quarta-feira, 23 de novembro de 2022

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM MILENA MARTINS MOURA, POR GABRIELA LAGES VELOSO

  


UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |04

ENTREVISTA COM MILENA MARTINS MOURA

Por Gabriela Lages Veloso

Segundo a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da cultura, então temos que mudar nossa cultura”. Diante disso, a literatura manifesta-se como uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber a escritora Milena Martins Moura, uma importante voz para a cultura feminista atual, que ao promover a literatura escrita por mulheres, faz um convite à reflexão e à luta por igualdade.

ENTREVISTA COM MILENA MARTINS MOURA:

Arquivo pessoal da autora

Milena Martins Moura nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro em 1986. É poeta, editora, tradutora, além de bacharel, licenciada e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Publicou os livros Promessa Vazia (Multifoco, 2011), Os Oráculos dos meus Óculos (Multifoco, 2014) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (Primata, 2021), além do plaquete de poesias Banquete dos Séculos (edição da autora, 2021). É editora da revista feminista cassandra e seu selo erótico Héstia e integra as equipes de colunistas da revista Tamarina e de poetas do portal Fazia Poesia. Como integrante da Rede AFETIVA de culturas, iniciativa que reúne revistas e editoras em prol da circulação de arte e conhecimento, organiza eventos on-line e presenciais, principalmente sobre a escrita de mulheres. Tem poemas e contos em portais e revistas como Jornal RelevO, Uso, Subversa, Torquato, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Lavoura, Zine Marítimas, Zine Felisberta, Laudelinas, La Loba, Mormaço, Caliban, Desvario, toró, Arara, Alcateia, Kuruma’tá, Aboio, Arribação, Totem Pagu, Granuja (México) e Kametsa (Peru).

Você estuda, escreve e trabalha com Literatura. Como foi o seu encontro com o mundo das Letras?

Acho que sempre conto que meu primeiro grande sonho na vida foi ser astrônoma. Entrar no mundo dos livros foi um grande acaso impensado e nada planejado. Cresci com um avô leitor, o que me fez querer aprender a ler muito cedo. E, por ter uma tia alfabetizadora de crianças, eu realmente aprendi. Antes de ler os muitos livros que tinha, eu brincava com eles, fazia cabana, subia neles e fingia me exercitar. O objeto livro ganhou bem cedo essa ideia de prazer e diversão para mim, Eu sou simplesmente obcecada por livros. E assim da leitura eu cheguei à escrita, também sem querer, incentivada (por livre e espontânea pressão) na escola. Eu sempre fui uma pessoa bastante artística, estudava música, gostava de pintura e desenho, e a escrita então se tornou mais um meio de expressão. Crianças são artistas potenciais com as quais devemos aprender (elas simplesmente fazem a arte, sem especialismos, sem cara de conteúdo, sem nariz em pé) e eu ainda era uma criança neurodivergente não diagnosticada, que não entendia (e muito ainda não entendo) dos ditames de socialização. Muito sozinha, eu me escondia na arte, na pintura, na música, na poesia. Vejo como um caminho quase automático ter trazido tudo isso para minha vida profissional e acadêmica.

Além de escritora, você também é tradutora. A literatura perpassa toda sua escrita ou são linguagens diferentes?

Eu fui uma criança/jovem pobre, de uma família que fez de tudo que pôde pela minha educação, mas que não pôde muito. Nunca tive dinheiro para fazer um curso de inglês, mas sempre amei a língua e quis aprender. Eu pegava músicas e ficava indo e voltando tentando entender a letra, com um dicionário do lado. Na época eu nem sonhava em ter um computador com internet que me proporcionasse pesquisar. Via filmes repetidos com legendas em inglês, séries com closed captions. Tive que correr atrás de métodos para aprender o idioma por mim mesma e acabei criando hábitos que me levaram de cabeça à tradução. E dela à criação no próprio idioma, principalmente nos idos de juventude, com minhas bandas de metal. Sempre compus muito mais em inglês, quase absolutamente. Mais uma vez, não rolou um grande plano de vida: vou ser tradutora, então preciso fazer isso e aquilo. Essa é mais uma parte da minha carreira profissional para onde fui arrastada pelos acontecimentos. E gosto bastante de trabalhar nisso também.

Por que você escreve?

