AVE, CRÔNICA|07
POR MARTA CORTEZÃO
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Alguns passos deixam marcas que a cidade não ignora. Uma
mulher caminha pela cidade. Um homem caminha pela cidade. Dois fatos comuns, no
entanto, totalmente distintos do ponto de vista da essência semântica e
espacial do corpo que caminha. E não me refiro simplesmente à ação de caminhar,
mas ao que não cabe nos fatos em si, o que transborda deles e escorre pelos
interstícios do passado e do presente, que pulsam no organismo vivo da cidade. Há
uma pragmática quase invisível entre o corpo caminhante e o corpo vivo da
cidade, porém essas relações não se apresentam de forma neutra a todos os
corpos. Sua topografia, construída por edifícios fálicos e belicosos, se impõe
como o cenário dos acontecimentos cotidianos.
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A cidade é um ser que respira, reage, amanhece e
anoitece a cada passo. Aos passos do homem que caminha, ela abre os pulmões
receptiva, e inspira o ar fresco matinal. A brisa favorável dos bons tempos
percorre suas artérias, porque a cidade está feita à sua medida. Ela exibe sua fortaleza
em suas largas avenidas desobstruídas, que fluem sorridentes, sem impedimentos,
em todas as direções, num fluxo contínuo. Já a mulher trânsfuga, ao caminhar,
pisa com seus medos no corpo urbano, vivo, mas limitado. A cidade exala, por
entre postes e vielas, um ar pesado e sepulcral, como se, a cada passo, fosse
revelar o inesperado, ao mesmo tempo previsto e temido, o susto iminente
prestes a saltar de alguma esquina. Seus labirintos estreitos suspiram pesado e
sussurram segredos medonhos por entre os dentes: fogueiras, massacres,
violações, silenciamentos... As veias urbanas pulsam obstruídas no fluxo das
incertezas, sem volta, sem refluxo, dificultando o próximo passo, facilitando o
tropeço, o coágulo.
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A cidade, suas sombras e seus olhos de Argos se dissolvem.
Invisíveis, espalham-se pelas paredes, pelas janelas, pelas construções, pelas
frestas, pelo trânsito afoito dos automóveis, entre buzinas e piscadas de
faróis. Um homem caminha pela cidade sem notar o tumulto, sem notar as sombras
e os olhos, porque a cidade é neutra ao seu corpo. Ele atravessa sem sentir o
bulício, mas seus olhos cravam-se na mulher que caminha em sua direção. Ela,
atormentada pelo ruído da cidade, se assusta, sente o olhar do caminhante arder
em seu corpo nu e desvia sinuosamente o percurso. A cidade cede palco aos olhos
que não piscam – apenas os faróis atentos dos carros, que piscam em
cumplicidade à buzina estridente da insinuação incômoda, na hora cansada da
cidade. A mulher apressa os passos largos. Pelas frestas dos vidros dos carros,
a cidade se assenhora do espaço que o corpo da mulher pisa. As sombras assobiam
palavras obscenas que a atravessam, queimando a caminhante assustada como mãos de
fogo que não tocam, mas ardem e marcam para sempre.
A cidade, insaciável não dorme. Ela é um animal de humor instável, de garras afiadas, pronto para assaltar sua presa com seu baile de máscaras medieval. Com seu ar selvagem e fingido comportamento manso, de aparente desinteresse, prepara-se para dar o bote. Permite a passagem da mulher que caminha, para logo apresentar um risco calculado na próxima esquina. A cidade tem patas silenciosas e olhos de fera noturna. Durante o dia, deixa-se domesticar: ruas iluminadas, passos firmes. À noite, arqueia o lombo, mostra os dentes, e toda mulher aprende a andar como quem não quer acordá-la, pois há os corpos e as cicatrizes que a cidade devora. Até quando uma mulher que caminha pela cidade será apenas mais uma sombra em meio à cegueira extrema do espaço urbano?
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