UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |01
ENTREVISTA COM GABRIELE ROSA
De acordo com Regina Dalcastagnè (2007), nosso lugar na sociedade é definido por etnia, classe social, gênero, idade, orientação sexual, e, experiências. Esses são fatores decisivos para o nosso modo de enxergar e compreender o mundo. Por esse motivo, um homem, mesmo sendo empático e solidário, não terá experienciado as dificuldades sofridas pelas mulheres, cotidianamente, tais como “ser analisada prioritariamente pela aparência física, o temor da violência sexual, o preconceito renitente nos espaços profissionais. É essa perspectiva feminina (e não um estilo ou uma temática específica) que só as mulheres podem trazer ao discurso literário” (p. 126). Nesse sentido sobreleva-se a escrita de mulheres.
Entretanto, conforme Simone de Beauvoir (1975), em uma entrevista concedida ao programa Questionnaire, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”. Diante disso, a literatura manifesta-se como uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres terá como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Em nossa estreia, temos a honra de receber a escritora Gabriele Rosa, que entrelaça a Literatura com a História, o Teatro e as Artes Visuais.
ENTREVISTA COM GABRIELE ROSA:
Arquivo pessoal da autora |
Gabriele Rosa é carioca, vive no Rio de Janeiro. Historiadora, poeta, artista visual, confeiteira, artesã da palavra e da cena, atua como dramaturga de processo e dramaturgista na Bonecas Quebradas Teatro. Bacharela em História pela UFRRJ, integra o coletivo CuidadoPoema. É autora de Fendas extraordinárias (Patuá, 2019) e de Lavínia é mais Rosa que Espinho (Motta, Carla, Libertinagem, 2022). Assina a dramaturgia do Radiodrama Tiro suas camadas de esmalte (contemplado no edital Cultura Presente nas Redes 2 – com patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, 2022). Tem obras publicadas em mídias impressas e digitais no Brasil, Portugal e México. Colabora mensalmente com a coluna “memórias táteis, intempéries e outras derivas” na revista Ruído Manifesto.
Como você começou a escrever?
A escrita sempre foi pulso e centralidade das minhas vivências. Cresci entre o maravilhamento da leitura (iniciada na primeira infância, aos cinco anos) e o hábito da escrita diária (cartas, poemas, diários e ‘sonhários’). Um privilégio dentro das desigualdades cotidianas dos subúrbios cariocas. O acesso às bibliotecas públicas e salas de leitura foram fundamentais na minha trajetória. Segui sempre lendo muito e nunca deixei de escrever, mas desacreditei da minha escrita durante anos. Só em 2017, após uma mudança profissional, aceitei a literatura como expressividade. Abracei a minha escrita.
A sua formação acadêmica, na área de História, tem alguma influência na sua escrita literária?
Sim. De forma muito próxima. Entendo os ofícios como distintos, nos quais trabalho dissociadamente, mas que se entrecruzam de forma muito orgânica nos meus processos de criação. A minha escrita, seja a literária ou a dramatúrgica, é atravessada pelo meu olhar enquanto historiadora. Estruturada no tripé: pesquisa, leitura e imersão-experimento, o tempo da pesquisa é maior que o da escrita, na maioria das vezes. Criar estofo, embasamento teórico, perscrutar engrenagens dentro da linguagem, desenvolver métodos para transitar entre gêneros literários, investigar códigos de plausibilidade (para deslocá-los) e pensar nos vínculos implicativos entre estratos de tempo – passado, presente, futuro - são frutos de pesquisa e formam as teias nas quais construo histórias. Entendo que a pesquisa historiográfica me possibilita ampliar e refabular narrativas. Acredito que o historiador deve se autorizar a propor e perspectivar linguagens.
Quais escritoras(es) te inspiram?
Vou citar os que estão sempre na cabeceira e os que estou lendo atualmente, não necessariamente nessa ordem: Ana Cristina Cesar, Grace Passô, Roberto Bolaño, Alejandra Pizarnik, Carolina Maria de Jesus, Susan Sontag, Nina Rizzi, Lubi Prates, Julio Cortázar, Danielle Magalhães, Victor Heringer, Carla Diacov, Guilherme Gontijo Flores, Walter Benjamin, Lilian Sais, Bruna Beber, Leda Maria Martins, Guimarães Rosa, Lélia Gonzalez, Machado de Assis, Michel Foucault, entre alguns outros. Estou sempre aberta aos encontros, diálogos e espantos, com as obras de outres.
Conte-nos sobre o seu primeiro livro, Fendas extraordinárias (2019). Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda? Onde podemos adquiri-lo?
