quarta-feira, 7 de setembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, POR RILNETE MELO



N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|03

 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA  DO BRASIL


Por RILNETE MELO


              Era final de outono na Bahia, o sol começava a se esconder ao longe, no horizonte da estrada de terra batida da fazenda Itapororoca. Pelo caminho uma dupla prosseguia a pé, cantando o refrão: “Pelo bem dessa nação/ pela terra e pelo pão /independência na cabeça e amor no coração” ... Era Quitéria e seu cunhado soldado Medeiros que voltavam de mais um dia de caça. Durante todo o percurso matutava na cabeça de Quitéria a ideia de ingressar no exército, e assim como José Medeiros lutar pela independência do seu país, bem como dar um basta nessa ideologia de desigualdade de gênero. Naquele dia, ao chegar em casa, tirando o casaco suado, pendurando o canil no armador da rede, exibindo o cinturão com algumas munições e a espingarda que lhe descia quadril abaixo, ela batia na mesa dando socos e em voz alta gritava: Eu vou amanhã naquele quartel! Nem que eu tenha que fugir de casa! Ah! Juro que eu vou!

Na semana anterior, um emissário do governo havia ido à casa do pai de Quitéria com o objetivo de convocar voluntários para o combate libertário. O velho Gonçalves disse que não tinha nenhum filho para enviar à guerra e que deixassem ele em paz. Escondida atrás da porta Quitéria ouvia todo aquele blá blá blá com paixão, curiosidade e o peito de mulher guerreira batendo descompassado, ardendo de vontade de dizer que ela ia, e pensava; Ah! Como eu queria ser homem nessa hora!

Mas, desgarrando-se do modelo de família cristã burguesa, tendo conhecimento de que seus hormônios femininos não tiravam seus atributos de inteligência e criatividade, teve um insight brilhante!

—Tetê! Eu vou me apresentar no exército brasileiro amanhã! - disse Quitéria.

—Você enlouqueceu menina? No exército não aceita mulher, sem esquecer que nosso pai jamais aceitará essa sua decisão. - retrucou Tereza

Tetê, como Quitéria chamava sua irmã mais nova, fora cuidada por ela desde que sua mãe havia falecido lhe deixando com 10 anos de idade, dois irmãos e uma irmã para cuidar.  A vida não fora fácil para Quitéria depois que sua mãezinha foi morar no céu, pois sua madrasta não aceitava esse seu espírito independente, com sede de emancipação e quebra de tabus. E nessa lengalenga ela cresceu, ouvindo que mulher nasceu para bordar, tecer, fiar, cozinhar e cuidar da casa e do marido. O tempo passou, Tereza casou-se com José Medeiros e Quitéria permaneceu solteira, não teve oportunidade de estudar, mas de caça, pesca, montaria, armas e anseio de autonomia... ah! ela entendia até demais!

Naquele dia, Quitéria tinha ido até a casa da irmã para lhe falar de um plano de fuga, pois soube que seu pai ia fazer uma viagem de negócios.

— Minha irmã! Eu tive uma ideia genial! posso contar com sua ajuda? – falava Quitéria entusiasmada. – Vou cortar meu cabelo igualzinho ao de um homem, vou fugir de casa e me alistar no regimento da artilharia, mas preciso que você me empreste uma roupa do Medeiros. Tereza ficou estatelada com aquela atitude da irmã, mas não podia negar seus favores àquela que sempre cuidara dela como se fosse sua mãe:

— Oxe Mainha! inté eu fiquei com vontade de ir! Não fosse o Zé e as crianças eu ia também! – disse Tereza

— Pois ande logo que eu tô avexada! Me empresta o uniforme do Zé que hoje eu vou usar seu codinome e vou ser Soldado José de Medeiros e ninguém me segura!

Esse era o maior desejo de Quitéria, pois seus ideais estavam bem longe do patriarcado machista imposto pela sociedade.   Com a necessidade de legitimar suas inquietações, agora se dirigia até a barbearia do velho Quincas para a transformação...

Então, decidida a tomar o passo mais importante da sua vida, adentrou a barbearia, dando um tapinha no ombro do Quincas, pediu que deixasse suas madeixas com um corte masculino daqueles bem militar. O velho barbeiro esbugalhou os olhos - sem entender nada - disse-lhe apenas que iria cumprir o seu papel, mas sabia que aquele feito não seria do agrado do seu pai, pois ele conservava suas filhas no âmbito doméstico, limitando o seu espaço feminino e os costumes sociais.

— Pois assunte bem Sr. Quincas! Eu não vou seguir à risca esse papel social imposto pela sociedade, e aproveitando que meu pai viajou, hoje eu vou me alistar no exército e não ouse dar com a língua nos dentes.

Cabisbaixo, sem saber a quem obedecia, mas com a ética absoluta de um bom profissional, Quincas prometeu sigilo à menina Quitéria, que agora, deixando aquele recinto em busca do jogo da vida que lhe tornaria mais feliz, sacodia os últimos fios de cabelos que teimavam em agarrar-se à sua nova pele. Um vento de reforma profunda soprava seu rosto e descia entre a abertura do uniforme, indo até o seio arfando, apertado pela faixa que tirava a protuberância feminina, dando vazão a sua autonomia e ao seu desejo incansável de luta.

As botinas eram pesadas; mas nos pés de Quitéria pareciam travesseiros de plumas. A calça folgada escondia as belas curvas e davam-lhe segurança no disfarce da sua nova identidade. A aba do quepe sobre os olhos não conseguia esconder o brilho que afugentava suas retinas, os passos acelerados iam de encontro ao batalhão “Regimentos de artilharia”, onde o sonho de lutar pela independência do brasil e a sua emancipação, ia se concretizar. Era manhã de sol forte, a rua estreita que dava acesso ao quartel agora parecia agigantar-se. Somente vira assim, a estrada densa da floresta, a mira na sua caça e o sonho de conquistar sua própria independência.

