 |
| Fonte da imagem: aqui |
Astrid Cabral nasceu em Manaus, AM, onde fez os primeiros estudos e integrou o movimento renovador Clube da Madrugada. Foi morar no Rio de Janeiro ainda quando adolescente. Graduada em Letras Neolatinas na atual UFRJ. Lecionou língua e literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, onde integrou a primeira turma de docentes saindo em 1965 devido ao golpe militar. Em 1968 ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago. Com a anistia, em 1988 foi reintegrada à UnB. Ao longo de sua vida profissional desempenhou os mais variados trabalhos, fora e dentro da área cultural. Detentora de importantes prêmios, participa de numerosas antologias no Brasil e no exterior. Colabora com assiduidade em jornais e revistas especializadas. Viúva do poeta Afonso Félix de Sousa, é mãe de cinco filhos. Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/astridcabral.html
A PROSA NA OBRA "ALAMEDA" DE ASTRID CABRAL
Sandra Godinho
A primeira vez que tomei conhecimento de Alameda, a
obra inaugural de Astrid Cabral publicada em 1963, foi através do meu querido e
falecido amigo José Benedito dos Santos que, sabendo que eu escrevia um romance
cujo narrador era uma árvore, deu-me o livro de presente. O efeito da escrita
da autora em mim foi devastador e indelével. Meu querido amigo me fez entender
a grandeza de Astrid e, além disso, reconhecer que era uma mulher à frente do
seu tempo.
Primeiro, porque ela deu protagonismo ao mundo
natural. Não que não houvesse outros autores que mencionassem matas e florestas.
Inferno Verde, livro de contos de Alberto Rangel publicado em 1908, e A Selva,
romance de Ferreira de Castro publicado em 1930, já mencionavam o mundo
natural, mas sempre como cenário, selvagem, inóspito e imenso. Astrid não
somente deu protagonismo ao mundo natural, mas também relacionou o mundo
natural ao humano, fazendo uma analogia à nossa própria vida. Ao personificar
grãos de feijão, laranjas, rosas, papoulas, folhas, orquídeas etc., atribuindo-lhes
características humanas, a autora fugiu do que poderia ser considerada uma
literatura regional, algo que na tradição literária sempre foi considerada
menor. Além disso, Astrid antecipa uma consciência ecológica que só tomou vulto
no Brasil em meados dos anos 1980, quando a consciência nacional sobre as questões
ambientais passou a ser levada a sério, corroborada por estudos científicos de
maior envergadura. Não fosse isso o bastante, Astrid trouxe temáticas femininas
às suas narrativas, especialmente ao tratar a terra como um “cemitério e
viveiro de sementes”, reforçando a função maternal, equiparando a terra ao
útero feminino; trata-se agora da mãe-terra e da mãe-natureza, mas não só.
Astrid, ao abordar temas como a beleza e a reprodução, e refutando-as como o
ápice das funções femininas, evidencia o ativismo feminista em suas narrativas.
Outro item que me chamou a atenção foi o título
escolhido pela autora, Alameda, que é, afinal, um caminho constituído por
árvores plantadas em fileiras. O que se intui através desta escolha é que
realmente Astrid não quis retratar a natureza selvagem, mas uma domesticada,
singularizada e culturalizada. Ao discorrer sobre esta natureza domesticada,
Astrid, por analogia, fala da nossa própria domesticação frente aos valores
impostos por nossa sociedade.
Alameda traz-nos 20 histórias triviais, singelas e
colhidas do nosso cotidiano. Através delas, Astrid faz profundas reflexões
filosóficas e psicológicas sobre nosso próprio existir. São narrativas cujos
temas tratam do ciclo da vida, da finitude e do recomeço, da provisoriedade de
tudo, da impermanência e da permanência, esta última vista sob o viés da beleza
e da reprodução.
Em Destino, por exemplo, uma plantinha se
encontra dentro de um vaso, tomando sol num canto da janela, até que um gato
descuidado a derruba, destruindo o vaso que se parte em inúmeros cacos. A
empregada recolhe os cacos, a planta e os atira pela janela. Esta plantinha,
nomeada por Astrid de “brotinho”, traz a primeira conexão com o humano/a mulher,
visto que brotinho era uma gíria da época que fazia referência a uma moça.
Temos aqui também os temas caros a Astrid, que nos remete à finitude da vida,
da morte que nos colhe ao acaso, ainda que no texto esteja presente certa
mensagem de esperança: apesar das nossas prisões, somos abençoados por
simplesmente existir. Além disso, se atentarmos para o trecho da obra: “Era o
sol que lhe punha aquelas grandes sardas douradas, o ar todo faceiro. Também a pose graciosa com que distribuíra
seus membros, já agora
multiplicados, era convenientemente adequada ao banho de sol [...] A cútis fina, queimada de tempo, engelhava-se até a queda final, que seria mansa, ao arrepio do primeiro vento”, reparamos que a verve
poética de Astrid já se faz presente nas assonâncias, aliterações, nas
metáforas, nas imagens e no ritmo das frases.
 |
| Imagem Pinterest |
No segundo conto, Arvoreta, árvore, arvoreta, é
interessante notar como Astrid, no próprio título, transmite o andar do sol
pelo céu, projetando a sombra de uma árvore, que se alonga no começo da manhã,
fica justa ao meio-dia e torna a se alongar no final da tarde. É o sol que
banha a árvore, que lhe dá luz, mas a árvore só se enxerga através da sua
sombra, sempre dentro da própria individualidade, exacerbada, orgulhosa, altiva
e iludida pelo olhar alheio. Por mais que a árvore se iluda e se ache
exuberante, será sempre prisioneira de si mesma, presa às próprias raízes. Observando
o trecho da narrativa: “Quando fazia sol, via-se fotografada ao longo da calçada, e via-se também
crescer e diminuir,
a imagem apagar e acender.
