MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|02
O D I A D E C Ã O
POR SANDRA A. SANTOS
As
viagens no metrô paulistano geralmente são longas e cansativas, principalmente
para quem mora na periferia. Um período de tempo em que passamos às voltas com
nossos pensamentos, dando espaço às reflexões que surgem de forma intrusa, e por
vezes deslocadas. Gente demais, com espaço de menos, e cada um isolado no seu
mundo.
O
silêncio, a alma do trem, instala-se como uma trilha sonora invisível a inundar
um cenário, onde pessoas estranhas se encontram, amontoam-se, e são forçadas a um
desconfortável grau de proximidade.
Quando
o vagão lota completamente, desequilibrar-se é impossível para quem segue viagem
em pé, pois mesmo sem segurar o corrimão, basta apoiar-se na parede hermética de
carne e ossos que involuntariamente balança na mesma onda.
Fiz
essa viagem por muitos anos e tinha dificuldades com um certo tipo de passageiro:
aquele que, estranhamente, presume que o outro queira prosear durante o
trajeto, e qualquer um serve, desde que tenha ouvidos. Concluo que talvez a
solidão incentive esse tipo de comportamento, e mesmo sem nenhum empenho de
minha parte, muitas pessoas dividiram suas vidas comigo, querendo eu ou não. Por
mim, viajaria calada na companhia dos meus pensamentos nada silenciosos, e mesmo
à contragosto, nunca neguei atenção a quem me puxasse conversa.
Antes
da febre dos smartfones, as viagens eram mais interessantes e mesmo que
praticamente ninguém se olhasse nos olhos, as pessoas ainda estavam lá. Com o
passar do tempo e com o avanço da tecnologia celular, elas migraram para um
universo paralelo onde os olhos ficam na tela, e alma sai do corpo. Entretanto,
há quem resista a essa escravidão virtual e abra um livro; eu me identifico quando
encontro outro herói da resistência.
Em
São Paulo as distâncias são imensas, e o trajeto de casa para o trabalho e do
trabalho para casa, de forma cruel nos rouba a individualidade. Mesmo assim,
insisto em amar essa cidade engolidora de gente, emprestando-lhe uma aura de
poesia que só os loucos e os poetas conseguem ver.
O
dia começara como outro qualquer, e estando eu entregue voluntariamente aos
labirintos da minha mente, fui puxada para a realidade pela figura de um homem
que, apesar de extraordinariamente comum, despertara minha atenção, fazendo com
que um arrepio gélido percorresse todo o meu corpo. Havia nele algo que estava além
de seu rosto magro e do seu aspecto sofrido: um sorriso cruel, os olhos frios e
desprovidos de brilho. Ao invés de sentar-se, parou de frente para a porta com
as pernas abertas e os braços cruzados, fitando-a como se pudesse movê-la com a
força de seu pensamento.
Passei
a observá-lo de forma mais atenta, e pressenti que viria confusão, pois ele parecia
pronto para enfrentar a turba ensandecida que entraria na estação seguinte. Aquilo
não daria certo, e ouso dizer que nada me preparou para o que aconteceu quando
a porta 28-A se abriu.
Com
um enorme salto e de braços abertos, o homem lançou-se para frente com uma fúria
terrível. Seus olhos estavam em brasa, e ele latia, rosnava e babava-se como um
cão raivoso. Eu, que nunca vira alguém
imitar um cachorro com tamanha precisão, duvidei que fosse apenas uma simulação,
pois parecia que ele havia se transformado em um animal. Para mim, aquele homem
acreditava ser um cachorro.
A
porta se fechou e ninguém entrou. Afinal, quem se atreveria a ser atacado por
um monstro feroz? Foi tudo muito rápido, surreal. A movimentação automática na
plataforma havia sido quebrada com louvor, e de forma inusitada, qualquer protocolo
de convivência social comum aos transportes coletivos, diluíra-se ao som de
latidos.
Um
silêncio mortal circulou pelo vagão, e as pessoas se entreolhavam
contorcendo-se nos acentos, e creio, que como eu, os outros passageiros foram tomados
pela surpresa e pelo medo. Olhares confusos buscavam algum tipo razoável de
explicação para o que acabávamos de testemunhar. Antecipei seus movimentos
tentando traçar uma rota de fuga, afinal talvez fosse necessário. Mantive os
olhos nele até que o infeliz me fitou diretamente, e eu por instinto, baixei
rapidamente a cabeça considerando que não se olha um predador nos olhos, a
menos que se queira enfrentá-lo.
