sexta-feira, 5 de agosto de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL/ Isa Corgosinho




LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA|06

COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL

 Por Isa Corgosinho

 

O livro de Nic Cardeal Costurando ventanias me acompanhou na volta de João Pessoa para Brasília, as suas páginas vieram impregnadas da maresia de Jampa e agora experimentam o ar seco e a energia revitalizante do cerrado candango. Tive que interromper a leitura várias vezes em virtude da organização desse retorno. A cada retomada, experimentei novos sentidos em suas particulares costuras, por isso fui tomada pelo desejo de escrever sobre elas.   


Nas costuras da prosa, as ventanias da poesia   

O escritor Julio Cortázar[1], ao refletir sobre as características do conto, afirma que escrever contos e poemas é algo parecido, quase um estado de transe. Esse estado seria provocado pela escolha de um material significativo. O livro Costurando ventanias conjuga-se no hibridismo de gêneros, ao associar acontecimentos da realidade (crônicas) com elementos fictícios (contos), desvelando, assim, uma misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo. Irradia ventanias que informam e conformam um breviário da condição humana, principalmente no que se refere ao embate do ser e o cosmo, o ser e o tempo, a materialidade das coisas dissolvidas pelas ventanias da temporalidade. É ainda o contista argentino que nos diz que a gênese do conto e do poema assemelha-se, porque nasce de um deslocamento provocado pelo estranhamento, um deslocar-se que altera o regime “normal da consciência”.     

Enxergamos, ainda sob o ponto de vista de Cortázar, um perfil de contista, uma mulher que repentinamente cercada pela imensa algaravia do mundo, comprometida em maior ou menor grau com a realidade histórica que a contém, escolhe um determinado tema e faz com ele um livro de contos e crônicas. O tema parece se impor irresistivelmente por cima ou por baixo de sua consciência, e a quebra do silêncio da folha em branco vem pela música, e tudo aquilo que a eleva como linguagem das subjetividades.

Dito isso, é importante ressaltar as afinidades dos contos de Cardeal com a poesia. A poesia é um dos mais importantes destinos da palavra, a palavra poética nesse livro não se limita a exprimir ideias ou sensações apenas, almeja, na tomada de consciência da linguagem, se lançar ao futuro. Com notável precisão, Gaston Bachelard[2] declara que a imagem poética, em sua novidade, abre um povir da linguagem.   

            A prosa de Ventanias é tecida em três redes aéreas que modulam a sua arquitetônica: Eu quero a música que mora dentro da flauta; Então proponho um faz-de-conta que me avizinha: paradoxos dessa dança chamada vida; Mas o tempo passou muito... passou ligeiro. A função poética nos contos e crônicas é marcada pela projeção do ícone sobre o símbolo, pela presença de códigos não verbais como a música, a dança, as imagens visuais sobre a linguagem verbal.  

A poesia presente nos contos de Cardeal chega aos nossos ouvidos energizada pela melopeia, assim como a entende Ezra Pound[3]. Se trouxermos, como aliada, a experiência de sua obra poética, não seria inadequado afirmar que as frases nesses contos e crônicas estão carregadas, acima e além de seus significados comuns, de marcantes qualidades musicais que dirigem o propósito ou tendência desses significados, basta escutar a temática que abre os primeiros contos Eu quero a música que mora dentro da flauta: O som inaudível, o sopro, as batidas do coração que ressoam na caixa torácica, no som que repercute nas vértebras.    

Lista de desejos

Eu não quero só a flauta. Eu quero a música que mora dentro da flauta. Cada nota escondida em sustenidos sentidos. Eu quero os acordes da poesia virando canção – e a voz que a faz palavra entoada. Sim, sou egoísta por querer a flauta e a moradora da flauta.  (CARDEAL, p. 15, 2021)   

            A musicalidade é composta pela exploração das paranomásias, das aliterações, assonâncias, trocadilhos nos títulos e, principalmente, nos versos rimados, ritmados no interior dos contos.

Títulos de contos

Tralhas fora dos trilhos de dentro

Os olhos chuvosos de Deus

Do barro ao berro

Fragmento do conto A linha

Empenho-me, assim, no ofício de pescar palavras no vasto mar que navega, para lá e para cá, dentro do meu peito, feito da mesma água que invade meus olhos fundos, bem distante da superfície do mundo. (CARDEAL, p. 14, 2021).

Sobre a influência da melopeia, a prosa de Nic comparece nas fronteiras da música, e a música aqui talvez seja a ponte entre a consciência e o universo sensível não pensante, ou mesmo não sensível.  Ainda nesse conto, a contista afirma que os poemas a descrevem, que os poemas são a alma, as palavras seu corpo. Sim, pois que seus poemas transmitem uma vertente peculiar de sensibilidade, são mais que ideias transmitidas, são imagens que devem ser sentidas, tocadas na corporeidade das palavras.   

Ao lado da função poética, concorre a função metalinguística que comparece em lances certeiros de autoconsciência do fazer literário, metapoética. Na composição do sensível conto A palavra, todas as características do sentimento são expressadas pelos movimentos dos sentidos e pelos traumas da ausência, da distância, das separações, da perda vivenciadas pela infância e pela vida afora. Todas as metonímias, eufemismos são empregados para dissipar a inalcançável compreensão dos sentimentos gerados pela separação, pelo luto ou pelo amor. Tudo circunda essa coisa, palavra esquisita, multifacetada, adjetivada, jamais nomeada. Apenas ao final, a palavra que, pela dor se vela, enfim se desvela – saudade  a palavra pronunciada em coro pela aldeia tinha o dom de dividir e curar a dor, como uma hóstia em forma de pão, alimento coletivo do amor. 

A gente tinha um nome para essa coisa que apertava o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair. Dizia-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bocadinho a dor.

Porque a saudade precisava ser dita, ainda que fosse na aldeia uma palavra esquisita... (CARDEAL, pp. 55-57, 2021)   

No conto (A)porte de poesia as funções poética e metalinguística andam entrelaçadas, enamoradas, ocupando singular equidade de posição e isonomia de valor. O leitor pode se deliciar com os jogos metalinguísticos, a começar pelo próprio título, que é um verdadeiro slogan pelo desarmamento.  A prosa encena o nascimento da paz no corpo potente da poesia.     

