sexta-feira, 29 de agosto de 2025

FLORATTA DA PELE - CONTO DE ISA CORGOSINHO

Floratta da pele          

Por Isa Corgosinho


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Nasci com as narinas abertas ao mundo. Antes de experimentar o leite materno, já sabia seu gosto, que me entrava pelas narinas desde o ventre. Antes de começar a falar, já conhecia o alfabeto do olfato. Lembro-me que sentia vontade de chorar todas as vezes que meu pai se aproximava para me beijar o rosto. O cheiro ácido do hálito dele causava-me dissonância olfativa, perturbava-me o coração a sensação de perigo e farpas. Como se algo cruel fosse acontecer com ele antes que me tornasse adulta.

Mas essas sensações ruins duravam pouco, bastava segurar suas mãos, trazê-las próximas ao nariz: cheiravam terra fresca, úmida e fértil. Sentia-me protegida segurando aquelas mãos.  Na infância, quando sentia medo ou dor, buscava o colo materno, alçando minhas narinas até estreitá-las nas axilas quentes, suadas da minha mãe. O cheiro inspirado nutria-me de segurança e ternura.

Os melhores momentos da infância e adolescência foram aqueles vivenciados no sítio dos meus avós paternos. Tudo ali tinha cheiro próprio, individualizado. Minha avó tinha enormes canteiros de ervas, flores, leguminosas, verduras. Eu costumava ficar brincando por ali, e voltava com pequeninos buquês de ervas para presentear os adultos. O meu alfabeto olfativo escolhia o buquê de acordo com cada pessoa ou as pessoas eram escolhidas pelos temperamentos das ervas.

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A mãe era um buquê formado por lavanda, bejoim, angélica, cascara sagrada e abre-caminho. O pai era um buquê de funcho, alecrim, manjericão, espinheira santa, espada de São Jorge e pau ferro.

A avó tinha o buquê mais especial para meu olfato: o cheiro exalado por ela era de um tempo insubmisso aos relógios. Um buquê ancestral, que eu descobrira nas noites que passara acometida por febre, aconchegada em seu colo.  A avó era um buquê de jurubeba, alfazema, arruda, graviola, centelha asiática, espinheira santa, melissa e guiné. O buquê do avô, homem que falava com os bichos e sabia imitar passarinhos, era um conjunto de notas harmônicas: chapéu de couro, maracujá, salsaparrilha, graviola, hibisco, dente de leão, guiné, palo santo, espada de São Jorge e arruda.

 As primas cheiravam a buquês de folhas de frutos e ervas: carobinha, alcachofra, douradinha, pitanga, abacateiro, jabuticaba, jambolão, sete sangria, colônia, samambaia e mangueira. Os primos cheiravam a funcho, erva de bugre, parreiras, chá verde, carambola, boldo, comigo ninguém pode.

Eu, que tinha o olfato mais apurado que todos,  não conseguia sentir meu próprio cheiro. Costumava cheirar minhas toalhas, roupas, sapatos; esfregava meu nariz na pele, puxava meus cabelos até as narinas, soprava meu hálito nas mãos, mas nada sentia, não tinha cheiro. Já adolescente pedi para minha mãe descrever o meu cheiro. Ela relembrava que, quando eu era bebê, só usava talco em meu corpo quando fazia muito calor para evitar assaduras. Dizia que do meu corpo exalava essência de baunilha pela manhã, à tarde cheirava a pêssego e à noite, flor de laranjeira.

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Depois que cresci, dizia ela, exalo ora sândalo ora limão siciliano por onde passo, mas eu não consigo senti-los. Peguei o hábito de carregar na bolsa óleos essenciais dessas fragrâncias para me sentir perfumada e esquecer a pele inodora. Como não sentia meu cheiro, resolvi criar minhas próprias fragrâncias:  Flor de íris e petúnia, maravilha (Mirabilis jalapa), jasmim manga. Assim, à medida que me tornava adulta, ia compondo os meus cheiros, odores.

O pequeno sítio dos meus avós, que ficava dentro de uma grande área quilombola, era nossa segunda casa. Todo ano passávamos parte das férias, Natal e Ano Novo no sítio, precisávamos aproveitar a companhia deles.  Eu, mais que qualquer outra pessoa, amava voltar ao sítio, era uma espécie de reconexão com as fragrâncias da terra.