Quitéria pensava em tudo que deixaria para trás, o seu cavalo de boa montaria, as manhãs de pesca, os tiros ao alvo... e o perdão do seu pai. Não via agora com os olhos do corpo e sim com os olhos da alma lutadora e forte. Pouco conhecera da vida da cidade, mas o que ouvia sobre o laço colonial que existia entre Brasil e Portugal era suficiente para romper os obstáculos que encontrasse até chegar àquele quartel. A fila para alistamento estava grande, mas grande mesmo era a vontade de romper a fronteira predominantemente machista e poder ter sua contribuição na sociedade.

— Nome?  José da Silva Medeiros. - Goza de boa saúde? Sim senhor! – Promete honrar o seu compromisso com a pátria? Sim senhor! – Quitéria respondia a todas as perguntas sentindo que estava atendendo aos critérios militares. No início tudo estava sob o controle e seu sexo não foi reconhecido, mas passado algum tempo, seu velho pai, por desforra à sua fuga, revelou ao oficial comandante a sua verdadeira identidade. O saiote estilo escocês de Quitéria, customizado por suas delicadas mãos, deu o ar da graça em infinitas batalhas a favor da independência, afogando o machismo, que agora ficava embaixo do que vestia o seu ego, quebrando barreiras e mostrando a força da mulher.

Era manhã de verão no Rio de Janeiro, o sol trazia os primeiros raios, que entravam pela janela do quartel iluminando o diploma na parede dos aposentos do capitão do Batalhão do Imperador, que agora fumava seu charuto e descansava suas belas e torneadas pernas, após devorar um prato de farofa de ovo com bacon, tomate e cebola, preparado por suas mãos, graças aos seus dotes femininos...

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

LIVROS & ENCANTAMENTOS: "MULHER MARIPOSA", DE MARI VENTURA, POR DANIELA CARUZA



LIVROS & ENCANTAMENTOS|01

"MULHER MARIPOSA: DO MAU PRESSÁGIO FEZ POESIA", DE MARI VENTURA


POR DANIELA CARUZA


Onde dorme a poesia da mulher piauiense? Quantos desejos desconhecidos lhes convocam à noite para passear em sonhos dormidos, insones, proibidos?

Pouco sabemos das mulheres piauienses que se apropriaram da escrita, manifestando através das palavras os próprios anseios, desejos, sensações e visões, como protagonistas e testemunhas de um tempo[1]. Menos ainda sabemos daquelas que não escreveram. Da mulher sertaneja, o que se vê, de maneira geral, é um retrato estanque, mudo, calado, de uma existência submetida, sofrida, sobrevivente. Uma personagem do passado, se for. Se ouvíssemos a sua voz, o que ela diria? A reconheceríamos?

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| foto: arquivo pessoal |

A histórica exclusão do rol daqueles que escrevem e devem ser lidos e lembrados faz da escrita da mulher piauiense, ainda hoje, uma ousadia. Uma ousadia tão grande quanto a de manter viva, noite e dia, em nossos corpos e espíritos, a poesia.

A sensação que permanece é a de que fomos roubadas. Desde muito cedo na história, na curta história de uma vida, na longa história de vidas passadas. Roubaram-nos os séculos, os meses, os dias, os anos. Roubaram-nos até mesmo o sono.

Ficamos com os trapos. A dor engolida, o lamento calado, os sonhos enterrados, os medos vividos. Uma raiva amarga e ferida, numa vida comprida, corrida, ocupada, escorrida pelos dias. Dormindo abraçadas com a solidão. Fingindo costume.

| foto: arquivo pessoal |

Mari Ventura
é uma mulher do sertão Piauiense que nasceu e vive entre linhas e letras. É professora, artesã e escritora. Entende escrita como um lugar de essência (subjetividades e plurissignificação), existência (ter voz e vez), resistência (construção desconstrução e reconstrução de concepções e contextos sociais). Se reconhece como uma poetisa do avesso ao verso. Ainda tem um estoque de medos, mas vai bebendo a coragem em pequenas doses. Autora do livro MULHER MARIPOSA publicado em 2022 pela Editora Voz de Mulher. 

Nem mesmo nos reconhecemos. Silenciadas, roubadas de nós mesmas, nos tornamos prisioneiras, encarregadas da própria carceragem. Acusadas do crime do desejo, o desejo de existir. Não parece haver saída, a não ser fugir, roubar de volta o que nem sabíamos que nos havia sido roubado. Afinal, não é possível viver fugindo de si mesma.

Assim é que, furtiva, nos nasce a poesia. Escondida, acuada, proibida, sentindo-se culpada, fugitiva. Até que irrompe, furiosa, voraz. Por vezes se debate, peleja, padece, mas já não pode ser contida. Grita. Nua, em carne viva, desafia. Parece até loucura, tanta vontade de ser. Preferimos chamar coragem.

Capa do Mulher Mariposa, Editora Voz de Mulher, 2022

Com sua poesia, Mari Ventura questiona os lugares que são considerados apropriados para uma mulher na sociedade, os papéis de gênero que nos são impostos, o teor pejorativo associado à mulher que se entrega à noite, aos devaneios, à poesia, a mulher da vida. É a mulher que fala em sua própria voz, de seus próprios desejos, território que lhe foi proibido. A mulher que se encontra em sua própria companhia. Fala também de cura e da descoberta da luz/lucidez em meio à escuridão.

As poesias ocultas na noite são como sementes guardadas debaixo da terra. Despertam silenciosas, e, vagarosamente, enraízam por baixo e por dentro, antes de sair ao sol. São também como a mariposa, que, antes de ser ela mesma, rasteja, e bravamente recolhe-se em seu casulo, sua solidão, para dentro de si compor-se em asas, até sair voando pelo mundo.

Vê-las voando é, para muitos, um assombro. Para nós, é pura poesia. Um sopro de luz.