Sou a favor do porte de poesia. Carregá-la desde a semente, até que a palavra infle, insufle, percorra o caminho do ventre, saia do ninho, alce voo em direção ao céu do meu/teu/nosso coração. Ali aportada a poesia, que ela absorva a empatia, a boemia, a leveza ou a entropia, a expressão, a expansão, a exuberância da própria vida. E, quando pronta a atingir o alvo, aponte a poesia na direção da alma!  (CARDEAL, p. 61, 2021)   

Nas ventanias dos devaneios

As camadas sonoras e imagéticas da música e da dança em Costurando ventanias compõem, junto a outras figurações, notável relação com a Poética do devaneio, de Gaston Bachelard[4], mas é precisamente no capítulo V Devaneio e cosmo que encontramos a trilha interpretativa. Nessa obra encontramos verdadeiras constelações de imagens de elevada cosmicidade: fogo, terra, ar e água estão disseminados em outras imagens que fazem da leveza o contraponto da petrificação, do pesadume do mundo (pássaros, ninhos, borboleta, árvores, céu, estrelas, astros, asas, chuva, lágrimas, chapéu, horizontes, barro, sementes etc), revelando extraordinária imaginação criativa.

            É a ênfase no devaneio operante que nos interessa na travessia interpretativa. O devaneio cósmico que experimentamos nos contos de Cardeal é aquele ao longo do qual o universo sensível se transforma em universo de opostos complementares, cuja ambivalência das sombras soma-se à luz irradiada da poesia. Os contos trazem fragmentos do universo: a unidade da beleza se concretiza nos elementos água, ar, fogo e terra. O cosmos em Ventanias é constituído de palavras grávidas. Segundo Bachelard:

Um devaneio falado transforma a solidão do sonhador solitário numa companhia aberta a todos os seres do mundo. O sonhador fala ao mundo, e eis que o mundo lhe fala. Amando as coisas do mundo, aprendemos a louvar o mundo: entramos no cosmos da palavra. (BACHELARD, p. 179, 1996).

            Na esteira de Bachelard, Nic Cardeal reafirma em sua obra o clímax do devaneio cósmico, que é o de constituir um cosmos da palavra. É pela função poética da linguagem que seus leitores são seduzidos, arrebatados da inércia, conduzidos por uma espiral de louvores que transforma o universo sensível em universo de beleza.

A leveza, num mundo cada vez mais empobrecido no falar, no expressar, saturado por imagens que poluem e avassalam nossa visão, parece se sustentar em palavras primeiras, em imagens primeiras. Os poetas dos devaneios cósmicos, para calar o barulho ensurdecedor, recobrem o mundo com a musicalidade das palavras que sonham. É assim que um sonhador de palavras reconhece, numa palavra do homem aplicada a uma coisa do mundo, uma espécie de etimologia onírica, como nas belas frases poéticas:      

Pois, de que será feita a poesia, senão da veia aorta que nos conduz ao peito – do lado esquerdo de dentro – na emoção da palavra gasta, apontada sobre o alvo da flecha? Depois do alvo, da flecha, por certo que estarão felizes os operadores de sonhos a recortar palavras – exaustas – em algodão: poesia qu´inda flutua, aportada ao cais da alma.

Finalmente então, depois desse tempo cinza, haverá um lugar no refazer do amor. N´alguma estrada aberta, onde plantações extensas de esperanças, por ordem dos poetas (esses operadores de sonhos a portar palavras!) - serão colhidas aos montes em novas eras. (CARDEAL, pp.61-62, 2021)    

É extraordinário o encontro das duas poéticas no que se refere o agenciamento de palavras cósmicas, imagens cósmicas que costuram os vínculos do homem com o mundo, mas precisamente da mulher com o mundo. Nas epifanias, a poeta nos arrebata com as duas tonalidades, humana e cósmica, que ao se encontrarem se transfiguram:       

Eu tenho um céu que mora em mim. Ele amanhece e anoitece vez por outra. Gosta de salpicar-se de estrelas, receber algum sol de visita, tem na lua uma amiga confidente pra tristezas escondidas. [...]

No meu céu de estimação os horizontes são fios compridos, feito linhas em novelos, que se estendem desenhando lindos montes, que passeiam sorrateiros, inventando as paisagens dos meus sossegos.

Eu não sei o que dá em mim para ter um céu inteiro inquilino dos meus anseios. Mas eu amo de paixão esse meu céu de estimação. Nele eu penduro estrelas cadentes e sei que um dia elas germinarão desejos inusitados transformados em viventes. Vou seguir acreditando. Porque um céu de estimação é muito mais repleto de infinitos, e os infinitos são maiores, são inteiros.  (CARDEAL, p.28, 2021)  

               O olhar fenomenológico da contista nos convida a vivenciar os paradoxos de uma tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas da natureza e, ao mesmo tempo, a confrontá-las com o mundo em plena crise com um modelo de civilização que nos empurra para a barbárie. 

Não sei dizer se essa rota será promissora... é o meu delírio do verbo resistir no mundo. Como a lira que delira nas cordas até encontrar o sentido de ser instrumento. Do verbo ‘ser delírio’ (‘de-lira´): a palavra primeira da lira ao dizer o som do mundo.

Sem o GPS das minhas preces a ninguém, serei tão somente um arado ressoando o chão - suprema ausência de sentido nesse imenso mundo cão. (CARDEAL, p. 27, 2021) 

            O confronto acontece no interior da linguagem, por meio de uma consciência crítica criativa. Dentro das imagens poéticas pode estar o germe de um mundo, ou como diz Cortázar, essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana. Todo conto que se lança no tempo grande da literatura, é como uma semente onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em nossa memória.

Árvore sementeira

Às vezes me lembro de um tempo em que fui árvore. O momento em que a semente tocou o chão, adormeceu na terra quente, germinou tão de repente, esticou raízes em seu ventre. O tronco subindo em direção aos céus, galhos seguindo livres para todos os lados, folhas verdes abrindo-se em leques sem receios. (CARDEAL, p. 29, 2021)

No conto In-finitudes, o eu que narra contém infinitos particulares que se comunicam entre si e com o mundo:  

Mesmo assim, seguirei descosturando a linha. Desfazendo os nós. Até que todos nós sejamos sonhadores de novos gestos – e uma luz se acenda na cabeceira de uma outra história que se avizinha.