Até então não conhecia o odor da violência, mas ele estava sempre soprando naquela região. Ali havia muitos conflitos, principalmente com a polícia, os grileiros e os capangas dos fazendeiros, todos eles cobiçosos pelo minério no subsolo do quilombo.

A boa notícia de fim de ano era a entrega das escrituras definitivas aos cidadãos  quilombolas. Meus avós faziam parte dessa comunidade. Entre eles, havia uma espécie de escambo com os produtos que cada família produzia, por isso raramente dependiam dos produtos da cidade. O que sobrava do escambo era vendido nas feiras. As ervas da avó perfumavam tudo ao redor. Levavam perfume e cura às feridas abertas pelo gás carbônico na atmosfera das cidades.

Na semana seguinte à entrega das escrituras, as famílias organizaram uma grande festa com música, muita comida e alegria abundante. Tinha até fogueira, assamos milho, batata doce. Era época de lua cheia, e brincamos à luz da lua até cansar!  As crianças e os mais velhos foram dormir logo depois da ceia coletiva, e os demais ficaram ali tocando, cantando, dançando e bebendo.

Fomos acordados antes de raiar o dia com os gritos das mulheres.  Capangas haviam invadido o terreiro do quilombo e atirado covardemente contra os homens em festa! Meu pai foi ferido superficialmente no ombro e na perna, mas meu avô tombou sem vida. A polícia e os bombeiros tardaram a chegar, resultando em mais vítimas.

Além das mortes de muitos quilombolas, as patas dos animais destruíram tudo que encontraram pela frente. Fiquei imobilizada quando senti o cheiro dos excrementos dos cavalos sobre as plantações.  Galoparam em desatino com a ferocidade das cargas em seus dorsos, submetidos à selvageria da invasão.

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     Meu olfato me levou às imagens: os olhares amedrontados, desesperados dos animais estavam impressos no fedor de suas fezes. Abri um parêntese e pensei com a convicção do meu olfato: só um ser de extraordinária grandeza poderia ter criado um animal com a potência de um cavalo, com o sentimento incondicionalmente amoroso de um cão e a intuição afiada de um gato. Pensei e arrematei: a dívida com a cavalaria era inafiançável. O ar entorpecido do quilombo devastado cheirava a enxofre. Os capangas haviam deixado um rastro de metilmercaptano, capaz de adoecer o olfato do mundo.  

A persistência desse odor, impregnado em nossa memória, nutriu a nossa geração na luta para punir os assassinos. Alguns mandantes continuam impunes, mas os capangas estão secando moribundos nas ferragens da prisão. O cheiro de sangue nas roupas do meu pai adoeceu por muito tempo o meu olfato. Confeccionei um pequeno patuá com as ervas de sua alma: a espinheira santa, a espada de São Jorge e o pau ferro ficariam junto ao seu peito, para que ele se curasse do trauma, das maldades e feridas do chumbo.

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Cobrimos o corpo do meu avô no caixão com as flores do seu buquê, aquele que eu havia composto para ele. Mas tinha um cheiro que repercutia suas notas em nossas narinas, exalava de uma madeira sagrada peruana:  meu avô nos mandava dizer que seu períspirito estava envolto pela atmosfera do Palo Santo. Essa fragrância dos xamãs acalmara nossos corações.

O quilombo nunca se recuperou  completamente da tragédia. Levamos nossa avó para morar conosco na cidade. Fiz para ela um pequeno canteiro com as ervas do seu buquê, em jardineiras na varanda.  Mesmo triste, minha avó trouxe alegria à nossa casa.

Aos 35 anos me apaixonei pra valer, a paixão viera como um torvelinho. Meu corpo envaidecido transpirava a vitalidade dos hormônios. Enfim, minha pele exalava uma fragrância tão especial e envolvente que a batizei floratta!

E com esse poema olfativo dou boas-vindas ao amor.