Que alegria poder se criar assim, afinal.


**O texto acima é o prefácio da o obra Mulher Mariposa, de autoria de Mari Ventura.


Daniela Caruza
| foto: arquivo pessoal |

Cantora e compositora, Daniela Caruza vive em São Raimundo Nonato, na região da Serra da Capivara, e sua música pulsa com as forças que encontra no sertão e na caatinga. Os versos e a musicalidade de Daniela Caruza leem o mundo a partir dessa paisagem e criam poesia, misturam guitarras com forró e baião. Para ela, cantar a partir desse chão é um convite para nos conectarmos com nossas heranças mais profundas.


[1] Rocha, Olívia Candeia Lima. Flores Incultas e a Academia Brasileira de Letras: escritoras piauienses no contexto do feminismo no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. In: Mulheres e a Literatura Brasileira. Silva, N. F. C.; Cruz, L. G.; Tatim, J.; Pereira, M. P. T. (orgs.) Macapá: UNIFAP, 2017.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

MOSAICO DE IDEIAS: A ESCRITA, A MULHER E A BUSCA PELO ESPAÇO DE EXPRESSÃO, POR SANDRA SANTOS



MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|01 

A ESCRITA, A MULHER E A BUSCA PELO ESPAÇO DE EXPRESSÃO


POR SANDRA A. SANTOS


Não sei explicar como começou pra mim.  Só sei que sempre gostei de literatura e fui uma leitora ávida na infância e adolescência. Um dia em 2002, lidando com as coisas inóspitas que a vida por vezes nos proporciona, pensei que a qualquer momento explodiria.  Foi quando por impulso, peguei um papel e escrevi... Soltei a palavra, gostei do resultado e naquele mesmo dia mostrei a alguém. O que ouvi?

– P@##a, foi você quem escreveu isso? Você quem escreveu? Mesmo? – perguntou-me incrédulo o meu primeiro leitor.

– Sim, fui eu... Claro que fui eu. – Respondi tanto magoada quanto surpresa, num tom impregnado por um misto de desafio e orgulho ferido. Afinal, porque não seria, se eu estava ali, me expondo? E porque não poderia ser um texto meu?

– Nunca darei conta de você.... Você me assusta, você tem alma de artista. – Respondeu-me o tal interlocutor fitando-me como se aquele texto evidenciasse uma espécie de doença. Algo vil que me colocava numa posição vulnerável e em contraponto, me conferia alguma vantagem que lhe era intimidadora. Se era assim... então eu deveria me sentir culpada.

Recebi aquelas palavras como um elogio atravessado por uma ameaça velada.

Essa situação me marcou, primeiro negativamente e aos poucos tornou-se minha mola propulsora, já que amo um desafio. A vida, assim como a necessidade de sobrevivência me deixou sem possibilidades de me entregar à escrita por um bom tempo. Porém ela estava lá, latejante. A vontade de me comunicar, de gritar para o mundo o que eu via e o que eu sentia me cutucava diariamente. Havia algo a ser dito e eu queria falar.

Em algum momento cedi ao impulso e passei a escrever diariamente, fatos que me chamavam a atenção, histórias sobre pessoas e situações que eu observava, principalmente sobre o universo feminino. Mulheres que como eu, viviam suas vidas apesar das dificuldades e seus universos que me tiravam da zona de conforto. Mas, afinal existia alguma zona de conforto em mim? Talvez não, e exatamente isso que me conferia identidade. Então, viva o desconforto que me move.

Nasceram contos, poesias que ficaram muito tempo no HD do computador ou em papéis que começavam a amarelar. A princípio, não mostrei a ninguém por falta de coragem. Como poderia ser diferente se um dia, alguém colocou minha sensibilidade e minha forma de expressão no rol dos piores pecados?

Ainda bem que a gente amadurece. Ainda bem que existem espaços de fala como o “Feminário Conexões”. Salve a santa Internet que cada vez mais nos conecta.  

Com o amadurecimento, surgem a força e o amor próprio que nos fazem seguir no sentido contrário da mudez e do medo do julgamento. Força essa, que nasce na contramão do surgimento das rugas, e da quantidade crescente de velas nos bolos de aniversário. O amadurecimento traz o autorrespeito e escancara a magia fumegante da nossa potência: a potência de ser mulher.

Escolhi mostrar nessa primeira participação, o poema “O espelho” que deu origem a tudo isso, e depois de 20 anos, me conferiu o terceiro lugar, menção honrosa, no concurso do Celeiro Literário – Brasília. Esse concurso deu origem a coletânea -Tempos Adversos e me proporcionou a coragem de enviar meus poemas para o projeto Enluaradas, do qual aguardo ansiosamente, o primor de livro, intitulado "I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida”. Em alguns meses, sentirei a satisfação de realizar o lançamento do meu primeiro livro de poesias, O “Jardim dos Silêncios”, pela editora Viseu. 

Hoje, deixo que as palavras brotem, permito que fluam ganhando cada vez mais espaço em minha vida. No momento trabalho louca e apaixonadamente em meu primeiro romance, ainda com um nome provisório, “Dona Eugênia”. 

Agradeço a equipe organizadora desse blog e aproveito para a parabenizar a iniciativa, pois cada canal de fala, cada canal que permite a nossa expressão, permite trazer à tona o que nos move. Nossa genuína forma de ser e de estar no mundo.

Segue o poema que considero o ponto de virada da minha história.

 

O ESPELHO

Solidão. Veias secas.

O passado nada mais é que um peso morto sobre minhas costas frágeis.

Papéis em branco, aguçam a minha louca ânsia de escrever meu futuro

com a mesma segurança narcísica de quem escreve leis.

Hoje, só encontro manchas de sangue nas paredes do meu útero vazio.

Meus seios já não vertem mais o leite farto.