Essa é uma pergunta recorrente e a resposta é: não sei. Só sei que existe algo inquieto que só se acalma assim. Algo faminto, que se debate, que grita. Que implora por nascer. A gente tenta, a gente cansa o queixo, a gente dói o dente, mas não consegue mastigar esse pedaço endurecido de nervo e soluço. Uma hora é preciso cuspir. E esse parágrafo é meio poético demais. Mas o fato é que eu não tenho nenhuma tecnicalidade quando o assunto é escrita. Não vou falar em termos acadêmicos, psicanalíticos, sociológicos sobre por que escrever. Tampouco acredito em musas mágicas e elementos sobrenaturais inspiradores, em ser o canal para a expressão de uma divindade ou do cosmos. Nem oito nem oitenta e oito. Poesia sai da gente, inexplicável porém indubitavelmente. Poesia é tão natural quando uma bola de comida velha embrulhada em saliva cuspida no canto do prato. Isso também é poético.

Quais escritoras(es) te inspiram?

Tantas que, por medo de esquecer alguma, melhor não citar. Só posso dizer com certeza que estou cercada de grandes artistas e me sinto muito honrada de dividir um século e um planeta com eles (desculpe o plágio, Sagan!). Ter como amigas tanta gente foda é de deixar qualquer um feliz.

Conte-nos sobre o seu primeiro livro, Promessa Vazia (2011). Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda? Onde podemos adquiri-lo?

Promessa é até então meu único livro de contos. Ele é uma reunião de histórias que versam basicamente sobre solidão, loucura, o que é ou não real, tudo isso resvalando num singelo fantástico que não foi intencional, como tudo na minha vida. Escrevi e reescrevi essas histórias ainda na adolescência, início da vida adulta, bem novinha, numa época que tanto foi de descoberta e abertura de horizontes quanto de sofrimento. O Promessa é um livro esquisito, confesso, mas ainda gosto muito dele. Tem uma parcela grande da minha insanidade naquelas páginas e ainda acho que esse é justamente o seu melhor. Ele está à venda no site da editora Multifoco.

Comente sobre Os Oráculos dos meus Óculos (2014). Qual é o mote desse livro? Onde podemos adquiri-lo?

Os Oráculos foi lançado em 2014, mas contém poemas que datam desde 2009. Ele está completamente tomado do meu período de luto pelo meu avô. Sua caminhada até a morte foi um dos momentos mais tristes que já vivi e Os Oráculos foram meu mecanismo de coping. Ali está a minha saudade, ali está o meu luto. Quase não releio os poemas dessa época, luto arrefece mas não cura. Por isso, é um livro que fica guardadinho no seu canto, que prefiro manter fechado, guardando essas dores antigas. Ele também pode ser encontrado no site da Multifoco.

E quanto ao seu livro mais recente, A Orquestra dos Inocentes Condenados (2021)? Explique o título e suas implicações no sentido/proposta da obra, e onde podemos adquiri-la.

A Orquestra é uma obra bastante diferente das demais. Em primeiro lugar, o poema homônimo foi tirado no corte final, mas o título continuou. É um título que marca duas características claras: a atual situação do país (no caso, no contexto pandêmico da época); e a minha completa capacidade de misturar todo tipo de referência. Isso porque eu gosto de MUITAS coisas diferentes, não faço a mínima questão de ser aquele tipo de escritor hiper-intelectualizado que tem que transcender em tudo. Gosto de sci-fi tanto quanto de ópera e me acabo ao som de Chandelier tanto quanto com um filme de arte escocês. A Orquestra dos Inocentes Condenados, esse título enorme e não muito explicativo, nasceu de uma mistura de referência de Beirut e X Files, uma das minhas bandas preferidas, uma das minhas séries preferidas, cuja ligação entre si é em suma nenhuma. E de fato esse título teve muito a ver com o período pandêmico, em que a falta de gestão e de empatia condenaram tantos inocentes à morte. O livro inteiro é uma grande cusparada de desespero pelos momentos atípicos trazidos pelo isolamento social, em especial na população neurodivergente da qual faço parte. Dentro dessas páginas, tem toda uma sorte de sofrimentos diversos, escritos sem critério, jogados às pressas sobre o papel numa tentativa de cura. Foi um livro escrito completamente diferente do que eu costumo, mais apressado, mais desesperado. Ele pode ser comprado no site da editora Primata ou comigo, ainda tenho alguns.

Fale sobre os seus demais projetos na área de literatura e cultura, como, por exemplo, a revista cassandra.