 

Floratta da pele

 

Com o nariz percebi no rebanho _ imemorial savana _

que existe um homem diferente de outro

Com ele te farejo nas suadas aglomerações das metrópoles

cada homem tem um cheiro que se distingue dos outros

 

Eu corria seguindo suas pistas

estepes cavernas florestas montanhas

cidades motéis mares hospitais

cinemas bibliotecas bares becos

asfaltos ruas jardins

 

Os cheiros aspergidos pelas estações

logo dizem sem equívocos

aquele que interessa tocar

 

Outono inverno verão

Eis que o encontro

PRIMAVERA!

ele havia me chamado

com seu cheiro

no meio de todos

os cheiros

ouço seu sôfrego chamado de amor

com o nariz consigo

aspirá-lo inteiro!

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Arquivo da autora

ISA CORGOSINHO é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024), Eros e Thanatos em Plenos Pecados (TAUP,2025). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

ATÉ OS CONFINS DA TERRA, CONTO DE SANDRA GODINHO

                        Até os confins da terra

                                        Por Sandra Godinho


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Nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas de como se partia dela.

Éramos nós que fazíamos o trabalho do qual muitos nutriam asco. Não era sujo, como alegavam, mas imprescindível. Aguardávamos a total imobilidade dos movimentos, os últimos estertores, a cessação do sangue e de todo o complexo de imunidade que carregavam em vida para os micróbios poderem atuar, os primeiros a surgir com prerrogativas autônomas.

As bactérias das vísceras entravam logo em ação, formando gases, fazendo as entranhas incharem para decompor o que até então tinha sido vida, um passo por vez. A cada etapa, o odor nauseabundo, exageradamente adocicado, liberado pelo morto, encurtava os limites entre os seres, entre o que é e o que já não é mais, atraindo as moscas varejeiras, as próximas a chegar para o banquete indigesto, fazendo brotar delicadezas que poucos viam, devolvendo o finado ao corpo sólido que sempre o sustentou, a terra.

Assim a sombra da saudade descia, fazendo perder os traços de rispidez de alguém que, em vida, era só rezingues, destratos e descasos. Desse modo, carne e pó se misturavam e o tempo entrava em outro tempo, quando o solo podia conversar em intimidades com aquele que lhe pisou por anos. Perdia-se, do corpo, as palavras frias, a expressão de severidade, as rusgas e as reminiscências ressentidas. Podia mesmo afirmar que era, com nosso auxílio, que um morto ganhava ares de santidade, procedendo à passagem despudorada de um mundo ao outro.


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As bactérias sempre foram agentes atuantes, nunca recusavam trabalho ou esforço. Dos intestinos, passavam aos tecidos circundantes, fígado e baço, não tanto pelas enzimas abundantes nestes órgãos, mas porque era preciso devorar de dentro para fora, do âmago para a superfície, das vísceras até a pele para um trabalho bem feito. A pele sempre foi casca, um invólucro banal, já os órgãos eram o cerne, sintetizadores da miséria humana, o amargor de uma existência..


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Coração e cérebro forneciam maior quantidade de água para os ovos recém-postos das moscas varejeiras que, em breve, eclodiam em larvas para, em seguida, digerirem pele e veias em ritmo cadenciado, liquefazendo os tecidos que acabavam escapando pelos orifícios do corpo. O finado ia ganhando um tom multicor, a palidez extrema passando ao esverdeado e, em seguida, ao acinzentado, um arco-íris de cores pré-determinadas. Um corpo morto era pleno de vida, inchando, inchando sempre, ganhando volume, com as larvas virando novas moscas, as novas moscas originando novas larvas que atraíam besouros, ácaros, formigas, vespas, aranhas, pássaros e urubus; um trabalho coletivo onde cada espécie visitava e despia o corpo um pouco mais, em verdadeiro processo de purga e despedida até chegar a vez dos animais mais complexos. Não havia hierarquia a ser respeitada. Era o caos. Mas é sempre o caos em terra devassada, não é verdade? Todos querem o melhor naco de carne, o maior pedaço, e ninguém se entende.

*** 

  Não vai botar fogo no corpo?

− Pra quê?

− É um Yanomami, vc sabe que eles costumam incinerar o corpo para passar para o mundo dos mortos.

− Tá me achando com cara de despachante, arigó?

− Tô não, senhor. É que ...

− Além do mais, fazer fumaça nessa clareira é entregar nossa localização. Tu quer ser preso, por acaso?