Sonhar é o que importa – ainda que seja um bom retrato em branco e preto pendurado na parede da imaginação. Porque comporta um infinito inteiro. Abaixo. Acima. Dentro. Além das beiras. Bem profundo. Ao abrir as portas de um novo mundo. (CARDEAL, p. 20, 2021)

Bachelard assevera que uma imagem poética nova pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante de um devaneio de um poeta. Mas Nic Cardeal não se molda totalmente ao perfil do sonhador de Bachelard, que se entrega de corpo e alma à imagem que acaba de encantá-lo. A personagem que narra em primeira pessoa nos contos é parte encarnada das imagens cósmicas, com as quais opera suas metáforas, seus dialogismos da parte no todo e do toda na parte. O embelezamento se faz nessa relação sistêmica da gênese primordial do planeta, do sistema solar, da Via Láctea:    

De passagem

Estou à procura da melhor parte, em que em mim se acende a palavra propícia para os sentidos da vida. Estreita correnteza de vida própria que me enquadra criatura terrena – do barro, da pedra que veio do alto, do pó respingado do universo, da teia do milagre moído que sobrou dos ossos daqueles tantos vindos ao mundo antes de mim. Sou aos pedaços. Quebra-cabeças em estilhaços. Sou de pedra também sou aço. Sou rio seco sem fundo, mar salgado, ardido, abismo profundo. Sou folha verde, folha seca, grão germinado, semente. Do pó das estrelas dizem que vim. Daqui a pouco vou além, para bem adiante do fim. (CARDEAL, pp. 18-19, 2021)

A cosmicidade das imagens nos convida para experiências simbióticas com o mundo, para além de sua materialidade palpável. Não exatamente um lugar onde o sonhador possa descansar tranquilo, mas onde certamente se sentirá largo, expandido em todos os elementos terra, fogo, ar e água.  Fica patente o devaneio dos ares em todos os seus redemoinhos, bem como as peripécias de uma dialética que vai do universo líquido ao universo aéreo.

Chuvas guardadas

Já não sei se amo mais as chuvas externas ou internas. Ambas solicitam rios. Águas que correm em direção aos mares.

As águas do mundo querem seguir.

Minhas aguas internas pedem passagem.

Se chorei mares outrora, por ora só rio rios. Entre um e outro, meu barco vazio transborda de mim. (CARDEAL, p. 31, 2022)

 

Os olhos chuvosos de Deus

Eu imaginava que as águas caíssem dos céus porque Deus também sentia dores intensas e precisava chorar algumas vezes. Às vezes, muitas vezes.

[...]

Naquele dia aprendi a lição, não por Deus, mas por minha própria solidão a fazer desaguar o coração – foi meu primeiro sintoma de amor. A lição? Em chuvas internas de amor nem Deus se atreve a querer entender a linguagem inútil das lágrimas.

Hoje chove muito. O dia inteiro. Sempre que chove, lembro dessa minha imaginação de outrora – quase criança – e posso ver aquele meu Deus imaginário todo encharcado, espiando d´alguma janela do céu, para ver se estendo meus olhos molhados de tanto enxugar sua dor.  (CARDEAL, pp. 32-33, 2021).

Ao alçar as asas imaginárias, o devaneio do voo nos abre um mundo, portal de desmesurada abertura, o céu é a janela do mundo, e a poeta nos ensina e nos convida a mantê-la aberta de par em par:

Há dias em que me sinto exausta. Pudesse deixar, por um dia apenas, ‘a roupa de viver’ pendurada no varal, tomando um ar, um vento, ao sol, sairia apenas com a alma (e suas asas), a passear entre as árvores, as folhas, as flores e as águas!  Ah, seria tão delicioso esse dia! Um dia de leveza, sutileza, calmaria, em que ela – eu – a alma, compreenderia, enfim, a amplitude, o sentido, o motivo da vida, para muito além dessa concepção limitada e tão paradoxal que nos foi imposta nesse tão raso objetivo de existir...

Confesso. Não sei dizer por que às vezes cansa. Quero minhas asas. E um agosto diáfano, com gosto de brisa. ‘Porque eu continuo a acreditar em anjos, sei que eles existem. ‘ (CARDEAL, p.43, 2021)

No inspiradíssimo conto intitulado Lista de desejos, observamos uma importante declaração de poética, ao mesmo tempo sentimos sopro alusivo dos versos da Flauta-vértebra, do altissonante Vladímir Maiakóvski[5].

Sim, sou egoísta por querer o órgão febril do coração da flauta. Eu quero o outro lado da lua. Esse lado da rua. O meio da rua. A avenida. Estrada de terra batida. A ponta da estrela iluminando o caminho. Os passos tão gastos em perfurados sapatos.

Essa é a minha pauta – a música da (tua) vida. No toque sutil (ou áspero) da flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021)

Quando leio essas frases poéticas (ou versos?), lembro-me de passagens do filme Easy Rider[6], ou reminiscências da geração beat, e sua vertente na contracultura dos anos 50.  Mas os parágrafos seguintes nos rementem ao repouso projetado pelas imagens cósmicas que correspondem, seguindo o alegre paladar Bachelardiano, a uma necessidade, a um apetite. Ao invés do mundo como vontade de representação, o mundo como apetite. É o que demonstra o eu narrativo: uma relação antropofágica com o mundo, sem outra preocupação a não ser o desejo de mordê-lo, devorá-lo:

Eu não quero apenas a roupa da carne. Eu quero o corpo, o osso, a veia repleta de vivo vermelho, a seiva que alimenta o peito e lateja o doce e o amargo. Eu quero conhecer tua ferida. O corte da pele, o sangue jorrando em gotas, o choro do ventre, a semente parindo o futuro do indicativo. Eu quero a ruga, a curva, o passo apressado, o olhar tão cansado, a ira impulsiva, a angústia desmedida, a saudade guardada na vértebra esquerda de desesperos entorpecidos. Eu quero o riso, a gargalhada, a alegria, o sonho louco na medida exata. Ou perdida.  

Eu não quero a solidão da palavra. Nem somente a flauta. Eu quero a curva do rio escorrendo enchentes em desejos tão urgentes. E a paciência do tempo favorecendo o despertar da semente. Eu quero o amor que mora na semente – da flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021).

