelo tempo e colocadas à sombra de nomes como Grimm, Perrault e Andersen. Até mesmo as que foram bem recebidas em sua época não tiveram seus trabalhos preservados pelo tempo por não serem consideradas "de qualidade".

Nesse livro, Susana e Cassia reúnem contos europeus que vão desde célebres escritoras, como Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, autora do famoso conto de fadas A Bela e A Fera, até uma homenagem às escritoras anônimas (mulheres que publicavam em coletâneas e não anunciavam seus nomes em suas publicações) com o conto O Príncipe Arco-Íris, noemando a autora de Mademoiselle Anônima.

O conteúdo do livro alterna entre as histórias, breves biografias sobre suas autoras, com destaque para a situação social e política da época em que elas viveram e produziram seus escritos, e informações extras ao fim de cada conto. O livro não é grande em comprimento, mas sua grossura de 286 páginas vem não só dos textos, mas também da ótima qualidade do papel, perfeito para sustentar as belas e detalhadas ilustrações típicas dos contos de fadas. A fonte utilizada nos textos é confortável para leitura, tendo também letras bem grandes e desenhadas para os títulos e apresentação das escritoras.

Diferente dos atuais, era típico dos antigos contos de fadas a existência de fadas boas e más, além da presença de monstros marcantes e finais não tão bonitos. As histórias dessa coleção apresentam monstros e turbulências, porém trazem consigo o consolo dos finais felizes. Também é muito presente nas histórias o folclore da antiga Europa, apresentado em cada personagem. 

Apesar do tamanho, minha leitura foi rápida por conta das páginas ilustradas. Recomendo a leitura para quem quiserem conhecer algumas escritoras da antiga Europa e seu folclore.



POESIA NA REDE: AMOR EM TEMPOS PANDÊMICOS, POR FLAVIA FERRARI

 

POESIA NA REDE|04


A M O R   E M   T E M P O S   P A N D Ê M I C O S

                                                                                                 Por Flavia Ferrari


Como canta Marisa Monte, “Amar alguém não tem explicação/Não há como conter o furacão” *. O amor se impõe, entra pelas frestas, escancara portas, cria janelas, mas como vivenciar o amor em tempos de distanciamento social? Observamos que no início de 2020, quando a pandemia chegou e nos isolou, famílias foram separadas dos encontros costumeiros, namoros foram desfeitos ou, em alguns casos, foram transformados em casamento. A situação da pandemia hoje, apesar de gravíssima, tornou o cotidiano mais presencial, tanto por conta da disponibilidade da vacina, como pela necessidade econômica, social, política e psíquica da humanidade. Esta retomada foi acontecendo aos poucos e hoje temos os lugares públicos abertos e funcionando quase em sua totalidade, apesar do avanço da variante Ômicron e aumento nos casos de internação pelo mundo afora.

            Mas e os novos amores, as novas paixões, os encontros, as separações? O que mudou? Alguém postou na rede social que para um primeiro encontro presencial é necessário compartilhar previamente o comprovante de vacinação, afinal, decidir encontrar alguém pela primeira vez, estando sem máscara, não é uma decisão tranquila. Há os que relataram que terminar um relacionamento por telefone ou por vídeo diante da impossibilidade de um encontro presencial é mais fácil, apesar de toda frieza que a virtualidade traz. Os encontros amorosos e sexuais virtuais na pandemia foi descoberta por muitos que não usavam a internet para este fim e a estimativa é que o uso de aplicativos de relacionamento durante a pandemia tenha aumentado cerca de 400% no Brasil**. Talvez os encontros virtuais permaneçam em alta, mesmo depois da pandemia, e um primeiro encontro presencial seja algo a ser plasmado a dois com muita antecedência e se torne um grande passo para o relacionamento. Ou, talvez, depois de tanto navegar, as pessoas desejem mesmo sair por aí e dar ao acaso a oportunidade de presentear as pessoas com a presença do outro.