− Não, senhor.

− Então pega a pá e me ajuda a cavar que a fedentina tá insuportável. O que importa é que esse aqui não vai mais dar trabalho pra gente. Vamos sair desse buraco com os bolsos cheios de ouro e sem yanomami pra atrapalhar.

− O infeliz deve ter morrido de desnutrição, tão magrinho que faz pena.

− Ou contaminado de mercúrio, ou de malária. Que importância tem isso agora, arigó? Faz logo o que tem de fazer e cala a boca, senão te encho de porrada e você acaba como ele.

***

Era verdade: nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas de como se partia dela.


 Obs: Este conto integra o livro de contos "O negro Secou", publicado pela editora Litteralux e foi menção honrosa no prêmio Cidade de Manaus 2024.

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Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

domingo, 17 de agosto de 2025

FERAS SOLTAS, DE LULIH ROJANSKI

ENTRE FERAS E SILÊNCIOS

Por Marta Cortezão

Arquivo da autora
Lulih Rojanski nasceu no Paraná. É descendente de imigrantes poloneses que vieram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX e tiveram a sorte de escapar do Holocausto. Em 1984, migrou para a Amazônia e esqueceu-se do caminho de volta. Era muita estrada para esconder as migalhas de pão. Graduou-se em Letras, habilitou-se em Língua Portuguesa e Literatura. Trabalha em sala de aula há 28 anos. Há mais de 30 escreve contos e crônicas que desde o princípio foram publicados em diversas coletâneas. No Estado onde vive, o Amapá, a autora se destaca pela participação de sua obra em provas de concursos públicos e pelo alcance de sua escrita, que tem feito parte de antologias nacionais e binacionais (Brasil/Portugal). Seus primeiros livros: Lugar da Chuva (crônicas), Abilash (conto). Pérolas ao Sol (crônicas) e Gatos Pingados (contos) foram publicados pela Escrituras Editora (SP). Feras Soltas é seu primeiro romance publicado, o segundo é Amores enterrados no jardim (2025).

Arquivo da autora
O romance Feras Soltas, de Lulih Rojanski, nos conduz ao universo denso e claustrofóbico de Manuela, uma mulher adulta atravessada por seus traumas. Jornalista e revisora em home office para “um jornal semanal subsidiado pelo governo, que circula na capital” do “País”, ela se encontra encerrada em sua jaula. O silêncio que a cerca é mais do que ausência de som: é prisão, é cicatriz, é trincheira. O romance mergulha profundamente nas consequências da violência, da culpa e do isolamento, sustentando uma tensão psicológica que perdura até a última página.

Desde muito jovem, entre 20 e 23 anos, assumiu responsabilidades imensas, sobretudo cuidar do irmão mais velho, Bonifácio, com esquizofrenia acentuada. Mantém-se à tona com seis comprimidos diários de psicotrópicos, respaldados por laudo médico “floreado” que aponta fobia social, depressão severa e “uma agressividade ameaçadora”. O cenário de sua vida é a casa herdada dos pais, Amália e Olavo, dividida com o marido, o americano Samuel e Boni. Entre eles, o vínculo parece ser frágil, sustentado pela necessidade de manter o irmão sob cuidados e por um pacto tácito de não se aprofundar nos abismos alheios.


Três vozes, três labirintos

O enredo se estrutura em três partes, narradas por vozes distintas – Manuela, Sam e Boni –, cada um com sua cadência própria, seu recorte de mundo. A voz de Boni, em especial, flui sem pontuação, no fluxo bruto de quem vê e sente com uma lógica própria.

O romance é atravessado por segredos que resistem a vir à tona: Manuela se fecha nos traumas; Sam carrega o inconfessável; e a esquizofrenia de Boni opera não só como condição clínica, mas também como metáfora da realidade familiar fragmentada e de seu desejo de liberdade, de voltar a ser “fera solta no mundo". A narrativa explora, com intensa carga psicológica, os limites da culpa, do trauma e do isolamento – este, segundo Manuela, imposto pelo estigma da esquizofrenia de Boni, pela descoberta do passado tenebroso de Sam e, por fim, intensificado pela pandemia da covid-19. O entrelaçamento dessas perspectivas vai desmontando, peça a peça, o quebra-cabeça de silêncios que sustenta a história.