A dança do vento em minha direção brinca com as folhas mortas

intencionalmente queimadas do meu jardim.

Verti uma lágrima para cada uma delas...

Ouço teu olhar que me fala daquilo que envergonhado tu calas:

do teu suposto amor, da minha pseudosantidade que desprezei,

dos medos e perigos que procurei e que mesmo apavorada, por amor enfrentei.

Das preces que evitei...

Meu leito, minha morte.

Meu sorriso apagou-se na imagem da menina magra que morou no espelho.

Minhas bonecas quebradas riem-se de mim.

Meus sonhos tornaram-se minhas amarras e

como companhia que desprezo, tenho apenas anjos ociosos.

Os profundos sulcos em minhas mãos enganam a cigana experiente, linhas que

paradoxalmente, a cada ano tornam-se mais fortes enquanto meu corpo definha.

Consumo-me nas tramas que criei?

Tendência fatalista, é o que tu achas?

Que importa?

Quem lerá estas notas?

{Sandra A. Santos - Out//2002}

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Sandra A. Santos

Sandra A. Santos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.


ESSAS MULHERES: DE CABEÇA ERGUIDA, POR SIDNEI MANOEL FERREIRA


E S S A S   M U L H E R E S|01 

D E   C A B E Ç A   E R G U I D A


POR SIDNEI MANOEL FERREIRA


Aprender. Está aí um verbo que pratico em todos os encontros do Essas Mulheres (para quem não conhece: lives semanais no Instagram que faço com mulheres incríveis). Todo encontro é festa para minha alma, que sai renovada de tanto ouvir essas mulheres com suas histórias de luta, de tanto ver nos olhos delas a paixão pelo que fazem. Em cada encontro, essas mulheres me ensinam o quão o Feminismo é libertador numa sociedade eivada pelo discurso tóxico do patriarcado.

Ensinar e aprender. Aprender e ensinar. Alguém aí lembrou de uma alguma professora?

Pois eu sim! No primeiro encontro Essas Mulheres, no qual conversei com a brilhante poeta Marta Cortezão, falei, no quadro Álbum Essas Mulheres, de Antonieta de Barros (1901-1952), educadora, jornalista, escritora e política.

Nascida em Florianópolis e filha de ex-escrava, Antonieta trilhou, apesar de toda dor e barreira proprocionadas pela crueldade do indefensável racismo, uma carreira vitoriosa na imprensa e na educação florianopolitana. Escreveu para vários jornais locais e lecionou nos mais badalados colégios da capital catarinense. Também deixou a sua marca na política: foi a primeira deputada negra no Brasil e teve seu mandato vinculado à defesa incansável da educação (O dia do Professor foi, pioneiramente, criado por essa mulher apaixonada pelo ofício de ensinar). Antonieta não era propriamente uma feminista, mas defendia que a mulher deveria ir além do combo casamento, dona de casa e mãe que a sociedade machista reservava às mulheres na época.

Falar, então, dessa notável conterrânea na primeira live era inevitável e foi um momento especial. O que eu não esperava é que Antonieta voltaria a me emocionar noutra live.

Alguns meses depois, eu recebi no Essas Mulheres as catarinenses Sílvia Teske, renomada artista plástica,  e Vânia Teske, ótima contadora de histórias — o sobrenome não é coincidência, as duas são cunhadas. Eis que, na reta final da live (deliciosa por sinal), Vânia relata uma história protagonizada pela sua mãe (Nilda Teske) e Antonieta de Barros. Uma história que Nilda contava aos filhos sempre com muito orgulho.

 Nilda era aluna da antiga Escola Normal Catarinense. Antonieta era a diretora. A mãe de Vânia era uma jovem interiorana tímida, vivia de cabeça baixa na escola. Pois um dia, Antonieta postou-se diante de Nilda. A eminente diretora levantou o rosto da acanhada aluna e arrematou: “uma professora pra ser respeitada sempre deve andar com a cabeça pra cima”. Palavras que rasgam a pele. Nilda passou andar sempre de cabeça erguida. Nilda virou diretora de escola.

O Brasil é um país que ainda desvaloriza e fustiga os professores. Escola tem que ser prioridade. Por isso, enaltecemos os grandes educadores. Sim, Paulo Freire é um mestre. Não esqueçamos, contudo, de mulheres como Antonieta de Barros. Gigante Antonieta.

Sidnei Manoel Ferreira

É natural de Florianópolis/SC. Apaixonado por Fernando Pessoa. Feminista assumido. Formado em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), editor do blog Tabacaria, responsável pelo projeto Blog Tabacaria – Essas Mulheres (série de lives no Instagram, na qual entrevista mulheres escritoras dentre outras profissões). Ao lado da escritora e editora Telma R. Ventura, organizou a coletânea Ler Faz Crescer (Editora Voz de Mulher, 2021). Participou, como convidado, do e-book Geograficidade e Literatura: I Concurso Literário de Antologias Geoliterárias (Editora Pé de Jambo, 2021) e da coletânea Miçangas: um tributo a Rejane Aquino (Mondrogo, 2021). Escreve na coluna “Essas Mulheres”, no blog Feminário Conexões - https://feminarioconexoes.blogspot.com/ e-mail: sidneif@gmail.com Facebook: Sidnei Manoel Ferreira Instagram: @sidnei_manoelferreira Twitter: @SidneiManoelFer


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: O PERFIL FEMININO NOS CONTOS DE FADAS, POR RILNETE MELO

 


N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|02

O PERFIL FEMININO NOS CONTOS DE FADAS 

Desde pequenina sempre gostei do universo literário, amava   ouvir, e quando alfabetizada gostava de ler os contos de fadas. Ficava encantada com aquele mundo mágico, e viajava com os clássicos de Perrault e dos irmãos Grimm, onde a fantasia rolava solta, mas rolava solto também na minha instigante meninice, um sentimento de piedade pela figura feminina. As vezes em meus pensamentos pueris eu me questionava; Por que a Cinderela, a Bela Adormecida, a Branca de Neve e muitas outras princesas, tinham sempre que sofrer? Só porque eram meninas?