Fendas extraordinárias é um livro de contos e foi publicado pela editora Patuá, em 2019. Os contos presentes no livro foram escritos como exercícios de marginação literária durante as disciplinas optativas sobre letramento histórico crítico-genético e escrita criativa, no período de um ano e meio, ministradas no curso de História da UFRRJ pelo docente Dr. Alexander Martins Vianna. Kafka, Machado de Assis, Monteiro Lobato e Chico Buarque, são algumas das referências presentes no livro. Há um intertexto maior com peças de Shakespeare. Abordo violências de gênero, classe e raça, costuro femininos-sintoma e masculinos viciosos. O processo de escrita foi intenso, imersivo e arrebatador. Foi um período de (re)conhecimento da minha própria escrita. Atravessei o espelho. Durante a feitura dos contos percebi a necessidade de pensar uma classificação (possível) do experimento narrativo criado. Apenas necessitava nomear a narratividade tecida em camadas temporais múltiplas, que não se aproximavam dos artifícios do flashback e viagem no tempo. Desde então, passei a adotar a classificação de ‘contos regressivos’, a fim de mapear dentro do gênero como a construção de desentendimento do que se narra ocorre no tempo regressivo da consciência de quem conta, considerando um narrador em primeira pessoa que se desentende enquanto avança (regride) e o exercício constante de criar códigos de plausibilidade. O que se tornou um método de escrita, uma artesania. A classificação não me incomoda, mas está aberta, assim como as fendas cavadas no livro. Fendas Extraordinárias é um exercício de linguagens. É possível adquiri-lo no site da Editora Patuá.
Comente, também, sobre Lavínia é mais rosa que espinho (2022). Como foi a experiência de escrever um livro juntamente com outra escritora? Qual é a proposta dessa obra? Onde podemos adquiri-la?
Lavínia é mais rosa que espinho é um livro de prosas poéticas, em parceria com a escritora Carla Motta, publicado pela editora Libertinagem (2022), abordamos as violências cotidianas de gênero. Femininos diversos narram horrores banalizados e brutalidades há muito tempo enraizadas na sociedade contemporânea. A obra tem tom de denúncia. De abraço. E de troca. O livro tece respiros e enfrentamentos por meio de versos cortantes e imagens quase que fotográficas do narrado, sem lançar mão de sutilezas poéticas. Tendo a personagem Lavínia - máscara social e genética da virtude feminina - da peça Tito Andrônico, de Shakespeare, como mote inicial, expandimos nossas fabulações e experimentos artísticos-poéticos a partir de instalações performáticas homônimas ao livro; realizadas em 2017, e em 2019, na UFRRJ e no Centro Cultural Phábrika, respectivamente. Ressignificada a partir da fragmentação de vozes, despersonalizadas por vezes, entrecruzada por violências de classe, raça, sexuais, psicológicas, entre outras, Lavínia é mais rosa que espinho vestida de livro é um ajuste de olhar. Um convite à reflexão e ao ato. Um acontecimento. Luta e luto. Mergulhar nas feridas e nos silenciamentos dos femininos com fôlego de mar aberto se faz possível e urgente. Escrever com a Carla, que é uma grande amiga e parceira de experimentos artísticos desde a graduação, foi fluido e orgânico. Os processos colaborativos me interessam, as trocas, partilhas e parcerias artísticas me mobilizam. E para o Lavínia teve um fato curioso, escrevemos o livro para a primeira chamada de autoras da editora Libertinagem, e desenvolvemos um método para configurar nossa coautoria, já que escrevemos os textos separadas. A escolha por prosa poética foi um fator determinante, individualmente temos poéticas muito distintas. O livro pode ser adquirido no site da editora Libertinagem.
Além de escritora, você também é dramaturga. Na sua opinião, existe alguma relação entre a literatura e o teatro?
Sim, são áreas correlatas e distintas. Assim como história e literatura, ou história e teatro. Em cada uma atuo dentro de suas especificidades, e de forma dissociada, mas como disse anteriormente, nos meus processos de criação, independente da linguagem (artística ou não) enquanto suporte material de expressividade há o entrecruzamento de múltiplos campos. Um alimenta o outro, e juntos reverberam na minha obra.
Como é o seu processo de escrita?