Arquivo da autora
dragões de primavera’: bússola simbólica

Entre as camadas do romance, destaca-se a simbologia dos “dragões de primavera” como metáfora para a transformação desejada por Manuela: sair do adormecimento emocional e reencontrar o impulso vital. A epígrafe de Hilda Hilst já antecipa essa busca por redenção:

Pai, este é um tempo de espera. / Ouço que é preciso esperar / Uns nítidos dragões de primavera, / mas à minha porta eles viveram sempre, / Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Na primeira parte do livro, em forma de diário com certas lacunas de tempo, Manuela revela o peso do corpo marcado por traumas e espera por forças renovadoras que nunca chegam: os "dragões de primavera" que aplacariam as tempestades. Ela encontra certo alívio no solo e na chuva, tentando dissolver-se “em húmus e barro”, enquanto o passado insiste em assombrá-la.  Sam recorda que a origem desse mito íntimo vem da voz de Amália, mãe de Manuela e Boni:

Foi ela a responsável por sua crença de que os pequenos lagartos que ocorrem pelo jardim são descendentes dos Zmey Gorynych, dragões Zmey sérvio, em particular, que era bondoso e tinha o poder de afastar as tempestades. Ver Manuela deitada no gramado sempre foi comum, mas nunca pude compreender que tenha continuado a gostar dos lagartos, mesmo depois de cada tormenta, cujos efeitos poder nenhum foi capaz de aplacar (p. 117).


Não há dragões nem primaveras

É no diário de Manuela que se encontram as passagens mais cortantes. Sua infância, marcada por abusos cometidos pelo pai, é descrita com imagens potentes. A origem de suas cicatrizes remonta aos oito anos, quando começa a sofrer abusos do pai, Olavo:

Quando o pai me puxa pelos braços e me põe sentada sobre suas pernas, distraindo-me com os pequenos dragões que sobem nas árvores – e sua mão, como uma aranha grande e fria, se arrasta para o interior de minhas pernas infantes – o passado ainda é passado, mas se refugia, inatingível, na profusão de tudo o que se nove na escuridão (p.14).

Os abusos continuam até a adolescência, no desamparo da noite e no medo da jovem que se sente excluída, suja e desacreditada de um deus que não a escuta, não vem em seu socorro, não existe. Essas lembranças, porém, não são narradas de forma linear, mas como fragmentos que retornam de modo imprevisível, tal como na mente de quem sobreviveu a traumas. O silêncio, o medo e a sensação de abandono se erguem então como paredes intransponíveis:

Eu tinha medo de dormir, depois de haver tantas vezes acordado no meio da noite com a aranha grande e pesada passeando por meu corpo. Não tomava banho nua porque o banheiro da casa era vulnerável, e desde os oito anos eu sabia que os mesmos olhos de coiote passeavam pelas frestas. Tinha medo também de gritar por mamãe e abrir em seu coração uma ferida tão grande que nunca mais viesse a se fechar. (p.44)

Minha pele não deixa esquecer a violência silenciosa das investidas das mãos que a usurparam. E lhe impingiram nódoas profundas. Tão profundas que pressinto lacerações nos órgãos internos (p.87).

A imagem pública do “pai de família” oculta o machista, misógino e abusador que corrói silenciosamente o lar. Por trás da fachada respeitável, Olavo instala o medo, a vergonha e o silêncio que aprisionam Manuela desde a infância. A partir desse núcleo de violência, sua vida passa a se organizar entre afastamentos forçados, responsabilidades precoces e breves tentativas de respiro.


Do refúgio às desilusões

Em Nélson, amigo de Boni (namorado de Lili), a jovem Manuela encontra um breve refúgio, mas que se evapora muito rapidamente deixando também cicatrizes profundas e o sabor amargo da desilusão:

Na última tarde em que veio à nossa casa, Boni não abriu a janela para se despedir, mesmo sabendo que o amigo ia para outro país, e eu ainda não sabia o que havia se passado ao aceitar seus beijos de despedida.

Nélson estava distante e lacônico, cheguei a ter a ilusão de que fosse a dor da separação. Só depois que se foi, entendi que era vergonha. Na despedida, disse-me apenas que a vida era ainda muito nova em nossas mãos para sabermos o que fazer com ela (p.46).