            Em tempos de (des)encontros virtuais, escrevi o poema abaixo, sobre o desfecho de um relacionamento, que compartilho com vocês:

 

Desencontro – Flavia Ferrari

 

Já não quero receber teu abraço

Meu corpo ressente

Este corpo que recentemente é só meu

Não há toque virtual

 

Às vezes evito teu olhar

Ele me assusta e me desafia

Acho que me desestabiliza

E fecho a câmera

 

Reconheço teus esforços

O máximo esforço

Vejo teu apreço, recebo tua ansiedade

Sua vontade de estar comigo

Mesmo quando finge querer ir embora

E se desliga

 

Você quer me ensinar

Me falar tudo

Me educar e me formar

Quer minha escuta e minha atenção

Entretelas

 

Quer meu corpo presente

Toda aproximação

Quer meu gosto

Minhas histórias

Fazer de mim o coringa da sua ficção

E caímos

 

Já não posso mais ser o alimento do teu ser

Talvez ainda te ame

Mas não te quero mais

Fim da chamada

*_*    *_*   *_*    *_*


Referências:

 *Música “Amar alguém”, Marisa Monte/ Dadi/ Arnaldo Antunes, 2011.

** Disponível em https://www.google.com.br/amp/s/www1.folha.uol.com.br/amp/treinamento/2021/10/relacionamentos-online-disparam-na-pandemia-ouca-podcast.shtml. Acesso em 31/1/2022.




domingo, 23 de janeiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|02

Por Carollina Costa


É comum que, ao crescer, todos escutemos pessoas de todos os lados dizendo o que devemos fazer, ser, vestir, comer, dizer... No geral, isso tudo um dia passa e se ganha liberdade para viver a vida com sua própria graça, mas para a mulher é diferente. Algumas têm a sorte de alcançar essa liberdade normalmente, mas muitas outras somam os dizeres da casa com os da sociedade e se mantém reféns de opiniões, objeções, gostos e desejos alheios, a ponto de sequer saberem se algum dia tiveram algum desejo, alguma ambição qualquer. No meu conto "Casinha", narro a história de uma menina que segue para a vida adulta emaranhada nas  histórias dos outros e no fim, ao esvaziar-se de tudo, se preenche de si mesma.


C A S I N H A

 

Havia uma menina. Uma menina que foi ensinada a querer, a viver, a agir, a ser.

Ela queria o que queriam para ela, sonhava os sonhos sonhados para ela, era e se portava de acordo com o que fora planejado para ela. Não que isso fosse bom ou ruim, apenas era tudo o que ela conhecia. Até o sentimento de felicidade fora planejado para ela. E ela o sentia como se fosse seu.

Até que um dia ela acordou mulher e se viu numa casa a qual não pertencia, em um casamento que ela não reconhecia e com um homem que, apesar de aparente semelhança, nada tinha a ver com seu noivo da época —e não é como se tudo estivesse melhor. Precisava pagar a dívida dos pais, já tinha netos que nunca vira —mas eram só bebês, então perdoava-se— e, em um instante, ela reconheceu que ela não era ela. Montada como um quebra-cabeças feito de peças que não se encaixam, ela era aquela que acordava todos os dias para honrar o trabalho que não escolhera e a vida que não viu se formar. Estava, sim, sobrevivendo, mas isso já não bastava.

Por até então não saber que poderia ser diferente, ela fez logo o que devia: resolveu os problemas que não eram dela, abandonou aqueles que eram seus, fez da angústia sua melhor amiga e dos pássaros os seres que mais invejava. Achava que a vida era isso — quando não duvidava se sabia mesmo o que era a vida — e seguiu, até seu coração parar. Não o físico, porque este andava bem, mas o da alma.

Ao despertar, não demorou para acarretar decisões. Terminou o casamento já acabado, deu adeus aos sonhos de seus pais, desistiu do faz de conta e, finalmente longe, livre e abatida, cruzou novos mares na esperança de se refazer em outros lugares para compensar o despedaço do vazio que tanto carregou dentro de si.




domingo, 16 de janeiro de 2022

MOMENTO COM GAIA: Poesia em tempos de pandemia|83

 



Momento com Gaia/83


Esse projeto, de autoria da poeta Janete Manacá, nasceu em 16 de março de 2020, com a chegada da Pandemia causada pelo novo Covid-19. Por se tratar de algo até então desconhecido, muitas pessoas passaram a desenvolver ansiedade, depressão e síndrome de pânico. Com o desejo de propiciar a essas um “momento poético” no conforto dos seus lares, toda a noite é enviado, via WhatsApp, um áudio com poesias de sua autoria para centenas de pessoas do Brasil e de outros países. E estas são replicadas pelos receptores. Acompanhe o poema abaixo:


                                                                      Por Janete Manacá

Para ouvir o PODCAST clique AQUI.