O paladar se mostra em potência: cada apetite, um mundo. O sonhador bacherladiano participa então do mundo alimentando-se de uma das substâncias do mundo, substância densa ou rara, quente ou doce, clara ou cheia de penumbra segundo o temperamento da sua imaginação. E a poeta Nic Cardeal certamente vem na pele do sonhador, vem transfigurar em belas imagens o mundo exaurido de realidade, só assim pode compartilhar a saúde cósmica com seus leitores, porque nas imagens cósmicas parece que as palavras do homem infundem energia humana no ser das coisas:   

Ao corpo que me leva de um lado ao outro eu sou deveras grata. Não fosse ele, que seria de mim – solta no ar. Diáfana, fora da gravidade, rarefeita, quem sabe líquida – a olhar por olhos inexistentes a vida a vagar desde a terra removível até a semente? 

Este corpo que me carrega – a minha casa de viver a vida – porção considerável de resistir no mundo até a última gota do sopro de vento que há de virar chuva fininha: garoa miúda lavando a calçada, por onde outrora pisou um dia, feliz, este corpo que me carregou de um lado a outro das minhas esperanças tão ávidas de existência... (CARDEAL, p. 17, 2021).      

De mãos dadas com a tese de Bachelard, enfatizamos que, no grande como no pequeno, o devaneio é uma consciência de bem-estar. Numa imagem cósmica, assim como numa imagem da casa ou da casa almejada pela nossa alma, estamos no bem-estar de um repouso, é o que a narradora de ventanias propõe a si e aos seus leitores.  

As fadas? Ficaram do lado de lá. Os duendes continuam no jardim. Quando chegar minha hora de voltar para casa, eles sabem muito bem que serão outra vez visíveis as minhas asas. Afinal, de que são feitos os sonhos? Eles são feitos de medidas de eternidade, costurando ventanias em asas de borboletas.  (CARDEAL, p.44, 2021)

Podemos assegurar que as imagens extremamente significativas dos contos e crônicas atuaram como uma espécie de abertura, projetando nossas inteligência e sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento literário. Ao ecoar Shakespeare nos seus versos, Nic Cardeal costura suas ventanias em nossa memória. Como assegura Cortázar, os contos que perduram em nossa memória são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta que a do seu mero argumento. Ainda é o contista argentino que nos assevera que um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revela sua existência.  E é assim que me sinto: girando maravilhada nos devaneios das ventanias cósmicas.

 

 Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 165-205.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp. 154-157   

POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39.



 


[1] CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp. 154-157    

[2] BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 165-205.

[3] POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39. 

[4] Para girar com segurança as chaves interpretativas do livro de Nic Cardeal, valemo-nos da imprescindível intertextualidade parafrásica de fragmentos do Capítulo V Devaneio e cosmo, do livro A poética do devaneio, de Gaston Bachelard.  

[5] Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
(Trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman).

[6] Filme de Dennis Hopper, EUA - 1969. Elenco: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|11


CRÔNICA: CONEXÕES

Por Carollina Costa


Ontem estive em um encontro de mulheres que surgiu através de uma postagem de Instagram incentivando a nós, mulheres, a nos unirmos mais. Fiquei pensando na postagem, nesse movimento, na necessidade de nós, mulheres, olharmos mais para nós mesmas e me surgiu a crônica que segue. Mesmo que curta, espero que possa incentivar você, leitora, a buscar a si mesma e conexões que apoiem o seu transformar.


Conexões

É comum que ao nos compararmos com outras pessoas sigamos um desses dois vieses: ou acreditamos que todos têm uma vida igual a nossa ou que somos a única pessoa no mundo que vive de determinada forma e ninguém é capaz de nos compreender. Dois extremos problemáticos. O primeiro não nos permite enxergar as diferenças, ora sutis ora gritantes, que existem entre uma pessoa e outra, uma forma de vida e outra. A segunda nos cega quanto às semelhanças que partilhamos, seja nos detalhes expostos do dia a dia ou na sutileza do nosso modo de ver e pensar sobre as coisas da vida.

Esses dias, por causa de uma simples, porém não tão simples postagem de Instagram, conheci diversas mulheres que se reuniram no intuito de partilharem suas jornadas individuais com outras mulheres e formarem, juntas, uma rede de conexão para que não nos sintamos tão sós em nossas caminhadas. Nessa conexão o foco somos nós, para nós e por nós, individualmente e coletivamente. Parece pouco, mas é uma atitude e tanto.

É comum às mulheres olharmos sempre para o outro: o que o outro pensa, como o outro nos vê, o que o outro acha de nós, o que o outro quer de nós, como podemos agradar mais ao outro, como podemos ser mais e melhor aceita pelo outro... E esse outro não é necessariamente um parceiro, pode ser a família, um grupo de amigos, um grupo de convívio social ou mesmo a sociedade onipresente como um todo. Mas é sempre um outro, nunca ela. Nunca nós. Entramos, assim, numa espiral descendente de desejos e expectativas do outro sobre nós que, honestamente, jamais serão supridas, visto que é próprio do ser humano, seja homem ou mulher, desejar constantemente. Nessa espiral nós também desejamos constantemente e sem retorno, porque ao desejar incansavelmente a aprovação do outro que nunca estará completamente satisfeito nos perdemos de nós e aí descemos mais e mais, nos perdendo cada vez mais.

Ao traçar o limite entre o eu e o outro — lembrando que limite não é muro, é sobrevivência e sanidade — muitos chãos tremem, muitos laços se desfazem e cordas se rompem. É nesse lugar meio limbo meio transformação em que buscamos novas mãos amigas para nos levantarem enquanto ainda não conseguimos ficar de pé. Um lugar partilhado por muitas de nós quando decidimos conhecer quem nós somos fora dos moldes pré-dispostos nas prateleiras do convívio, e é aí que essa postagem de Instagram e tantos outros movimentos de união entram, nos convidando a sair desse lugar e concretizar o novo.