Não é Manuela que nos revela o motivo da “vergonha” de Nélson, mas Boni quando expressa o desejo de voltar no tempo e dizer que sabe que foi traído pelo próprio amigo:

eu fui enganado pelos caçadores de feras que me faziam ver coisas medonhas eu fui na rua no meio da tormenta e vi as criancinhas mortas debaixo do jacarandá caído vi os lagartinhos do quintal virando dragões que engoliam a Mana vi o Nélson rodopiando com a Lili no cinema beijando a Lili atrás de uma névoa de cigarro fininho onde já se viu meu melhor amigo roubar minha namorada (p.155).


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O colapso familiar e o peso

O diagnóstico de Boni abala profundamente Amália, que, juntamente com o pai, depositava nele todas as expectativas de sucesso. Manuela carrega, assim, não apenas a responsabilidade prática dos cuidados, mas também a sombra de não ser reconhecida como alguém em que não vale apostar:

A família não era mais um fiapo do que havia sido, segundo Manuela, em seus desabafos. Bonifácio seria “o grande homem da família”. Quando me contou sobre o sonho dos pais, Manuela sentia-se amargurada. Não porque não teriam mais um grande homem na família, mas porque nunca apostaram que ela poderia ser uma grande mulher (Parte II, p.111).

Boni, por sua vez, expõe, a seu modo, a pressão sofrida por parte do pai e a rivalidade velada que se estabelecia entre os irmãos por meio de uma educação sexista:

O pai não gostava de mim que nem a mãe que passava a mão na testa e no cabelo o pai olhava de cara feia quando eu deitava no colo da mãe dizia moleque mimado olhava de cara feia quando eu tinha medo de cachorro do tio e quando eu pedia para a mãe deixar a luz acesa a cara do pai era sempre feia não podia correr e abraçar não podia chorar não podia ficar com febre nem com dor de barriga não podia brincar com menina assistir filme de amor novela na televisão só a Mana que podia a Mana podia faltar na escola podia comer a moela e a coxa podia até matar gato que ninguém falava nada nem tinha cara feia pra ela (p. 152).

Marcada por essa conturbada relação com a família – e sobretudo pela figura de Olavo –, Manuela procura, em alguns momentos, escapar ao peso do passado. A viagem com um grupo de hippies surge então como tentativa de suspender os traumas, um movimento de busca por liberdade e de ensaio para uma vida possível fora do círculo opressor da casa. Esses lampejos de autonomia para além do medo oferecem-lhe um raro respiro, como ela mesma reconhece ao recordar a experiência:

Sinto saudade do tempo que passei com os hippies anacrônicos e fui hippie também. Foi um ano que me colocou no eixo da vida, um tempo em que comecei a descobrir quem era a pessoa por baixo da casca, e pela primeira vez não tive medo de ser eu mesma. Nenhuma pílula psicotrópica fazia parte da minha rotina. Mas tive que voltar para casa porque a família não podia ficar tanto tempo sem reforço para cuidar de Boni (p. 66).

Na universidade, Manuela conhece Sam, e os dois vão se aproximando cada vez mais. No entanto, o retorno à casa traz grandes problemas. É pela narrativa de Sam que percebemos a coragem de Manuela ao contar à mãe sobre os abusos praticados pelo pai, ainda que Sam não soubesse nada sobre o assunto. Nesse mesmo dia, Amália sofre um enfarto fulminante.

A convivência com o pai torna-se insuportável: Manuela o odeia e deseja que ele morra, lembrando também de quando, criança, desejou a morte de um gato que acabou falecendo. Todo esse peso de culpa a acompanha em todos os momentos, inclusive quando chega a desejar a morte de Nélson. Mesmo após o falecimento do pai, um ano depois da mãe, a culpa permanece, silenciosa e insistente, como sombra que se recusa a deixá-la.