Ah! Essas narrativas fantasiosas! Elas simplesmente reproduziram para as nossas crianças os estereótipos femininos impostos pela sociedade patriarcal, subsidiando a supremacia do homem sobre a mulher, criando nas inocentes cabecinhas uma atmosfera de subserviência feminina, condicionando os pequeninos a assumirem comportamentos e papéis tidos como corretos... Ou politicamente corretos? ...Sei lá!

O que eu nunca entendi é porque, a figura do homem nos contos de fadas, é sempre super heroica, sempre forte, linda e corajosa, uma figura capaz de trazer libertação e o famoso “Felizes para sempre”. Foi ouvindo e lendo os contos de fadas que, por alguns anos, dei abrigo aos modelos femininos, que eu acreditava que deveria seguir.  Por vezes cheguei a me imaginar sendo a Cinderela, aquela figura dócil, submissa, prendada e virtuosa. Encantava-me por aquela princesa, incapaz de ter comportamentos rebeldes. Acreditava que para ser feliz, a mulher necessitava ser passiva e esperar a fada madrinha (destino, sorte, forças externas) lhe guiar até o seu príncipe, que seria a sua tábua de salvação, a sua libertação.

Ledo engano! Perfil bloqueado 🚫

Cresci, e através das minhas vivências e experiências sociais e culturais, desmistifiquei a varinha mágica da fada madrinha, desfiz enganos, livrei-me dos mitos, ressignifiquei o mágico mundo punitivo e restritivo, imbuído nos clássicos infantis.  

Vigiai mulheres/princesas! Saiam do reduto!

Não sejamos Branca de Neve monitorada por sete anões, esperando o príncipe encantado.  Não sejamos a Bela adormecida, num estado de letargia emocional e social ou a Gata borralheira esquentando a barriga no fogão. O terceiro milênio exige que estejamos sempre na defensiva, de olhos bem abertos, pois o príncipe virou sapo e anda dando no nosso saco. O feitiço? ah!  Esse só se desfaz com nossa pretenciosa e audaciosa magia de ser bruxa, à frente do nosso tempo.

Em “Mulheres que correm com os lobos” de Clarissa Pinkola Estés, ela aborda essa desmistificação do mito e do conto de fadas e traz essa restauração da psique feminina, deturpada pelos contos de fadas. Estamos sempre fugindo dos lobos, né isso? Nessa sociedade patriarcal violenta, somos a representatividade do chapeuzinho vermelho.  Através do livro de Clarissa Pinkola, é possível ver a mulher emergindo do condicionamento cultural e transformando-se em lobas corajosas e empoderadas.  Eu recomendo!

Se faz necessário uma análise desses elementos que deturpam a mente das nossas crianças,  pois eles residem em uma realidade humana arquetípica, onde se constitui oponentes comportamentos entre os seres humanos, ou seja, a figura masculina é sempre dominante e a feminina passiva ou recalcada, tais determinantes estão bem longe da igualdade de gênero,  da igualdade social e política, tão almejada por nós mulheres, e que ao meu ver, seria o ápice que  levaria ao desenvolvimento em todas as esferas da sociedade. Em meio a esse machismo orquestrado por esse (des)governo nefasto e fascista, temos que reagir, lutar e levantar a bandeira do feminismo, para que não possamos cair em alguma página dos clássicos contos de fadas.

E por falar em luta, feminismo e conto de fadas, lembrei-me de um fato que me aconteceu certa vez. Estava eu e uma amiga em um café num shopping, em uma conversa bem informal, de repente ela me pergunta:  Rilnete, você é feminista?  E claramente respondi; Sou! Por quê? Você, não é?  Ela timidamente respondeu; ah! Sou muito ligada no tradicionalismo, tudo certinho, sabe. Como assim colega? Você é conservadora?  Não luta por seus direitos? Você não gostaria de ter um salário justo e equitativo? Não gosta de fazer suas escolhas com relação às suas roupas e seu corpo?... E claro, lógico que a resposta foi afirmativa!  Ela corou, abriu a boca em gesto de espanto e falou: Meus Deus! Descobri nesse momento que sou feminista!

Perfil desbloqueado com sucesso

Algumas pessoas ainda tem uma visão equivocada sobre o feminismo, acreditam  que ser feminista é ser  agressiva, ter aversão a homem, querer ser superior ... E por aí vai!

O feminismo é plural gente! A luta é de todos, todas e todes! Feminismo favorece homens,  mulheres,  trans, e independe de orientação sexual , pois  o feminismo discute gênero, classe, raça e  sexualidade. Não se trata de  uma ideologia, é uma luta, uma análise, uma desconstrução. 

Me descobri feminista desde que fui molestada por um padre aos 9 anos de idade, claro que sempre foi na linha do feminismo branco, mas de "Menina Capricorniana virei “Mulher Leão” e sai brigando por meus direitos, por minhas escolhas e pelas dores que não eram só minhas. Através da poesia, das crônicas e dos textos, mergulhei fundo nas minhas inquietações femininas. Sempre repudiei o conservadorismo e o comportamento ilibado, regido por padrões machistas, então tomei como verdade que o feminismo é só um movimento em defesa da igualdade de gênero, contra os comportamentos misóginos, simplesmente uma luta em prol de todas/os/es.Trata-se apenas de um desejo emancipatório, de uma fuga desse arquétipo, desse perfil de boa donzela, exaustivamente replicado desde os famosos e clássicos contos de fadas.