Cada mulher que caminha em direção a outra e estende suas mãos para esse movimento de união pode transformar a condição daquela que ainda não conseguiu se levantar. Não é sobre sair da sua caminhada para incorporar os passos de outra, mas sobre cada uma de nós, seguindo seu próprio ritmo e caminho, respeitar e ajudar a mulher ao lado a caminhar com suas próprias pernas em sua própria jornada com mais sororidade.




quarta-feira, 13 de julho de 2022

OUTUBRO, POR FLAVIA FERRARI

 




POESIA NA REDE|06


OUTUBRO

                                                                                                 Por Flavia Ferrari


mergulho-risco quando pixo – Nina Rizzi*

 

é preciso cuidar bem do coração
te mando um salve enquanto
os manos incendeiam uma viatura aqui na rua
é preciso politizar a ferida
com a mão inteira acariñar a chispa
que arde fundo cá dentro. dá-me tua mão
é preciso cuidar bem do coração

 

 

            O poema de Nina Rizzi, especialmente no verso “é preciso politizar a ferida”, nos convida a pensarmos sobre o destino que podemos dar a todas as nossas feridas. E são muitas! A rede tem mostrado as inúmeras reações de indignação, revolta, tristeza e desesperança ao crime bárbaro de estupro, cometido por um médico contra uma paciente durante o parto. A questão sobre ser mulher no Brasil (e também no mundo) carrega em si todas as violências prováveis e possíveis que diariamente vemos – ou imaginamos – no nosso cotidiano.

            A mudança que queremos, que desejamos, que sonhamos, assim como a transformação social e cultural necessárias para vivemos em uma sociedade menos violenta e mais igualitária para todos os gêneros passa também pela esfera educacional, política, econômica e jurídica. Transformar e transformar-se é tarefa coletiva e em uma época de individualismos celebrados, um dos caminhos para a mudança é valorizar os grupos que têm propostas de ações sociais para reduzir as desigualdades.

            Somos seres políticos e agimos no mundo de acordo com nossas convicções, motivações e valores. Outubro é o mês em que todos nós iremos às urnas escolher os novos representantes do poder executivo e também legislativo. Engajar a juventude, divulgar nossas ideias, argumentar sobre o que acreditamos e desejamos visando eleger políticos que efetivamente trabalhem para reduzir os problemas sociais é uma forma de luta que está ao alcance de todas, todos e todes. Assim como a poesia. É urgente escrever! Para não sucumbirmos ao abismo que se anuncia. E para não nos esquecermos: “é preciso cuidar bem do coração.”

 

 

 

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Referência: *Nina rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. Formada em História pela UNESP e Mestra em Literatura Comparada pela UFC. Traduziu obras de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Ijeoma Oluo, Abi Daré, entre outres. É autora de tambores pra n’zinga, a duração do deserto, geografia dos ossos, quando vieres ver um banzo cor de fogo e sereia no copo d’água e do infantil A melhor mãe do mundo; nasceu em Campinas e vive em Fortaleza há 15 anos, onde faz laboratórios de escrita criativa com mulheres e integra as coletivas Pretarau - Sarau Das Pretas e Sarau da B1. Poema “mergulho-risco quando pixo” disponível em https://www.cemanade22.com/homenagens/nina-rizzi



sexta-feira, 8 de julho de 2022

CALDEIRÃO LITERÁRIO IV: DO PEDREGO(ZO)SO CAMINHO DA ESCRITA



CALDEIRÃO LITERÁRIO IV: DO PEDREGO(ZO)SO CAMINHO DA ESCRITA

 

Por Marta Cortezão

 

Ano passado, enquanto me dedicava à construção da Coletânea II: uma Ciranda de Deusas (Editora Sarasvati, 2021), fui tocada por uma preocupação antiga, que estava meio adormecida em mim, acerca do processo de escrita. Mas que naquele momento aflorou com muita força, pois estava mergulhada no processo de escuta das autoras Enluaradas que participavam das lives. E só então me dei conta de que essas inseguranças, essas dúvidas fazem parte do processo de construção literária e nos atravessam a todas; umas com mais ou menos intensidade que outras, mas sempre estão no percurso. Assim que resolvi iniciar uma pesquisa muito subjetiva a respeito do que diziam as várias autoras (séc. XIX, XX e XXI) acerca do próprio processo de criação artística

De tudo que lia dessas autoras, naquele momento, me vinha uma necessidade de dialogar com elas, na intenção de dizer também das minhas impressões, dos meus questionamentos e das muitas inseguranças que me acompanhavam e que me acompanham fielmente, já que é escrevendo que também nos ouvimos e é nos ouvindo que entendemos as nossas fraquezas e nos abrimos a novas perspectivas, assumindo os riscos e os abismos que a palavra nos apresenta. É importante encontrar meios próprios para conviver com esses medos que estarão sempre conosco a cada novo projeto que nos cruze o caminho.

Naquele momento, encontrei-me com um pensamento de Natalie Clifford Barney (1876-1972), nascida nos Estados Unidos, poeta, ensaísta, romancista que dizia o seguinte:

“Ser o nosso próprio mestre é ser escravo de nós mesmos.”

O que me fez escrever:

Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar; o voo é livre, e a destreza de voar com asas de cera exige prudência e sensatez. Acreditar em nosso processo de construção da escrita e/ ou nosso fazer poético é um bem necessário, divino até. Você já se perguntou por que somos tão receosas em assumirmos nossa escrita? Seja qual seja a resposta, escreva! Não se importe com o que o “júri de plantão” irá dizer (especialmente aquela voz que nos adora sabotar), pois não se pode crescer, em nenhum ofício, sem nele exercitar-se. E, além do mais, o brilho e o calor do sol nos abraçam a todas, apenas cuidemos de nossas asas de cera, nem tanto ao calor do sol, nem tanto à umidade do mar.

Outras leituras que anotava nos cadernos a fim de voltar a elas, como foi o caso do livro Fico besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst, organizado por Cristiano Diniz. No trecho abaixo, Hilda Hilst (1930-2004), uma das grandes escritoras do século XX, diz o seguinte sobre “o sofrido caminho da criação artística”:

          “As pessoas perguntam sempre por que a gente escreve e eu fico pensando em todos os motivos que levam de repente uma pessoa a escrever e penso que a raiz disso em mim está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida. Quem sabe também se não é uma necessidade de viver o transitório com intensidade, uma força oculta que nos impele a descobrir o segredo das coisas. Uma necessidade imperiosa de ir ao âmago de nós mesmos, um estado passional diante da existência, uma compaixão pelos seres humanos, pelos animais, pelas plantas. [...] Também o ato de escrever para mim revela às vezes a insegurança, pois o escritor é um ser frágil, inseguro, ansioso, que procura respostas para todos os mistérios da vida.”