Ruptura: a fuga de Boni

No 60º dia da narrativa de Manuela, é a fuga de Boni que rompe a rotina e obriga as personagens a enfrentar seus medos adormecidos. Esse acontecimento quase desestabiliza a protagonista por completo, mesmo com suas pílulas de psicotrópicos em dia. Esse estalo emocional de Manuela é visto com espanto por Sam:

Sam estranha me ver socando as próprias pernas. “O que é isso?”, pergunta, e no seu rosto há o espanto de ter reconhecido sinais da mulher adormecida. Ajeito o vestido em desalinho, enxugo as lágrimas que penso haver derramado, mas meu rosto está seco e os olhos ardem pelo esforço vão de chorar. Há quanto tempo não choro? (p.69)

Em seu diário, Sam também registra o acontecimento e o seu desejo de voltar a conviver com a Manuela passional que conheceu na época da universidade:

Foi uma pena ter-se recomposto tão rápido depois de socar as próprias pernas. Por um instante vi a Manuela passional que conheci. Minha reação ao seu impulso a intimidou, trouxe de volta a mulher contida, a mulher que escolheu deixar as emoções adormecidas no sistema límbico (p.98).

Sam vê resquícios da antiga Manuela — “uma alma atrevida” (p. 115) —, mas o que a faz ser uma mulher contida ao lado dele, ainda quando tomada pela aflição da fuga do irmão? Talvez a verdade seja que Sam nunca a tenha conhecido de fato: nem a Manuela de antes, nem a de agora.


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Pandemia: a clausura dentro da clausura

A chegada da covid-19 funciona como um espelho: o isolamento imposto pelo vírus apenas escancara uma reclusão já existente. O confinamento físico soma-se ao emocional, e o livro mergulha ainda mais fundo na introspecção. No caso de Manuela, como já mencionado, é também um escudo contra o julgamento social que teme devido à esquizofrenia de Boni, que, por sua vez, é talvez a figura mais ambígua do livro. Na voz de Boni, há tanto uma ingenuidade infantil quanto uma lucidez cortante que se deduz de suas próprias palavras:

O melhor cego é aquele que não se conforma de ser cego e tenta enxergar com os outros sentidos o que o olho não consegue eu disse isso pra Mana e ela não prestou atenção ou eu não disse só pensei quero saber o que ela acha porque o cego podia ser ela que não enxerga um palmo na frente do nariz com os olhos da cara mas podia enxergar de outro jeito se quisesse (p. 148).

O romance não se limita ao drama íntimo; ele aponta também para um descaso coletivo. A morte miserável do casal amigo de Boni, dona “Olali” (Eulália) e o marido, durante a pandemia no “País”, dá a Rojanski a oportunidade de inserir críticas diretas à negligência governamental e ao desprezo pela vida humana, como vemos no fragmento:

Os pobres clamam por auxílio do governo, há muitos desempregados, desamparados, despejados, desesperados. O presidente eleito pela maioria responde com piadas de mau gosto, nega a crise de saúde, debocha de quem lamenta a doença, minimiza o sofrimento pelas milhares de mortes e vocifera que somos um país de maricas. Quando é questionado pelo absurdo número de mortes, que coloca o País como um dos mais massacrados pela pandemia, prepara seu melhor ângulo para as câmeras e diz: “E daí? Todos vamos morrer um dia” (p.140).

Esse equilíbrio entre denúncia social e exploração psicológica das personagens é um dos pontos fortes do livro: a história não se perde em panfleto, mas também não se omite diante das violências sistêmicas.


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Sam e o cárcere da culpa

Após a fuga e a morte do casal, Manuela, Sam e Boni tentam retomar o ritmo macilento de suas vidas. Boni se agarra em suas ideias alucinógenas e suas risadas descontroladas. Manuela costura suas ideias com o medo de contrair o vírus e com o fato trágico que seria a morte de um dos três, alternando todas as possibilidades mais absurdas. Sam continua trabalhando em seu projeto arquitetônico de uma casa grande no campo, assombrado por seus demônios, com o corpo febril e uma tosse incômoda que tenta esconder de Manuela. Com medo de ter contraído o vírus, Sam decide dormir no quarto das velharias e, entre caixas e quinquilharias, ele reencontra o fio do próprio passado e se dá conta de como Manuela chegou ao seu terrível segredo:

Antes de guardar a caixa, puxo uma folha de papel cujas pontas amareladas aparecem por baixo de um maço de cartas. É uma cópia impressa do retrato falado de um foragido da justiça do condado de El Paso, no Texas, EUA, que circulou pela internet em uma época em que não havia uma câmera fotográfica na mão de cada cidadão, e provavelmente não encontraram uma única fotografia para publicar nos jornais (p. 113).