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Rilnete Melo
Foto do arquivo pessoal

Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|11: PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA, POR ISAAC RAMOS



ELES LEEM ELAS|11

PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA 

ISAAC RAMOS 

Banzeiro Manso é uma sinfonia poética amazônica em versos, a ser acompanhada em todos os atos. Em todos cantos. Marta Cortezão no seu livro de estreia revela um mundo (o da poesia) e desvela outro (o do poema). Liturgia e epifania da palavra poética em estado de devir. Desde o título, um paradoxo que não se resolve (e se resolvesse não seria paradoxo). Orbita o leitor em uma espiral que o leva no meio do banzeiro e do qual ele não mais quer sair. E por que quereria? É como se esse estivesse sendo atraído pelo canto de Iara: “Não tardes, Iara, tenho vazios / carentes de tua suave e rouca voz...”.

Banzeiro Manso está à venda no site da editora Porto de Lenha

A viagem poética segue a bússola do fio da existência em que o prumo da poesia se apresenta em “(Re)mansos (di)versos” e “(Re)manso (re)versos”, nas duas primeiras partes do livro. O leitor, alegre aprendiz, vai destecendo o imaginário e vê que “A cada descortesia, / menos poesia. / A cada tropeço, / menos apreço. / A cada descaso, / por um fio o nosso caso”. E baila ao ritmo de uma “Valsa para Eros”: “Teus passos cegos / me vigiam. /Teus olhos passeiam / minha alma”. Entre um passo e outro encontra metáforas suspensas na banzeira página e descobre que o bicho-da-seda “aprendeu com a dor da solidão/ que a desventura também alimenta a crisálida”.

Antes mesmo que a valsa acabe surge a sensualidade em um vestido preto, justo, no corpo adornado por uma metonímia assustada: “Ele chegou com olhos / de tigre faminto / pisando mansinho / em meus confusos labirintos”. Mas o concerto poético não pode parar e de forma irreverente o amor, em novo figurino, surge em tons de jeans: “Aluga-se um coração plangente / cômodo, amplo, ardente. / Aspecto terno e sedutor / com vistas a um louco amor”. Enternecido, os olhos do leitor se voltam para o rodopio do verso e é seduzido por nova cadência rítmica. E degusta uma metáfora sinestésica: “Para ser pétala / longo é o caminhar. / Para saborear o néctar / há que saber-se despetalar”.

A arte da capa é do multiartista tefeense Elvis Braga

A contradição – eterna companheira da poesia – não poderia faltar, sobretudo quando tão bem empregada: “Se nosso amor é tão sólido / por que me escorre pelos dedos?”. Eis o mistério do verso. Há mais poesia entre o céu e a terra do que supõe qualquer dilema shakespeariano. E como não ficar embriagado pelo humor refinado de Marta Cortezão, em versos como estes?: “Pouco riso, / menos siso?”.

A celebração da palavra é um capítulo à parte dessa poética sinfonia amazônica: “Quando a poesia cala, / a Alma verseja e fala: / o poeta versos afina/ ao compasso da Lira”. (Ao fundo, ouço Piaf cantando “Mon Dieu”). Faço uma pausa para que a lágrima escorra. E me emociono diante da sinestesia que parte de uma metáfora e chega à condição de “Poesia aquarela”: “Mundo-vivo e Poesia. / Tudo soa, tudo voa! / Letras, palavras, tintas, gotas.../ Tudo grita, tudo ecoa!”. O concerto não pode mesmo parar. E por que pararia? Ainda há muitas páginas para ouvir e apreciar.

Foto de uma atividade virtual do projeto de Literatura Amazonense, realizado pela Professora Andrea Dore, juntamente com os discentes do Instituto Denizard Rivail, Manaus, em 2018.

Em dado momento o tom muda em Banzeiro Manso, para que o leitor reflita. (Na vitrola, Piaf canta “Non, je ne regrette rien” (Não, não me arrependo de nada). Seguem os versos: “A sociedade de mim se burla: / "Maria Vai-com-as-outras"! / Melhor seria se soubesse / o caminho de Maria quando / engajada com as Outras”. Qual Marta ouvir: a poeta ou a mulher? Não importa. O importante é que exale a poesia. Nada melhor que velejar por um tema clássico: “Lua odalisca / Baile faceiro / Lua fetiche / Compasso brejeiro / (...) Lua alvorada / Tez avelã / Lua namorada / Boca romã”. A partitura segue com sua pintura.

Hora de falar sobre o existencialismo. Uma corrente filosófica que surgiu em meados do século XX, mas que está presente na literatura desde há muito tempo. Basta ler Camões, Fernando Pessoa, Manoel de Barros e outros autores. Mas, em Banzeiro Manso... (Nesse momento, ouço notas de “C’est la vie”, em um concerto de Emerson, Lake & Palmer, em Montreal. Seguro uma lágrima que teima em cair). E passo aos versos de Marta:


Ser casulo

para entender-se

no silêncio do Ser.



Em 13/OUT/2019, projeto de iniciação científica aprovado em edital do PCE/Fapeam. "BANZEIRO MANSO: RESGATANDO O DIALETO AMAZÔNICO" analisou a poesia da poeta @martacortezaopoeta. Fotos divulgadas pelo idealizador do projeto, prof. Onison Lopes.

Após esse sopro poético, posso falar das duas últimas partes de Banzeiro Manso. Elas mostram uma poeta plugada em sua terra e a poesia que daí advém é capaz de surpreender qualquer leitor desavisado. Entramos em um “Banzeiro (re)manso(so)”, do qual não mais desejamos sair. Trata-se de uma poética elevada e que justifica, plenamente, o título do livro e a condição de poeta amazônica, por excelência. São tantas as passagens que, se eu fosse você, parava de ler o prefácio e ia direto para os textos...

Muito bem. Se você resolveu continuar a leitura desse prefácio, então é preciso conhecer a “Essência”:

Sou do Norte, terra de caboclo forte,

que toma açaí, come piracuí,

bodó assado e jaraqui,

pirarucu com chibé,

tucumã com café,

que faz paneiro com cipó de ambé

(...)