Portanto, acalmemos os ânimos e o coração, tudo é estrada, tudo faz parte desse processo de construção da escrita e de nós mesmas. E digo mais, consumir e fazer literatura também nos humaniza e nos ensina a envelhecer plenas de juventude. E a insegurança será sempre nossa companheira e profetisa de vida, porque é dela que vem o desejo de superar os obstáculos. Escreva sempre, porque, como diz a máxima latina, as palavras voam, mas o que está escrito permanece!

Então não esqueça que HOJE, 09|JUL, SÁBADO, às 17h (Brasília), no canal BANZEIRO CONEXÕES, realizaremos o nosso CALDEIRÃO LITERÁRIO IV.

Estaremos na companhia das companheiras-escritoras: Heliana Barriga, que nos falará sobre o seu livro Palavra de boca, Palavra de mão (Editora Paka-Tatu, 2022); Manuela Lopes Dipp com seu Poemas para colocar dentro de uma garrafa, (Editora Bestiário, 2021); Heliene Rosa, com o livro Rodas de Contação de Histórias - Eliane Potiguara e Conceição Evaristo (Editora Subsolo, 2022);  também a poeta Patrícia Cacau  com Quintais (Editora In-Finita, 2020), Marina Marino, com seu Tudo foi vivido (Editora Voo Livre, 2021) e Marta Cortezão, que também apresenta o seu livro Amazonidades: gesta das águas (Editora Penalux, 2021).

 

Venha participar conosco!🧹🧙‍♀️

Confira a sinopse dos livros das autoras participantes do Caldeirão Literário IV:

Obs: todos os textos abaixo foram enviados por cada uma das autoras convidadas.



PALAVRA DE BOCA, PALAVRA DE MÃO | HELIANA BARRIGA

 

Nós o chamamos O PALAVRA. Um conteiner de idéias construído com zelo e luta, a quatorze mãos. Mãos desta autora, de duas filhas e três netos. Um sobrevivente irreverente. Um teimoso reticente. Um destinado à cabeça e ao corpo. Para todas as vivacidades. Para as crianças juntas com seus e suas professoras, suas famílias, amigos ou sozinhas mesmo. Uma saída para a alegria. Uma desistência do suicídio. Prosas e poemicências novas desta autora inventadeira, que propõe a seu público, as leituras sem ataduras.  Para ler, alterar, divertir, escrever, e não desistir.

 


POEMAS PARA COLOCAR DENTRO DE UMA GARRAFA | MANUELA LOPES DIPP

A poesia escapa pelas frestas do cotidiano, corre solta pelas esquinas e pelos silêncios, encontra acolhida na encosta dos olhos, faz abrigo nas esperas, no amor e nas mãos, verte profunda das nascentes do coração de quem sente e vive o poema, a poesia desenha oceanos. “Poemas para colocar dentro de uma garrafa” abre-se como um horizonte marítimo de versos, é um mergulho nas águas poéticas de Manuela Dipp. Manuela que absorve da vida que transborda matéria-prima para o poema, reúne nesse livro uma generosa e bela seleta de poesias que constelam temas como o amor, as paixões, o fazer poético, o navegar. De ritmo potente, a poética de Manuela carrega o movimento das águas: intensa e suave, desaguando em metáforas sinestésicas, em imagens que ampliam os significados da dimensão dos afetos, dos territórios do corpo. “Poemas para colocar dentro de uma garrafa” tem o princípio das cheganças, dos abismos e da devoção por sentir-viver poesia derramada em palavras. A experiência dessa leitura transcende qualquer mapa, linha, letra, fronteira ou caminho, é uma vivência-mergulho arrebatadora.

                                                                     Michelle C. Buss

João Pessoa, agosto 2021

 


RODAS DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS – ELIANE POTIGUARA E CONCEIÇÃO EVARISTO | HELIANE ROSA

Este livro é fruto do projeto extensionista “Rodas de Contação de Histórias: Eliane Potiguara e Conceição Evaristo”, o qual homenageia duas intelectuais brasileiras contemporâneas que têm contribuído para o fortalecimento identitário e literário das mulheres indígenas e pretas em nossa sociedade. Eliane Potiguara representa os agenciamentos das intelectuais indígenas brasileiras, expressando, nos limites da escrita poética, suas lutas, seus sonhos, seus desejos, suas potencialidades e suas subjetividades. Desde a década de 1970, ela é uma mulher expoente da literatura contemporânea de autoria indígena, bem como militante do Movimento Indígena Brasileiro. Já Conceição Evaristo representa as intelectuais negras brasileiras que faz reverberar, em textos literários “escreviventes”, as opressões impostas por uma sociedade racista, sexista, de base escravocrata e patriarcal, cuja violência contra as mulheres pretas cresce exponencialmente. Ela é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Possui livros de poesia e narrativas nos quais se transitam figuras femininas negras representativas de seus papéis sociais no Brasil.

 


QUINTAIS | PATRÍCIA CACAU

O livro quintais é um espaço de refúgio, aconchego.

A expressão orgânica de uma mulher comum, quanto tantas sem lugar de privilégio que usa o seu caderno como amigo mais íntimo, onde desabafa as suas angústias e anseios no seu profundo desejo de seguir em frente e reinventar seus sonhos, e libertar-se do que outrora afligia o seu viver e descobre:

Que escrever é como respirar pelo papel.

Patrícia Cacau POETA

 


TUDO FOI VIVIDO | MARINA MARINO

Um encontro esperado há reencarnações.

Mulheres que distribuem seus dons, através de suas profissões atuais, no jornalismo, na fotografia, na relojoaria, na medicina, na culinária, sem ao menos saberem que os possuem.

Mas como tudo o que foi vivido jamais é esquecido porque fica gravado no coração, elas recordarão sua verdadeira identidade quando se reencontrarem.

TUDO FOI VIVIDO, um livro para ser lido com o coração.

 


AMAZONIDADES: GESTA DAS ÁGUAS | MARTA CORTEZAO

Amazonidades: gesta das águas passa por um livro de poesia, mas é muito mais que isso: é um compêndio de Amazônia, uma súmula do imaginário dessa região que se espraia por nove países e, no Brasil, por nove estados, e agora, em domínios de Castela e Leão, funda um virtual território independente, representado pela poesia de Marta Cortezão.