Sam, aos 19 anos, assassina a namorada Rose Mary, no Texas, e foge para o “País” onde refaz a vida ao lado de Manuela. Sua narrativa do crime revela justificativas frágeis e distorcidas e é marcada pela ausência de arrependimento:

Que crime neste mundo não é repulsivo?

...

Sim, sou culpado pela morte de Rose, mas não a teria matado se não acreditasse que havia algo diabólico em seu corpo. Quando entrou em seu quarto para dizer que ia me deixar, a primeira coisa que fiz foi trancar a porta e jogar a chave pela janela gradeada (p. 135).

A presença de Sam no romance não é apenas a de cúmplice no cuidado de Boni, mas a de outro prisioneiro — de sua própria culpa e das mentiras que sustenta para sobreviver. Essa duplicidade acrescenta tensão ao enredo, pois o silêncio que mantém com Manuela ecoa o dela, criando um pacto mórbido de não-ditos:

Nunca vou perguntar a Manuela as razões de seus estranhos hábitos. Se quisesse, teria me falado. Também não lhe falo sobre meus pesadelos (p. 116).


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O retorno dos dragões

No 64º dia, Sam é internado e, após vários dias no hospital, vem a óbito. A morte de Sam marca uma ruptura silenciosa, encerra um ciclo de silenciamentos, mas não resolve todos os nós. Narrada pela própria consciência de Sam (assombrada por Rose Mary), sua morte abre espaço para que Manuela comece a cultivar novas práticas. O luto reabre fissuras, mas é na voz de Boni que vislumbramos tais mudanças: Manuela acorda cedo, põe Angie (The Rolling Stones), assa bolo, retoma as consultas presenciais com o psicólogo, pedala, colhe frutas, prepara sopas. Esses gestos simples ganham peso simbólico, indicando que talvez os “dragões de primavera” finalmente se aproximem:

Coisa mais esquisita é essa música alta desde cedo a Mana está fazendo bolo tem um cheiro gostoso vindo da cozinha será que a Mana pensa que já é Natal será que é aniversário de um de nós? (p.156)

Essa é a música que o cachorro do Nélson ensinou ela gostar sorte que é bonita

Mana agora resolveu que toda semana vai para o psico me deixa trancado em casa só come fruta e verdura vive em cima da bicicleta pedalando parada e por baixo das árvores arrancando tangerina manga abacate (...) toma sopa cor-de-rosa roxa e suco verde diz que é pra limpar o sangue pra voltar a sentir os sentimentos pra gostar de novo do mundo e fazer nascer lágrima eu não sabia que as cenouras as couves os pepinos e os psico tinham tanto poder e depois que ela melhorar vai me levar pra passear não sei onde espero que lá tenha peixe azul (p.157).

Não é redenção plena: é movimento. Os “nítidos dragões de primavera” talvez não cheguem ruidosos; talvez cheguem pela mínima vibração do desejo de voltar a sentir.


Imagem Pinterest
Primavera à vista

Feras Soltas equilibra dureza e lirismo, conjugando trauma íntimo e crítica social. Lulih Rojanski manipula a linguagem com precisão, constrói vozes narrativas que se tensionam enquanto a imagem recorrente dos dragões organiza o romance como horizonte de metamorfose. A leitura incomoda, dilacera e, por isso mesmo, cumpre sua função: nos fazer sentir, pensar e encarar feras — as de dentro e as de fora. A força do livro está em não estetizar a violência nem oferecer soluções fáceis: prefere a verdade incômoda das feras internas, mas abre, no fim, uma fresta de ar — pequena, insistente, necessária.

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ROJANSKI, Lulih. Feras soltas. São Paulo: Patuá, 2023.


Arquivo da autora. Macapá, 2023





A chuva, como nenhum outro fenômeno, cria sensações oníricas em torno das coisas (...) Cada coisa, em seu lugar, é capaz de contar uma história sob os efeitos etéreos da chuva. Humanizam-se.

[Lulih Rojanski, em Feras Soltas]

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