ENTRE FERAS E SILÊNCIOS
Por Marta Cortezão
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Desde muito jovem, entre 20 e 23 anos, assumiu
responsabilidades imensas, sobretudo cuidar do irmão mais velho, Bonifácio, com
esquizofrenia acentuada. Mantém-se à tona com seis comprimidos diários de
psicotrópicos, respaldados por laudo médico “floreado” que aponta fobia social,
depressão severa e “uma agressividade ameaçadora”. O cenário de sua vida é a
casa herdada dos pais, Amália e Olavo, dividida com o marido, o americano Samuel
e Boni. Entre eles, o vínculo parece ser frágil, sustentado pela necessidade de
manter o irmão sob cuidados e por um pacto tácito de não se aprofundar nos
abismos alheios.
Três vozes, três labirintos
O enredo se estrutura em três partes, narradas por
vozes distintas – Manuela, Sam e Boni –, cada um com sua cadência própria, seu
recorte de mundo. A voz de Boni, em especial, flui sem pontuação, no fluxo
bruto de quem vê e sente com uma lógica própria.
O romance é atravessado por segredos que resistem a
vir à tona: Manuela se fecha nos traumas; Sam carrega o inconfessável; e a
esquizofrenia de Boni opera não só como condição clínica, mas também como
metáfora da realidade familiar fragmentada e de seu desejo de liberdade, de voltar
a ser “fera solta no mundo. A narrativa explora, com intensa carga psicológica,
os limites da culpa, do trauma e do isolamento – este, segundo Manuela, imposto
pelo estigma da esquizofrenia de Boni, pela descoberta do passado tenebroso de
Sam e, por fim, intensificado pela pandemia da covid-19. O entrelaçamento
dessas perspectivas vai desmontando, peça a peça, o quebra-cabeça de silêncios
que sustenta a história.
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Entre as camadas do romance, destaca-se a simbologia
dos “dragões de primavera” como metáfora para a transformação desejada por
Manuela: sair do adormecimento emocional e reencontrar o impulso vital. A
epígrafe de Hilda Hilst já antecipa essa busca por redenção:
Pai, este é um tempo de espera. / Ouço que é preciso
esperar / Uns nítidos dragões de primavera, / mas à minha porta eles viveram
sempre, / Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.
Na primeira parte do livro, em forma de diário com certas
lacunas de tempo, Manuela revela o peso do corpo marcado por traumas e espera
por forças renovadoras que nunca chegam. Ela encontra certo alívio no solo e na
chuva, tentando dissolver-se “em húmus e barro”, enquanto o passado insiste em
assombrá-la. Sam recorda que a origem
desse mito íntimo vem da voz de Amália, mãe de Manuela e Boni:
Foi ela a responsável por sua crença de que os pequenos lagartos que ocorrem pelo jardim são descendentes dos Zmey Gorynych, dragões Zmey sérvio, em particular, que era bondoso e tinha o poder de afastar as tempestades. Ver Manuela deitada no gramado sempre foi comum, mas nunca pude compreender que tenha continuado a gostar dos lagartos, mesmo depois de cada tormenta, cujos efeitos poder nenhum foi capaz de aplacar (p. 117).
Não há dragões nem primaveras
É no diário de Manuela que se encontram as passagens
mais cortantes. Sua infância, marcada por abusos cometidos pelo pai, é descrita
com imagens potentes. A origem de suas cicatrizes remonta aos oito anos, quando
começa a sofrer abusos do pai, Olavo:
Quando o pai me puxa pelos braços e me põe sentada
sobre suas pernas, distraindo-me com os pequenos dragões que sobem nas árvores
– e sua mão, como uma aranha grande e fria, se arrasta para o interior de
minhas pernas infantes – o passado ainda é passado, mas se refugia,
inatingível, na profusão de tudo o que se nove na escuridão (p.14).
Os abusos continuam até a adolescência, no desamparo
da noite e no medo da jovem que se sente excluída, suja e desacreditada de um
deus que não a escuta, não vem em seu socorro, não existe. Essas lembranças,
porém, não são narradas de forma linear, mas como fragmentos que retornam de
modo imprevisível, tal como na mente de quem sobreviveu a traumas. O silêncio,
o medo e a sensação de abandono se erguem então como paredes intransponíveis:
Eu tinha medo de dormir, depois de haver tantas vezes
acordado no meio da noite com a aranha grande e pesada passeando por meu corpo.