Ler as trovas de Marta é como remexer uma biblioteca de sonhos, o imaginário amazônico, onde todo o conhecimento do “povo das doces águas” está reunido: os acesumes, as comilanças, as leseiras, as caboquices, os encantados – nossos mitos ancestrais. Marta inventa palavras e, como Drummond, torna outras mais belas: “Apeixono-me de escama / em noite de virar bicho”; “canoei todo um rio-mar”; “O que assaranha uma vida?”; “Sevava palavras cruas”; “e na cólera das horas”; “pois janeirava à tardinha”. São apenas amostras. O leitor poderá “caniçar” outras dezenas de exemplos brilhantes.  

Duas linhas de pensamento são recorrentes: a sensualidade e a metalinguagem. Às vezes, elas vêm juntas: “A traquinagem do verso / faz vaginar pensamentos; / então me entrego, de certo, / ao falo afoito do vento.”  As metáforas são sempre construídas com elementos do imaginário: “Pensamentos escamei, / aparei todas as abas, / as cicatrizes limpei / e salmourei as palavras.” E observem o domínio da métrica e das rimas – toantes, inclusive.

Senhora de seus elementos, Marta Cortezão revela-se, sobretudo, senhora de seu ofício.

  Zemaria Pinto, escritor.

sábado, 2 de julho de 2022

CALDEIRÃO LITERÁRIO III: DAS PULSÕES SUBVERSIVAS DA LINGUAGEM

 


CALDEIRÃO LITERÁRIO III: DAS PULSÕES SUBVERSIVAS DA LINGUAGEM


Por Marta Cortezão


a poeta

– artífice da palavra –

cultiva seu canteiro

sílaba a sílaba

tateia o mundo dos significantes

e de seus significados

subverte funções

e disfunções da linguagem

mergulha em conceitos metafísicos

 

em voo indomável e paradoxal

ultrapassa o universo linguístico

das coisas corpóreas e incopóreas...


e do adubo fértil da alma

 a poesia se faz germinar! 

[Marta Cortezão]


Escrevi este poema, sem título ainda, no ano passado, no momento da construção da Coletânea II: uma Ciranda de Deusas, publicada pela Editora Sarasvati, em parceria com o Selo Editorial Enluaradas, e que (é bom enfatizar!) está concorrendo ao Prêmio Jabuti 2022. Ao reler o poema, hoje, me veio a necessidade de fazer nele algumas modificações. Senti que era preciso adubar o solo fértil da linguagem, podar algumas palavras de essência capim, porque estendem seu ambíguo significado e tomam conta de tudo e sufocam a outras palavrinhas miúdas, e acabam minguando o poema. 

Quis aplicá-lo os cuidados para senti-lo um poema-planta viçoso, com nuances hiperbólicas de nova semente, quase invisíveis à alma nua. E não porque seja difícil identificar tais modificações entre as duas versões, não me refiro a isso, mas ao fato de, como poeta, encontrar-me neste particular e ansiado estado de "alma nua" para cultivar férteis canteiros de poesia. Nesse processo de preparação, há um laborioso trabalho nos campos linguísticos dos vocábulos, e é importante curvar-se sobre estes campos para ará-los com paciência, com a dedicação monótona de uma jardineira que enfia as mãos no solo úmido e movediço das palavras e tateia com minúcia sua superfície subversiva, prenhe de epifanias do cotidiano, a fim de trazer o novo à vida.

Anteontem li um artigo sobre o discurso da poeta Wisława Szymborska (1923-2012) proferido por ocasião da premiação do Nobel de 1996, cujo título é O poeta e o mundo. Nesse discurso, me tocou muito a ponte que Szymborska fez com os versos do poeta bíblico Eclesiastes (1:9) que tratam das vaidades humanas. Ela imagina o prazer do diálogo com o poeta que admira, tomando-o pela mão e dizendo-lhe, com poeticidade: 

“Nada de novo sob o sol” — escreveste, Eclesiastes. No entanto tu mesmo nasceu novo sob o sol. E o poema que criaste também é novo sob o sol, já que ninguém o escreveu antes de ti. E novos sob o sol são todos os teus leitores, pois os que viveram antes de ti não puderam ler teu poema. E também o cipreste à sombra do qual sentaste não cresce aqui desde o começo do mundo. Ele surgiu de outro cipreste parecido com o teu, mas não exatamente o mesmo. E além disso, Eclesiastes, queria te perguntar o que de novo sob o sol tenciona escrever agora. Será algo com que ainda complementes teus pensamentos ou acaso estás tentando a contradizer alguns deles? Na tua obra anterior, vislumbraste a alegria — que importa que seja fugaz? Portanto, quem sabe será sobre ela teu novo poema novo sob o sol? Já tens anotações, os primeiros rascunhos? Não dirás decerto: “Escrevi tudo, não tenho nada a acrescentar”. Nenhum poeta no mundo pode dizer tal coisa, muito menos um poeta como tu.   

E como trazer o novo neste mundo tomado pela celeridade das informações e pela impaciência de demorar-se sobre as coisas e sobre as outras pessoas? Como não se angustiar com a ‘avalanche criativa’ do mundo cibernético? Como não sucumbir às vaidades das vaidades e armadilhas do ego? Eu, na minha tão pequena existência, me aproprio do diálogo filosófico da poeta Szymborska, um antídoto para as angústias do voraz século XXI, e ouso dizer que a resposta, para mim, está em parar para cultivar o próprio e único canteiro, pois as palavras-sementes que nele vingarem terão a essência única, o cheiro de flor que somente será peculiar à própria alma de quem o cultivou. Ainda que as mesmas sementes-palavras ecoem pelo mundo em outros tantos cultivos, no seu canteiro terão beleza, textura, cor e pulsão únicas e plurais, porque há um novo que cresce e floresce em cada humana existência que lateja sob o sol, apesar do cansaço e desilusão vividos dia após dia. É sempre tempo de arar os campos da linguagem e subverter seu uso, interessar-se também pela natureza das ervas daninhas que nos visitam os canteiros e permitir que os pássaros famintos se alimentem no canteiro-alma.