Ele
então, calmamente descruzou os braços e passou a nos analisar, observando-nos
de forma acintosa, saboreando orgulhoso o impacto que causara. Divertindo-se às
nossas custas ele sabia que tinha o controle da situação.
-
Ceis gostaram do Toinho? - Indagou certificando-se que era ouvido.
-
Esse cão “dos inferno” é meu companheiro, e é só nele que eu confio. Não confio
em ninguém nessa cidade de loucos. Cidade de loucos sim. Eu odeio essa cidade. –
Frisou aos berros tentando ofender-nos.
-
Já passei muita fome, e até hoje não sei o que tô fazendo aqui..., nessa cidade
de merda! Cidade fedida. Eu vim pra melhorar de vida e não consegui nada. – Sua
expressão ensandecida, paulatinamente, assumia os ares de um solene discurso.
-
Cheguei novo e cheio de esperança. A cabeça cheia de sonho. Cheio de vontade de
trabalhar... E o que eu ganhei? O que eu ganhei? – Seu olhar nos atravessava e eu
imaginei que talvez fosse melhor se o ignorássemos, mas olhar para ele era
irresistível, e acho mesmo que, àquela altura, queríamos e merecíamos saber o
motivo daquilo tudo.
Quando
a voz robótica anunciou a chegada da próxima estação, o homem-cão posicionou-se
novamente em frente à porta, pronto para o momento do bote.
-
Vem Toinho, a porta vai abrir..., pega tsss tss Pega! Au uau au auuuuuuuu. –
Ele berrava, e o Toinho latia como um cão obediente, pronto a proteger seu
tutor. Dessa vez foi mais feroz e as pessoas na plataforma recuaram estonteadas.
Ninguém se arriscou a entrar, nem na porta onde ele estava, nem nas outras mais
distantes.
Impotentes,
assistimos o trem ganhar novamente os trilhos enquanto ele continuava sua
história. Sua expressão, paulatinamente se modificava, e eu notei que o ódio dava
lugar a algo mais leve que eu ainda não conseguia identificar.
-
Ceis gostam do Toinho né que eu sei? Eu também... só tenho ele! Ô cachorro
danado. Esse é fiel. Au! Auau! Cala a boca Toinho, fica quieto e me deixa falar
cachorro danado. - Ralhou com Toinho até conseguir seu silêncio canino.
-
Não vi pai nem mãe e se meus irmãos são vivos, só Deus é quem sabe. Aqui
carreguei muita areia e cimento no lombo. Nunca estudei, mas arranjei “uns rabo
de saia” e trepei e trepei gostoso... Até que sosseguei e casei. Casei não..., caguei.
Tive “uns menino” que nunca consegui sustentar direito. Nunca roubei, nunca
matei e..., o que eu ganhei? – Suas perguntas só receberam nosso profundo, e
agora, consternado silêncio.
-
O que eu ganhei? Fala caralho..., eu tô perguntando... – Silêncio mais profundo.
- Tô sem emprego, tomei uns “belo par de
chifre” e agora tô aqui com meu amigo Toinho. Agora só eu e ele... “Ceis” tão
com medo dele ou de mim? Fala com eles Toinho! – Fala pra eles que hoje a gente
saiu com vontade de morrer ou de matar... Fala pra eles que nóis num tá
brincando... Au au auauau – Lembro-me de sentir um certo alivio ao observar que
ele não parecia estar armado.
De
estação em estação, o desconhecido desabafou, o cachorro latiu e o trem seguiu
vazio.
Aquele
homem, em seu dia de fúria compartilhou sua triste história, deixando que do ódio
explodisse o choro, em um lamento doído e barulhento. Pouco a pouco, o medo deu
lugar a solidariedade e o homem-cão agora, era apenas um homem simples pedindo
socorro.
Uma
espécie de conversa de boteco mesclada a uma sessão de terapia de grupo se instalou
aos poucos, e não faltaram os mais variados conselhos para que ele seguisse sua
vida: um partilhou sua história de chifre garantindo que com o tempo, a dor passaria;
outro pregou um discurso religioso; alguém, da outra ponta do vagão, ensinou
uma simpatia para tirar o encosto; a senhorinha sentada ao meu lado, ensinou um
chá milagroso para acalmar a alma. Houve até quem brincasse com o cachorro..., se
o Toinho fosse de verdade, provavelmente ganharia um cafuné.
Fato
é que em um certo momento, alguém do outro lado do vagão gritou:
-
Eita que a porta vai abrir e o vagão vai encher! Pelo amor de Deus homem, solta
o Toinho!
Todos
riram, e arrisco a dizer que o cachorro Toinho, agora abanava a cauda alegremente.
FIM.
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Sandra A. Santos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.