Não tomava banho nua porque o banheiro da casa era vulnerável, e desde os oito
anos eu sabia que os mesmos olhos de coiote passeavam pelas frestas. Tinha medo
também de gritar por mamãe e abrir em seu coração uma ferida tão grande que
nunca mais viesse a se fechar. (p.44)
Minha pele não deixa esquecer a violência silenciosa
das investidas das mãos que a usurparam. E lhe impingiram nódoas profundas. Tão
profundas que pressinto lacerações nos órgãos internos (p.87).
A imagem pública do “pai de família” oculta o
machista, misógino e abusador que corrói silenciosamente o lar. Por trás da
fachada respeitável, Olavo instala o medo, a vergonha e o silêncio que aprisionam
Manuela desde a infância. A partir desse núcleo de violência, sua vida passa a
se organizar entre afastamentos forçados, responsabilidades precoces e breves
tentativas de respiro.
Do refúgio às desilusões
Em Nélson, amigo de Boni (namorado de Lili), a jovem
Manuela encontra um breve refúgio, mas que se evapora muito rapidamente
deixando também cicatrizes profundas e o sabor amargo da desilusão:
Na última tarde em que veio à nossa casa, Boni não
abriu a janela para se despedir, mesmo sabendo que o amigo ia para outro país,
e eu ainda não sabia o que havia se passado ao aceitar seus beijos de
despedida.
Nélson estava distante e lacônico, cheguei a ter a
ilusão de que fosse a dor da separação. Só depois que se foi, entendi que era
vergonha. Na despedida, disse-me apenas que a vida era ainda muito nova em
nossas mãos para sabermos o que fazer com ela (p.46).
Não é Manuela que nos revela o motivo da “vergonha” de
Nélson, mas Boni quando expressa o desejo de voltar no tempo e dizer que sabe que
foi traído pelo próprio amigo:
eu fui enganado pelos caçadores de feras que me faziam
ver coisas medonhas eu fui na rua no meio da tormenta e vi as criancinhas
mortas debaixo do jacarandá caído vi os lagartinhos do quintal virando dragões
que engoliam a Mana vi o Nélson rodopiando com a Lili no cinema beijando a Lili
atrás de uma névoa de cigarro fininho onde já se viu meu melhor amigo roubar
minha namorada (p.155).
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O diagnóstico de Boni abala profundamente Amália, que,
juntamente com o pai, depositava nele todas as expectativas de sucesso. Manuela
carrega, assim, não apenas a responsabilidade prática dos cuidados, mas também
a sombra de não ser reconhecida como alguém em que não vale apostar:
A família não era mais um fiapo do que havia sido,
segundo Manuela, em seus desabafos. Bonifácio seria “o grande homem da
família”. Quando me contou sobre o sonho dos pais, Manuela sentia-se
amargurada. Não porque não teriam mais um grande homem na família, mas porque
nunca apostaram que ela poderia ser uma grande mulher (Parte II, p.111).
Boni, por sua vez, expõe, a seu modo, a pressão
sofrida por parte do pai e a rivalidade velada que se estabelecia entre os
irmãos, entre homem e mulher:
O pai não gostava de mim que nem a mãe que passava a
mão na testa e no cabelo o pai olhava de cara feia quando eu deitava no colo da
mãe dizia moleque mimado olhava de cara feia quando eu tinha medo de cachorro
do tio e quando eu pedia para a mãe deixar a luz acesa a cara do pai era sempre
feia não podia correr e abraçar não podia chorar não podia ficar com febre nem
com dor de barriga não podia brincar com menina assistir filme de amor novela
na televisão só a Mana que podia a Mana podia faltar na escola podia comer a
moela e a coxa podia até matar gato que ninguém falava nada nem tinha cara feia
pra ela (p. 152).
Marcada por essa conturbada relação com a família – e sobretudo
pela figura de Olavo –, Manuela procura, em alguns momentos, escapar ao peso do
passado. A viagem com um grupo de hippies surge então como tentativa de
suspender os traumas, um movimento de busca por liberdade e de ensaio para uma
vida possível fora do círculo opressor da casa. Esses lampejos de autonomia
para além do medo oferecem-lhe um raro respiro, como ela mesma reconhece ao
recordar a experiência:
Sinto saudade do tempo que passei com os hippies
anacrônicos e fui hippie também. Foi um ano que me colocou no eixo da vida, um
tempo em que comecei a descobrir quem era a pessoa por baixo da casca, e pela
primeira vez não tive medo de ser eu mesma. Nenhuma pílula psicotrópica fazia
parte da minha rotina. Mas tive que voltar para casa porque a família não podia
ficar tanto tempo sem reforço para cuidar de Boni (p. 66).
Na universidade, Manuela conhece Sam, e os dois vão se
aproximando cada vez mais. No entanto, o retorno à casa traz grandes problemas.