          E para cultivar os campos da linguagem deste Caldeirão Literário III, que acontece HOJE, às 17h (Brasília), contamos com a técnica das jardineiras-escritoras: Liana Timm (RS), com seu mais recente canteiro A Dimensão da Palavra - 36 anos de poesia - Editora Território das Artes, 2021; Lindevania Martins (MA), com A Moça da Limpeza, Editora Primata, 2021; Flavia Ferrari (SP) e seu Meio-Fio: Poemas de Passagem, publicado pela Editora Toma aí um Poema, 2021; também a poeta Dalva Lobo (MG), com Poesilha: dos pequenos tratados do cotidiano, Editora Siano, 2021 e a poeta Cristiane de Mesquita Alves (PA), com seu Riscos de Mulher, pela Editora Todas as Musas, 2021.

E quem tem o privilégio de receber estas autoras queridas é a poeta Marta Cortezão, juntamente com VOCÊ, parte importante desse Caldeirão Literário! Aguardamos sua companhia desde já!

Confira os belos canteiros cultivados pelas autoras:

Obs: todos os textos abaixo foram enviados por cada uma das autoras convidadas.

 


A DIMENSÃO DA PALAVRA | LIANA TIMM


O livro reúne 35 anos de poesia da artista multimídia LIANA TIMM. Em 494 páginas, os 18 livros da poeta já publicados, foram reunidos para dar conta dessa trajetória. Desde a adolescência escrevia, mas textos inconsequentes e pueris, até que resolve dar visibilidade à palavra. Então busca a sabedoria de mestres, tanto no contato pessoas quanto na leitura e passa dez anos adquirindo conhecimento e praticando a escrita de forma consciente, até publicar seu primeiro livro em 1986 e participar de antologias.

“Escolher a palavra certa que rime com nosso interior é mais que rimar a sílaba forçando uma artificial musicalidade. É harmonizar o prazer da estética que, espontâneo, busca se aconchegar em outras palavras carregando-as de significações. Na poesia testamos, com a sonoridade de nosso coração, todo verso que atravessando o corpo despreza qualquer tradução. Há mais ou menos 12.775 dias vivo a poesia sem intervalos nem concessões. Na solidão da escrita sou tudo o que quiser ser!”, revela a artista.

Esse constante movimento foi reconhecido com 17 premiações. Entre elas, o Prêmio de Melhor Livro do Ano na categoria Poesia, da Associação Gaúcha de Escritores (AGES) para “Água passante” (2010) e “Os potes da sede” (2012). O primeiro, nas palavras da crítica literária, ex-professora da UFRGS, da PUC e ex-diretora do Instituto Estadual do Livro (IEL), Léa Masina: “Liana oferece ao leitor um mergulho nas profundezas de uma estética em constante movimento, apreendida na fragmentação das coisas e na possibilidade de uni-las provisoriamente, sem deixar-se aprisionar pela estrutura previsível e imediata da realidade".



A MOÇA DA LIMPEZA | LINDEVANIA MARTINS

 

É o quinto livro da escritora Lindevania Martins. Publicado pela Editora Primata, apresenta onze contos inéditos que dialogam profundamente com o tempo presente, suas inquietações e desafios. A obra passou por rígida seleção do Governo do Estado do Maranhão através do edital público Conexão Cultural Literatura, que viabilizou sua publicação.

Do professor universitário, pesquisador e membro da Academia Maranhense de Letras JOSÉ NERES, morador de São Luís do Maranhão:

“Admiro o talento de Lindevania Martins desde o primeiro contato com sua prosa no livro “Anônimos”.  De lá para cá, venho acompanhando o desenvolvimento de seus trabalhos artísticos.  Seus textos são refinados e cheios de nuances que oscilam entre os aspectos sociais e psicológicos. Em seu novo livro de contos - “A Moça da Limpeza”- ela traz uma série de contos de excelente tessitura e que levam o leitor a “conviver” tanto com os aspectos físicos quanto com as abordagens psicológicas das personagens. Em cada conto, violência, angústia, neuroses e desencontros envolvem todos os ambientes e mostram facetas inusitadas que desnorteiam não apenas os leitores, mas também os companheiros de jornada literária. Uma ótima leitura!”

 


MEIO-FIO: POEMAS DE PASSAGEM | FLAVIA FERRARI

 

É um livro de uma mulher que nasceu preparada para guerra: carrega a força do berro feminino silenciado que se rompe, sem explodir em violência, e sim em uma sensibilidade clariciana, a qual não nega a condição áspera da vida, se esfola e faz da ferida uma janela para a anatomia da vida e das relações humanas.

É um livro raro, de uma sensibilidade acessível e extremamente profunda que não se perde em construções excessivas.  Flavia Ferrari explode suavemente a poesia que respira. Sem dúvidas, é uma poeta que terá um crescimento gradual contínuo que nasce com o dom de dissecar a linguagem poética, descobrindo uma glândula pineal coletiva.

Para Jéssica Iancoski, editora-chefe do Toma Aí Um Poema, “A poesia vem para Flavia Ferrari de maneira cotidiana e intuitiva. Percebe-se que há muita facilidade, como se versar fosse um dom natural".



POESILHA: DOS PEQUENOS TRATADOS DO COTIDIANO | DALVA LOBO

 

Poesilha é um pequeno tratado do cotidiano que convida a degustar as iguarias da vida, da amizade, da memória e da imaginação. Da seção de abertura, quando convida os loucos, os poetas e os errantes até a despedida da poesilha, quando saciados, os convivas contemplam o constante renascer da vida, a autora, entre silêncios e bailarinas, desvela a poética do viver.



RISCOS DE MULHER | CRISTIANE DE MESQUITA ALVES

Este livro deverá surpreender até os leitores mais habituais e amantes da Literatura. A poesia de seus escritos há de encantar e instigar a todos. A leitura de seus escritos há de desnudar a alma de uma mulher que, ao mesmo tempo, em que fala de/por si, dá voz a outras mulheres. Há quem, assim como eu, poderá se sentir representada/o, e partilhar das mesmas sensações, emoções e dores. Sem dúvida, o leitor mais atento, verá aqui uma poetisa que consegue ser singular e, simultaneamente, plural.

A obra reúne sessenta poesias que falam sobre a mulher em suas mais diversas formas, faces e fases. São poesias tecidas por fios feministas com atravessamento de dores, frustrações, violência doméstica, de infância, de injúrias, de traição, de patriarcalismo, feminicídio, mulheres cis e trans, velhice, amor e esperança.

 

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EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

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