A cassandra foi criada com o intuito maior de abrir espaço para as artes de autoria feminina. Muitas mulheres têm receio de se assumirem, se dizerem artistas. Muitas não se acreditam ou se aceitam como tal. Mas eu insisto em que toda mulher que deseje seguir a arte e a literatura mereça um espaço que lhe diga: acreditamos em você, gostamos do que você faz e te apoiamos, por isso te publicaremos. Tem muita mina por aí desistindo da arte por falta de apoio, porque precisa colocar o pão na mesa e alimentar a cria às vezes sozinha e isso tira as forças de sonhar. Então, quando a gente diz: sua arte vale a pena, também estamos dizendo um belo você merece. Claro que abrir um espaço de publicação é apenas o mínimo. Apoiar a arte de uma mulher (ou de qualquer artista) é também comprar seus produtos, porque ninguém paga as contas com publicação. Mas se podemos ser um tijolinho a mais na parede da não desistência, se podemos dar esse gás para que escritoras continuem escrevendo, artistas continuem produzindo, então já vale o mundo. Quando criei a cassandra, a primeira coisa que pensei foi que era uma ideia insana, por motivos de saiu da minha cabeça deve ser ruim. Hoje percebo como crescemos, tanto e tão rápido, e o quanto ganhamos a confiança dos nossos leitores e das autoras que nos confiam seus materiais todo semestre. Então acho que esse era um espaço necessário, acho que fiz a coisa certa não desistindo antes de começar. Tem sido puxado, não ganhamos nada, pelo contrário, gastamos, toma tempo, dá trabalho. Mas quando vejo a felicidade das autoras selecionadas, a dedicação das colunistas, quantas nos procuram todos os meses para divulgações, parcerias, resenhas..., eu percebo que foi a coisa certa sim. E me sinto muito feliz por tudo isso.

Mais do que escrever, é necessário fazer ecoar nossas vozes. Aí entram as publicações. Qual é a importância da publicação, para você?

Ao longo da história, e vou novamente tocar no assunto mulheres embora saiba que muitos outros grupos passaram e passam por fenômeno semelhante, escritoras mulheres sofreram com as oportunidades de publicação, sem que isso se devesse à qualidade de sua obra. Quando publicadas, porém, temos relato de muitas que foram laureadas, reconhecidas e aclamadas em vida, porém não passaram para a história, um processo que os estudos atuais vêm chamando “memoricídio”. Esse padrão memoricida mata em morte, é como morrer novamente, porque não ser lembrado é quase não ter vivido. Assim, vão se construindo histórias literárias e panteões canônicos que mais excluem do que englobam, nos quais as vozes femininas raramente estão presentes e que, preguiçosamente, reduplicam os silenciamentos históricos enquanto se atualizam seguindo os mesmos padrões. Tão sabido é que as histórias da literatura que vão surgindo não corrigem os apagamentos das suas antecessoras senão apenas as copiam e inserem novos nomes, quase sempre elencados de acordo com os mesmos embotamentos das anteriores. Com isso, muitas autoras vão ficando desarquivadas, ou seja, não se gera arquivo sobre elas e, por não estarem nas publicações especializadas tampouco serem canonizadas, torna-se impossível conhecer sua trajetória. A publicação é uma forma de gerar arquivo sobre as autoras que estão produzindo e arquivo é memória. Por isso antologias são tão importantes, em especial impressas, pois isso gera um mapeamento da escrita de mulheres produzida na atualidade. Não podemos cometer o erro de deixar nossas autoras desarquivadas, como fizeram os que vieram antes de nós, tornando o processo de dessilenciamento tão penoso e por vezes impossível. Devemos publicar o maior número de mulheres que pudermos, em livros, em antologias, em revistas digitais ou impressas, com sua bio e sua foto, para que no futuro se saiba quem foram, que existiram, que escreveram e o que. Memória é direito inalienável e é nosso dever, como mulheres escrevendo, editando, publicando hoje, preservá-la para o futuro e tirar da sombra as que abriram caminho para que pudéssemos estar aqui.

Como convidada da nossa coluna Uma Cartografia da Escrita de Mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?

Vocês são escritoras e essa palavra não deve ser um peso. Não é arrogância, não é um erro e não é se achar demais. Vocês são escritoras. Escrevam. Vão dizer que é só um hobby, não é. Vão dizer que é só uma fase, não é. Vão dizer que não dá dinheiro..., não dá. rs Ainda assim, escrevam.


Contatos da escritora:

Instagram: @milena.martins.moura

Twitter: @milena_m_moura

Instagram da revista cassandra: @revistacassandra

Site da revista cassandra: https://revistacassandra.com.br/

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Gabriela Lages Veloso é escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É colunista da Revista Sucuru e do Feminário Conexões, editora do núcleo poético de divulgação feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso, colabora com coletâneas e revistas nacionais e internacionais. Em 2023, organizou a Antologia Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, juntamente com a Editora Brecci Books.

Um comentário:

  1. Amei a entrevista Gabriela! rica e incentivadora! Realmente escrever não dá dinheiro , mas compra prazer! E sigamos escrevendo querida. 🤝🏻⚘❤

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