Em estado de alerta


mesmo enquanto eu dormir
que o meu inconsciente esteja alerta
para os teus ensinamentos seguir

a veneração que sinto por ti 
não tem limites, nem fronteiras
é um voo de entrega, sem barreiras

todos os meus sonhos
repousam sobre o seu corpo
expressão do amor universal

que as letras formem palavras
na inquietude dos meus versos
e expressem a grandeza do teu afeto

que eu possa cada vez mais
cultivar a terra para receber sementes
e fazer de cada deserto um oásis

que as minhas poesias sejam orações
a reverberar em cada coração
o cuidado e a dedicação dos guardiões
enfim que as minhas lágrimas
sejam celebrações de alegria
por um amanhã de esperança e sabedoria




CONTE-ME UM CONTO: IDENTIDADE(S) E CALCINHA(S), POR DALVA LOBO

 


CONTE-ME UM CONTO/05


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


IDENTIDADE(S) E CALCINHA(S)

Por Dalva Lobo 


Pedaços de mim espalhados entre palavras que busco tentando encontrar a rima perfeita para esse dia que termina. Não há rima, apenas o ritmo do mundo acontecendo. Uma nota de melancolia surge.  Sempre pode surgir, nada de novo nisso. O novo é a forma de lidar com ela, percebendo nesse exato momento melancólico, o desejo de deixar a “identidade” em casa, dessa vez o desejo assumido, não o ato falho de “esquecer de levar calcinha na viagem”. Engraçado, nunca esqueci a calcinha, aliás, tenho montes delas, cores, texturas, tamanhos. Duas gavetas. Como alguém se esquece de levar a calcinha para a viagem?

Por que é tão bom deixar a identidade em casa? Abrir espaços para outras identidades entranhadas e adormecidas? Quem sabe um pequeno jogo de esconde-esconde, perverso às vezes, é verdade, mas também, extremamente sedutor.

        Entre mim e meu(s) desejo(s) muitas cores; algumas vibrantes, outras “pasteis” como podem ser as identidades em alguns momentos, socialmente vestidas para matar, matar o desejo com ares de plena seriedade, identidades “pastel”, serenas e inofensivas, até.  Passam ao longo do tempo misturadas à massa mundana sem qualquer ímpeto. Essas são as mais vistas e bem-vistas, diga-se de passagem.

Mas há as identidades coloridas, como o desejo, vibrantes... e de várias texturas, assim como as calcinhas. Para elas, gavetas especiais, afinal são identidades coloridas, merecem ser separadas por cor, textura, tamanho.  Um luxo de fazer inveja a qualquer... bem... “calcinha”?  Não importa, sempre podemos ter gavetas para calcinhas e identidade(s).

Por falar nisso, gavetas são muito interessantes. Pequenas ilhas nas quais guardamos “coisas” como se em algum momento não houvesse a tal confusão de guardar a identidade na gaveta das calcinhas!  Às vezes, deliberadamente, para não esquecer nenhuma na viagem.

Gavetas com pequenos compartimentos para separar documentos, meias, absorventes, perfumes, bijuterias, penduricalhos e todo treco que não nos interessa “naquele momento”, ou que nos interessa por demais. Lembranças. Gavetas são ilhas de lembranças de toda sorte – boas, engraçadas, estranhas, tristes (que juramos jogar fora um dia).

Gavetas são ilhas em que guardamos partes de nós, de nossas identidades e de nossas calcinhas. Gosto de gavetas, mas por algum (des)-cuidado acaso, em algum momento tudo se perde dentro delas e então a angústia se revela: onde será que guardei isso? Já me desfiz? Guardei tão bem que escondi de mim mesma?

          Grande acaso! Uma mão do destino, diria algum sábio de plantão. No momento em que o acaso cuida do destino, tudo se modifica, o olhar viciado é obrigado a seguir em outra direção para encontrar nas pequenas ilhas, os guardados valiosos do tempo.

Se por acaso isso cheira à naftalina, não se engane, apenas atente para as pequenas ilhas, olhe sabendo que vão mudar, afinal, ninguém sobrevive ao cheiro de naftalina, isso não é passado valioso, é passado remoído e não cabe em minhas gavetas.