É pela narrativa de Sam que percebemos a coragem de Manuela ao contar à mãe
sobre os abusos praticados pelo pai, ainda que Sam não soubesse nada sobre o
assunto. Nesse mesmo dia, Amália sofre um enfarto fulminante.
A convivência com o pai torna-se insuportável: Manuela
o odeia e desejo que ele morra, lembrando também de quando, criança, desejou a
morte de um gato que acabou falecendo. Todo esse peso de culpa a acompanha em
todos os momentos, inclusive quando chega a desejar a morte de Nélson. Mesmo após
o falecimento do pai, um ano depois da mãe, a culpa permanece, silenciosa e
insistente, como sombra que se recusa a deixá-la.
Ruptura: a fuga de Boni
No 60º dia da narrativa de Manuela, a fuga de Boni causa
uma reviravolta na rotina das personagens. Esse acontecimento quase a
desestabiliza, mesmo com suas pílulas de psicotrópicos em dia. Esse estalo
emocional da protagonista é visto com espanto por Sam:
Sam estranha me ver socando as próprias pernas. “O que
é isso?”, pergunta, e no seu rosto há o espanto de ter reconhecido sinais da
mulher adormecida. Ajeito o vestido em desalinho, enxugo as lágrimas que penso
haver, mas meu rosto está seco e os olhos ardem pelo esforço vão de chorar. Há
quanto tempo não choro? (p.69)
Em seu diário, Sam também registra o acontecimento e o
seu desejo de voltar a conviver com a Manuela passional que conheceu na época
da universidade:
Foi uma pena ter-se recomposto tão rápido depois de
socar as próprias pernas. Por um instante vi a Manuela passional que conheci. Minha
reação ao seu impulso a intimidou, trouxe de volta a mulher contida, a mulher
que escolheu deixar as emoções adormecidas no sistema límbico (p.98).
Sam vê resquícios da antiga Manuela — “uma alma
atrevida” (p. 115) —, mas o que a faz ser uma mulher contida ao lado dele,
ainda quando tomada pela aflição da fuga do irmão? Talvez a verdade seja que
Sam nunca a tenha conhecido de fato: nem a Manuela de antes, nem a de agora.
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A chegada da covid-19 funciona como um espelho: o
isolamento imposto pelo vírus apenas escancara uma reclusão já existente. O
confinamento físico soma-se ao emocional, e o livro mergulha ainda mais fundo
na introspecção. No caso de Manuela, é também um escudo contra o julgamento
social que teme devido à esquizofrenia de Boni, que, por sua vez, é talvez a
figura mais ambígua do livro. É a sua fuga de casa, no 60º dia da narrativa de
Manuela, que rompe a rotina e obriga todos a enfrentar medos adormecidos. Na voz
de Boni, há tanto uma ingenuidade infantil quanto uma lucidez cortante que se
deduz de suas próprias palavras:
O melhor cego é aquele que não se conforma de ser cego
e tenta enxergar com os outros sentidos o que o olho não consegue eu disse isso
pra Mana e ela não prestou atenção ou eu não disse só pensei quero saber o que
ela acha porque o cego podia ser ela que não enxerga um palmo na frente do
nariz com os olhos da cara mas podia enxergar de outro jeito se quisesse (p.
148).
O romance não se limita ao drama íntimo; ele aponta
também para um descaso coletivo. A morte miserável do casal amigo de Boni, dona
“Olali” (Eulália) e o marido, durante a pandemia no “País”, dá a Rojanski a
oportunidade de inserir críticas diretas à negligência governamental e ao
desprezo pela vida humana, como vemos no fragmento:
Os pobres clamam por auxílio do governo, há muitos
desempregados, desamparados, despejados, desesperados. O presidente eleito pela
maioria responde com piadas de mau gosto, nega a crise de saúde, debocha de
quem lamenta a doença, minimiza o sofrimento pelas milhares de mortes e
vocifera que somos um país de maricas. Quando é questionado pelo absurdo número
de mortes, que coloca o País como um dos mais massacrados pela pandemia,
prepara seu melhor ângulo para as câmeras e diz: “E daí? Todos vamos morrer um
dia” (p.140).
Esse equilíbrio entre denúncia social e exploração
psicológica das personagens é um dos pontos fortes do livro: a história não se
perde em panfleto, mas também não se omite diante das violências sistêmicas.
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Após a fuga e a morte do casal, Manuela, Sam e Boni
tentam retomar o ritmo macilento de suas vidas. Boni se agarra em suas ideias
alucinógenas e suas risadas descontroladas. Manuela costura suas ideias com o
medo de contrair o vírus e com o fato trágico que seria a morte de um dos três,
jogando todas as possibilidades e seus tormentos. Sam continua o trabalhando em
seu projeto arquitetônico de uma casa grande no campo, assombrado por seus
demônios, seu corpo febril e a tosse incômoda que tenta esconder de Manuela.