Muito de caos, um tanto de cosmos e um punhado de afetos. Meu processo de escrita é imersivo, envolve experimentos em múltiplas linguagens artísticas (referenciais e práticas), cotidianas (confeitaria, meditação e outras miudezas) e muita pesquisa, tanto temáticas quanto estruturais. Minha artesania é tátil, meu corpo sempre está à disposição para os meus processos de criação. Não limito os experimentos, por vezes começa livro e cresce performance, cena ou instalação visual, assim como, são abertos, horizontais e rizomáticos. Escrevo todos os dias e sempre que possível em lugares diversos, gosto de caminhar com a minha escrita. Para as pesquisas, escrita acadêmica e dramatúrgica reservo às manhãs, e estes são processos pontuais e específicos, com maior rigor de tempo-espaço, preciso de silêncio e concentração. Já a produção literária é completamente notívaga, o período entre 22h e 5h é o meu lugar de conforto e expansão. É quando minha medula está mais viva.
Desde 2017, você integra o coletivo CuidadoPoema. Qual é a importância dos coletivos para as escritoras contemporâneas?
Os coletivos artísticos são importantes como espaços plurais de experimentos de linguagens. Possibilitam as trocas, partilhas e estudos de forma colaborativa. E para as escritoras contemporâneas fomentam e visibilizam seus trabalhos. Entendo como uma forma de organização, enfrentamento e reexistência para mulheres artistas que ao longo da história sofreram (e ainda sofrem) com apagamentos e silenciamentos.
Fale sobre os seus projetos na área da literatura, cultura e teatro, como, por exemplo, o Radiodrama Tiro suas camadas de esmalte (2022).
Desde fevereiro de 2020, sou colaboradora da Bonecas Quebradas Teatro, atuo como dramaturga de processo e dramaturgista. Estamos em processo de ensaio do espetáculo Memórias de uma Manicure. O Radiodrama Tiro suas camadas de esmalte foi um braço desse projeto, que compreende diversos produtos artísticos. Nele, temos uma experiência acústica sem componente visual que pretende desenhar pelo som a imaginação dos ouvintes. Ouvimos as manicures Danielle e Jéssica ensaiarem uma entrevista para uma peça teatral sobre manicures. O radiodrama foi contemplado no edital Cultura Presente nas Redes 2 – com patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, 2022, e está disponível no canal do YouTube da Bonecas Quebradas Teatro. Ainda dentro do projeto Memórias de uma Manicure, também contemplado no edital Cultura Presente nas Redes 2, realizarei (novembro/2022) leituras abertas de quatro contos do livro ainda inédito Afetos Postiços, que tem previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2023 (a sair pela Ofícios Terrestres Edições), no livro as duas personagens-manicures do radiodrama narram o cotidiano fabular do salão e suas vivências pessoais. Tenho alguns projetos de livros, performance e instalação visual, em processo. Todos para o próximo ano. Em breve, novidades.
Como convidada especial, na estreia da nossa coluna Uma Cartografia da Escrita de Mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?
Primeiramente, agradeço o convite, é uma alegria. Me sinto muito honrada por abrir os caminhos da coluna, e ressalto a importância de espaços como esse, com o intuito de visibilizar o trabalho de mulheres, escritoras e artistas contemporâneas. Que os caminhos sigam abertos. Evoé! Se posso deixar uma mensagem para a nova geração de escritoras é: acreditem nas suas escritas e estudem. O ofício da escrita é laborioso, artesanal, tátil. Demanda um tempo próprio. É pulsão de vida. Leiam muito, pesquisem, teçam diálogos com outras (os) autoras (es), experimentem múltiplas linguagens artísticas e divirtam-se.
Contatos da escritora:
Instagram: @_gabrielerosa
E-mail: gabrielerosa20@gmail.com
Linktree: linktr.ee/gabrielerosa
REFERÊNCIAS:
BEAUVOIR, Simone de. Por que sou feminista? Entrevista concedida ao programa “Questionnaire”, em 1975. Disponível em: <https://bit.ly/3zr52O9>. Acesso em: 17/09/22.
DALCASTAGNÈ, Regina. Ilusão e referencialidade: tendências da narrativa brasileira contemporânea. In: Signótica, v. 19, 2007.
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Bela estreia, Gabriela Lages Veloso! Parabéns!👏🏽👏🏽👏🏽
ResponderExcluirObrigada, querida Marta! ⚘
ExcluirQue troca de conhecimentos maravilhosa!! Adorei!
ResponderExcluirAgradeço pela leitura, Jessica ❤
ExcluirUma alegria imensa! Meu agradecimento à Gabriela Lages e ao Feminário Conexões. Evoé!
ResponderExcluirMaravilhosa entrevista com a escritora Gabriele Rosa! Muito a aprender com você, Gabriele! Parabéns ao Feminário Conexões por mais este espaço de diálogo sobre literatura! Parabéns Gabriela à Lages pela linda estréia! Muito sucesso para você! Para vocês!
ResponderExcluirMargarida Montejano