Nestas, somente a mistura de identidades coloridas e as calcinhas, claro! E se as esqueço é porque de alguma forma não preciso delas (ao menos po algum momento). E isso me basta.



quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

EMPOEME-SE EM POESIA: Poema de Ivone Gomes de Assis

 



EMPOEME-SE EM POESIA/36




Leitura de Marta Cortezão


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


ENVELHECER

 

Ando de mãos dadas com o tempo,

Preenchendo-me de solidão e de memórias.

É que dizem que não posso, que não sou capaz.

Proíbem-me de atravessar a rua sozinho,

Mas se esquecem de que eu,

Segurando em suas mãos,

Lhes ensinei os primeiros passos.

Queria apenas que fizessem como eu fiz,

Nos momentos mais difíceis,

Eu os carregava em meus braços,

Quando choravam, eu os acalentava.

Agora, minhas dificuldades são compartilhadas

Com o vazio do meu quarto,

E meu choro é secado pelo travesseiro.

O tempo diminuiu minha visão,

Ensurdeceu meus ouvidos,

Refreou meus passos,

Mas a minha mente continua a de um menino.

Sou o mesmo menino que sonha,

Que ama,

Que acredita...

Busco a felicidade em todo o meu viver.

De certo modo, estou na vantagem,

Porque aprendi, com o tempo,

A desapegar-me do fútil,

E a valorizar a vida.

Já não me preocupo em agradar a todos.

Já não me preocupo em competir.

Sou exatamente o que sou.

E gosto de quem sou.

Falo baixo e compassado,

Porque a pressa já não faz parte de mim.

Valorizo o abraço,

Valorizo a visita,

Amo a boa prosa,

Amo a gargalhada verdadeira.

Quando começo a repetir minhas histórias,

É porque uma saudade mora ali.

O tempo me ensinou a viver.

Tive a gratidão de poder envelhecer.


*_*    *_*    *_*    *_*




segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

POESIA NA REDE: ÁGUAS DE JANEIRO, POR FLAVIA FERRARI



POESIA NA REDE|03

Á G U A S   D E   J A N E I R O

 

Mês de janeiro, agradecemos as águas que caem e enchem os reservatórios dos quais somos dependentes para que tenhamos água durante o período de seca. Mas quantas tragédias nos deparamos neste período, com índices de chuva altíssimos que parecem que a cada ano batem recorde e nos colocam em conflito com nosso modo de vida e de como a sociedade está estruturada para cuidar (ou não) dos seus. Choramos pelo Capitólio e pelo Sul da Bahia nos perguntando como agir coletivamente para que as tragédias evitáveis não mais ocorram e que o que não se pode prever, possa ser cuidado, reparado.

O fato é que nos sentimos pequenos diante da magnitude e das consequências do que assistimos. 

A rede foi invadia por reflexões, orações, poemas e imagens que mostram como a arte responde à vida. Porque responde sempre de algum modo. Por vezes nos conforta, outras nos desafia ou nos coloca frente a frente com os buracos de nosso tecido social.

Finalizo com o poema de Mayra Luiza Corrêa, Cabo de Guerras:
 
Um puxa de lá,
Outro polui daqui,
Não há força pra soltar
O preço é esmaecido, aflito.
A gota acaba em manancial
A solidão bomba e flui líquida
Não mais maresia,
Só mar se vai
 
Ensacam água!
Plastificam água!
Sujam água!
Choram água!
 
Acordo para ser fluído...
Mas alguns compraram os sonhos
E ainda pagaram com o sangue
Dos outros
 
Haverá dia sem chuva para beber
Podre é quem usa o céu contra nós
Poluído de ouro-barro, rio...
O que corre em nossas veias é oceano

*_*   *_*    *_*   *_*  
 
Mayra escreve poesia desde criança com mãe poeta. Aos 14 anos participou de sua primeira antologia e, desde então, publicou contos, ganhou prêmios por textos teatrais e falou de temas difíceis.
 
 
Referência:
 
Chorando pela natureza: poesia geopolítica ambiental / Jéssica Iancoski (Organizadora); Adriana Teixeira Simoni, Adriano Bensen, Alana Aguida Berti, et al. – Curitiba: Eu-i, 2021.




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EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

  Clique na imagem e acesse o Edital II Tomo-2024 CHAMADA PARA O EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS: CORPO & MEMÓRIA O Coletivo Enluar...