Eita vidão!

(...)

No rio de minha imaginação...

De forma serelepe, a menina poeta brinca com operações da (ma)temática do amor: “Mais amor e menos rancor. / Menos ter e mais querer / Mais poesia e açaí com farinha! / Menos ególatras e mais chocólatras. / Mais gratidão e pé no chão, / menos idiotas e mais jabá com farofa!”. Não é preciso ser do Norte para entender a poética do encanto e do espanto. A linguagem da poesia é universal e ressemantizável.

No virar de páginas, a menina toma corpo e debuta em versos eivados de “Memórias”, em diálogo existencial com Castro Alves:


Infância de águas

guardada no baú

das memórias... São

espumas flutuantes

de meu porto seguro.


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Quando o leitor pensa que nada mais poderá aprender com Marta Cortezão, ele recebe “Tenras lições”: “E aquela cunhatã reza baixinho / uma ave-maria pela doce lição, / abre os ternos olhos de mansinho, / vê deslizando no rio aquele regatão”. Após um saudoso fado, chega o momento de “Súplica a Iara”, a divindade das águas, que hipnotiza o leitor e o leva para o meio do Banzeiro manso: “Leva- me contigo, Iara! / Cansei deste mundo raso. / Prefiro teu mundo de águas, / rio profundo, sem as mágoas / que desafinam, a miúde, meu trovar”.

É natureza do homem bater asas e viver paixões e “Sandices”. De forma bem-humorada dialoga com a canção de escárnio “Dona fea”, de João Garcia de Guilhade, do Trovadorismo português:

 

Ai, ai, D. Mucura!

Não chore, seja forte,

a vida é assim de dura!

 

A paixão ensandece,

mas a dor se cura.

Não nade contra a corrente.

Nos assuntos do coração,

é melhor ser coerente.

Amar a um colibri

é dar asas à loucura!.

(...) 

O romantismo perpassa o livro, todavia embalado como o deitar em uma rede, como o suave balanço em “Rio-Mar”: “Desejo afluir-me / em tuas águas cálidas;/ brincar, sem reservas, / no teu doce banzeiro, / manso balanço ligeiro, / onde desejo estar...”. Essa poeta cunhatã joga sua rede de versos na água da poesia e de forma trovadoresca pesca leitores em pleno dia: “Eu não desejo porfia. / Quero apenas encangar / minha canoa na tua”. E que coisa louca falar “Dos amores”! Não há como não ser fisgado: “Era jogar a isca e o anzol fisgava / ligeiro meu amor primeiro...”.

Um instante mágico está reservado à leitura do poema “Bênçãos”, dedicado à sua mãe, Nelci Cortezão, tenho convicção de que é o mais lírico do livro:

Mãe, e aquele rio, para onde corre?

Não descansa? Nunca morre?


Aquele rio corre para o Mundo...

Com a força de um moribundo

Sem pressa de chegar

mas com muitos caminhos a alcançar!

Na literatura portuguesa, o rio é um ente. Em Banzeiro Manso, é poente e insurgente de grande poesia. Os segredos são revelados nas correntezas dos versos, que embalam a rede e o enredo dos poemas em prosa, como em “Musa Iracema”: Assim se expressa: “Sou boto moço / Sou boto manso /Faço alvoroço / As águas transo”.

No meio do devaneio, ela dialoga com Almeida Garrett, poeta português. Difícil não se emocionar com “À barca bela”:

 

(...)

Por que o pranto

No rio meu, Barca bela?

Por que tão triste canto?

Só caio em esparrela!

Tu sim és feliz,

Bela barca!

Eu, de amor infeliz

E tu, amores atracas:

Tens o rio e a ela!

 

Ela é piracema

De prazeres

Ele, rio de dilema

De mil quereres!

Eu, Barca Bela,

Espuma de remanso,

Tenho as penas

E a vil bagatela

De amar-te manso,

Barca Bela!

(...)


Foto da poeta Patrícia Cacau, Áustria, 2021

Chego na Parte IV do livro, denominada “Remanso Tupeba”. Um dos momentos em que a poeta atinge as notas mais altas é na paródica “Canção Tupeba”. Gonçalves Dias, lá do céu da literatura, deve estar vibrando:

Minha terra, de palmeira, tem o zau:

piassaba, jarina, bacaba, buriti, patauá,

pupunha, babaçu, tucumã, açaí e o escambau.

Ach’é pouco lugar pra Sabiá cantar por lá!


(...)

Muitas palmeiras tem meu torrão,

que são mais dos urubus que dos Sabiás.

Permita-me Deus voltar logo pra lá!

Comer tucumã com farinha até empachar. 

(...)

E segue Marta Cortezão com seu cântico tupi, com seu cântico Tefé, com sua ode poética a dialogar com “O Canto do Piaga”, outro de Gonçalves Dias. Como um brado guerreiro, o leitor enxerga um “Exército Tupeba”: “E assim marcha um exército decidido, / sua força colossal não se dissipa, não falha. /Um povo que luta e não se dá por vencido, / porque o Tupeba é guerreiro, não foge à batalha!”. É o canto da literatura amazonense que se destaca nesses versos.

Mas não só de batalhas vive a vida, é preciso (retro)alimentar antropofagicamente a poesia, sobretudo de forma humorada, como em um “Jeito Tupeba de ser”:

(...)

Pelas ruas e calçadas da cidade,

bodó assado na brasa, às seis da tarde,

regado ao molho de pimenta murupi,

com muita farinha-ova do Uarini.

Égua, maninha! Que jeito Tupeba de ser!

(...)

Todas (ou quase todas) as divindades da poesia são invocadas em “Olimpo de saudade”, pela magistra Marta Cortezão. Depois de flertar com a mitologia grega ela (re)cria e evoca a mitologia tefeense, posto que os versos finais de forma humorada mostram “um coração tupeba / de alma sentimental”:

(...)