Sam decide dormir no quarto das velharias e, entre caixas e quinquilharias, Sam
reencontra o fio do próprio passado e se dá conta de como Manuela chegou ao seu
terrível segredo:
Antes de guardar a caixa, puxo uma folha de papel
cujas pontas amareladas aparecem por baixo de um maço de cartas. É uma cópia
impressa do retrato falado de um foragido da justiça do condado de El Paso, no
Texas, EUA, que circulou pela internet em uma época em que não havia uma câmera
fotográfica na mão de cada cidadão, e provavelmente não encontraram uma única
fotografia para publicar nos jornais (p. 113).
Sam, o marido, aos 19 anos, assassina a namorada Rose
Mary e foge para o “País” onde agora vive. Sua narrativa do crime revela
justificativas frágeis e distorcidas e é marcada pela ausência de
arrependimento:
Que crime neste mundo não é repulsivo?
...
Sim, sou culpado pela morte de
Rose, mas não a teria matado se não acreditasse que havia algo diabólico em seu
corpo. Quando entrou em seu quarto para dizer que ia me deixar, a primeira
coisa que fiz foi trancar a porta e jogar a chave pela janela gradeada (p.
135).
A presença de Sam no romance não é apenas a de
cúmplice no cuidado de Boni, mas a de outro prisioneiro — de sua própria culpa
e das mentiras que sustenta para sobreviver. Essa duplicidade acrescenta tensão
ao enredo, pois o silêncio que mantém com Manuela ecoa o dela, criando um pacto
mórbido de não-ditos:
Nunca vou perguntar a Manuela as razões de seus
estranhos hábitos. Se quisesse, teria me falado. Também não lhe falo sobre meus
pesadelos (p. 116).
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No 64º dia, Sam é internado e, após vários dias no
hospital, vem a óbito. A morte de Sam marca uma ruptura silenciosa, encerra um
ciclo de silenciamentos, mas não resolve todos os nós. Narrada pela própria
consciência do personagem (assombrada por Rose Mary), sua morte abre espaço
para que Manuela comece a cultivar novas práticas. O luto reabre fissuras, mas é
na voz de Boni que vislumbramos tais mudanças: Manuela acorda cedo, põe Angie
(The Rolling Stones), assa bolo, retoma as consultas presenciais com o
psicólogo, pedala, colhe frutas, prepara sopas. Esses gestos simples ganham
peso simbólico, indicando que talvez os “dragões de primavera” finalmente se
aproximem:
Coisa mais esquisita é essa música alta desde cedo a
Mana está fazendo bolo tem um cheiro gostoso vindo da cozinha será que a Mana
pensa que já é Natal será que é aniversário de um de nós? (p.156)
Essa é a música que o cachorro do Nélson ensinou ela
gostar sorte que é bonita
Mana agora resolveu que toda semana
vai para o psico me deixa trancado em casa só come fruta e verdura vive em cima
da bicicleta pedalando parada e por baixo das árvores arrancando tangerina
manga abacate (...) toma sopa cor-de-rosa roxa e suco verde diz que é pra
limpar o sangue pra voltar a sentir os sentimentos pra gostar de novo do mundo
e fazer nascer lágrima eu não sabia que as cenouras as couves os pepinos e os
psico tinham tanto poder e depois que ela melhorar vai me levar pra passear não
sei onde espero que lá tenha peixe azul (p.157).
Não é redenção plena: é movimento. Os “nítidos dragões
de primavera” talvez não cheguem ruidosos; talvez cheguem pela mínima vibração
do desejo de voltar a sentir.
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Feras Soltas equilibra dureza e lirismo, conjugando trauma íntimo
e crítica social. Lulih Rojanski manipula a linguagem com precisão, constrói
vozes narrativas que se tensionam enquanto a imagem recorrente dos dragões
organiza o romance como horizonte de metamorfose. A leitura incomoda, dilacera
e, por isso mesmo, cumpre sua função: nos fazer sentir, pensar e encarar feras
— as de dentro e as de fora. A força do livro está em não estetizar a violência
nem oferecer soluções fáceis: prefere a verdade incômoda das feras internas,
mas abre, no fim, uma fresta de ar — pequena, insistente, necessária.
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ROJANSKI, Lulih. Feras soltas. São Paulo: Patuá, 2023.
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Arquivo da autora. Macapá, 2023 |
Marta, querida, eu nunca havia lido um estudo tão maravilhoso sobre meu livro. Muito obrigada! Lulih
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