Tem os encantos de Apolo,

de Medeia, a loucura,

a habilidade de Diana,

de Cupido, a travessura,

a arte de Vulcano,

de Ares, a fúria,

o fogo de Prometeu,

de Édipo, a cegueira,

a musicalidade de Orfeu,

a dor de Jocasta,

a força de Hércules,

de Ícaro, a audácia

e, em especial,

um coração Tupeba

de alma sentimental!

A viagem pelo centro da terra amazônica continua em “Sangue Tapiba”: “A minha imponente Saudade / voa no melodioso canto uirapuru, / de vastos sentimentos me invade / e vai pousar em divina fonte / do majestoso crepúsculo Tupé! / Índia morena, de ledos corações, Tefé!”. É o nome de sua cidade natal. Tefeense de versos impávidos que carrega lembranças poéticas até onde parece não caber, a exemplo da personificação e a dedicação “A um taperebazeiro”: “Taperebá! Minha Tapera, / meu barco alado das belas tardes! / Adoçaste minha infância... / Quantas perebas por subir neste tronco! / Bora brincar de taperabá? / Pera um pouco, perainda / que vou perambular lembranças / e jogar conversa fora / em baixo da sombra do meu Taperabá!”. Brinca, poeta. Brinca, criança. Rebrinca, leitor. Isso ficará um brinco.

"Tomando café Nordestino em alegre companhia. Chegou meu livro Banzeiro Manso da querida escritora Marta Cortezão! Estou amando a leitura de sua poética cultural, cativante e rica de júbilo e orgulho de sua terra. Me sinto contemplada com sua seiva amazonense, íntima de seus cânticos encantados. Aguijê Kunhâ porã." Foto e texto da professora, escritora e produtora cultural Eva Potiguara.

As duas últimas canções de Banzeiro manso fecham com clave poética. Em “Furioso Cupido”, confira a inquieta e nem tanto solene brincadeira de amor:

Quando o Cupido

se zangou comigo,

me azagaiou o coração

só pra me dá uma lição.

Tive até passamento;

topei com grande tormento

que me deixou aperreado

com o corpo todo coisado

por um não-sei-quê de amor

misturado a um angu de dor!

(...)

Dei de pau no tucumã com farinha,

chega fiquei de bucho tufado,

mas voltei pra casa curado,

e mais feliz que pinto no lixo!

E do amor? Tu é leso é?!

Ando correndo disso!!! 

E chego ao último poema que, não por acaso, chama-se “Noite de visagem”. Macunaíma andou por aqui e por ali. Por ter fé, por Tefé, ao que tudo indica:

(...)

Monto mula-sem-cabeça,

proseio com a Cabeça-sem-mula

que me conta do romance com o senhor cura.

Enquanto tomamos chá de capim-santo,

mãe natureza nos afaga com doce acalanto.

Chegam as fermosas guerreiras Amazonas

para contar das extraordinárias façanhas;

dos segredos verdes do muiraquitã

e dos estranhos vícios desumanos

cuja medida do Ter nunca se enche.

Recitamos belas trovas, heroicamente,

E rimos como traquinas cunhatãs.

Em fera brava me viro,

manso Matinta suspiro!

(...)

Após a execução dos acordes finais, Banzeiro manso chega ao final de suas páginas. Exausta, à orquestra/livro a poeta se curva em agradecimento, depois se vira e entrega a batuta ao leitor. Quanto ao bis? Basta recomeçar a leitura do livro. Difícil acreditar que esse seja somente o primeiro de Marta Cortezão. É. Ela conseguiu domar o banzeiro, com um puro jeito Tupeba de ser... o Ser da poesia. Simplesmente.

Goiás, 16 de setembro de 2016.


*O texto PURO JEITO TUPEBA DE SER foi escrito para figurar no prefácio da primeira impressão do Banzeiro Manso, editado pela Porto de Lenha, em 2017. O curioso foi que o estimado professor Isaac Ramos, coincidentemente, me enviou o texto finalizado, por e-mail, justo no dia de meu aniversário, 16|SET|2016. Foi um presente muito especial! E sempre o agradeço por esta belezura de prefácio. E você gostou? Deixe seu comentário!👇👇👇

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Isaac Ramos 

Poeta e crítico literário, com diversos livros publicados. Dentre as publicações, destacam-se: Reflexões (1984); Astro por rastro (1988); Teias e Teares (2014) (poemas); A metáfora do olhar: Alberto Caeiro e Manoel de Barros (2018); Ensaios de lírica: do poema clássico ao contemporâneo (Org.) (2020) crítica e análise literária, livro impresso e e-book gratuito. Doutor e Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP). Professor permanente do PPGEL/Unemat. 2, Dez./2020. (Texto retirado da orelha do seu mais recente livro “álibi”. 

Para comprar "álibi" (Carlini&Caniato Editorial, 2022) entre em contato com o autor via Facebook e/ou Instagram

Os textos abaixo são da contracapa do livro "álibi":

“Álibi é o primeiro livro da série poética (Con)sequências líricas, que deverá abrigar mais dois volumes... Os poemas são compostos sem obrigatoriedade do uso de formas fixas e com rimas eventuais, alguns motivos são recorrentes: a embriaguez, o erotismo, a intertextualidade, alguns poemas de cunho social, tudo isso construído com recursos sonoros que evidenciam os trocadilhos, os jogos lexicais, a fragmentação das palavras, a homonímia, a homografia, a homofonia e a paronímia, num exercício constante da metalinguagem poética”

Cláudia Coelho


“Enquanto tecelão profissional de palavras (professor, escritor e palestrante), Isaac Ramos entretece uma teia saborosa, que nos apanha nos ziguezagues dos seus jogos verbais, que são, afinal, jogos entre a vida, a morte e o luxo da estética (vivencial e comunicacional).”

Pires Laranjeira

ISBN 978-65-88600-97-9

 

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