Gostava da
brincadeira de verão, a divertida
dinâmica de sua
sombra a crescer e
minguar num só dia – arvoreta,
árvore, arvoreta.
Mas tudo era jogo
visual, o percurso do sol acionava
a silhueta. Depois
de certo tempo, não
mais se iludia.
[...] Bem que gostaria
de escapar-se, transpor-se além de suas fronteiras a fim de fruir nova dimensão, mas não ousava”, notamos a poética
pungente da autora na sua prosa.
 |
| Imagem Pinterest |
O conto A praça discorre sobre uma praça que
foi inaugurada pelo prefeito e que, passada a euforia dos primeiros passeios, é
desprezada por seus frequentadores. Aqui, a autora define a praça como sendo a terra
remodelada pelo prefeito, o chão que aceita tudo e, após algum tempo, torna-se
desprezado pelos homens. A mãe-natureza, tal qual as mulheres, também é
ignorada pelos homens. Expressões presentes no texto como ‘pise de mansinho’ ou
´cuide de seu jardim’, evidenciam a antecipação de uma consciência ambiental.
Nos trechos seguintes: “Elas, (as plantas), não viviam em função dos homens,
nem deles dependiam, como era o empenho de muitos fazer supor. Descaso,
desprezo, nada lhes alterava o destino da espécie” [...] “ Era portanto certo
que (as plantas) existiam para autossatisfações, donas de si mesmas e tão
livres dentro do repouso como o ar que as oxigenava. O que havia era abuso,
exorbitância do espírito dominador dos homens”, se substituirmos ‘as plantas’
por ‘as mulheres’, a analogia ao mundo feminino ainda é pertinente.
 |
| Imagem Pinterest |
No conto Laranja de sobremesa, temos outra
história simples e trivial, discorrendo sobre uma laranja que está sobre um
prato. Ao ser servida de sobremesa, reflete sobre o ciclo da vida: ela vem de uma
árvore que deu fruto, que virou semente, que virará árvore novamente. Nós,
assim como a laranja, seremos consumidos pelo tempo, mas deixaremos nossas
sementes sobre a terra. Astrid retrata a finitude da vida, o recomeço e também
nossa submissão ao tempo. A laranja aguarda seu destino, assim como todos nós.
A beleza e o viço são precários.
No texto intitulado A cerca, ela que é “uma
árvore sob outra forma’, reflete sobre sua vida, está entregue agora às
intempéries e aos cupins, e se sente culpada pela morte de seu amigo gato, que
caiu de pé em um dos seus sarrafos pontiagudos. De sua abundância de árvore, forte
e firme sobre a terra, ela está reduzida a um corpo estéril capaz de causar a
morte de outro ser. Escrita em tom melancólico, a cerca fala sobre seu
inconformismo e sobre sua degradação, refletindo sobre a inutilidade de tudo,
convencendo-se de que sua vida foi apenas um acaso. Os temas neste conto são o
sentido da vida e a inevitabilidade da morte. Apesar do tom melancólico, o que
me chama a atenção nesta narrativa é a ironia empregada pela autora: a árvore
firme e forte se tornou uma cerca que mal para em pé. A partir desta história
aparente e linear, Astrid traz subtextos potentes: a despeito da estabilidade e
da firmeza que um ser pode ter, todos podem desmoronar de uma hora para outra,
ou: é suposto que uma cerca contenha as coisas, mas a cerca de Astrid não
contém nada, nem a passagem do tempo, nem as ações alheias, ou: a cerca lamenta
ter perdido as referências do passado, de quando era árvore, mas para viver o
presente, o passado não importa, ou: nutrir um sentimento melancólico
previamente à morte é vivenciar a morte em si mesma, ou: o vínculo com as
nossas raízes é o que nos fortalece.
 |
| Imagem Pinteret |
O conto A aventura dos crótons fala de uma
planta ornamental, o cróton, que, crescendo belo num canteiro graças às podas
do jardineiro, passa a invejar as heras que “pintam de verde as paredes da casa
da esquina”, crescendo horizontalmente para todos os lados, em total liberdade.
O cróton quer se aventurar, então roga à natureza que lhe conceda este desejo.
A natureza parece atendê-lo, lançando uma chuva torrencial que liberta suas
raízes do solo e o leva, mas, sem ter como fincar-se à terra, é levado pelas
águas e sucumbe. O texto fala sobre deixar uma vida cercada de segurança, já
que a “tenacidade do jardineiro zelava pela dócil submissão de todos”, mas
limitada e cheia de marasmo. Astrid refere-se à impermanência, à liberdade e ao
risco de viver. Podemos fazer outras reflexões, como: a inveja e o anseio por
outras terras estão presentes tanto nas plantas quanto nos seres humanos, ou: o
resultado de todo esforço é uma surpresa, nem sempre agradável, ou: o
“jardim do lado de lá”, pode ser apenas uma ilusão, ou: é preciso dar
valor à terra onde se vive, ou: o desejo de mudar pode gerar uma frustração
imensa, é preciso ter os meios, não só o desejo, ou: o desgosto em habitar um
lugar que não se deseja faz perder todo o sentido e o encanto da vida. Neste
texto, há também uma consciência da heterogeneidade, do outro e do lugar que
ele ocupa.
 |
| Imagem Pinterest |
No conto Queixa contra o vento, uma quaresmeira
reclama dos caprichos do tempo, sempre lutando contra a ameaça de tombar e
sucumbir. Neste trecho da obra “O vento
fica aí a soprar
sem cessar. Sem
saber do meu medo, da gana de fechá-lo em
algum lugar. Dentro
de um morro, de uma gruta. Afinal,
que pretensão
pensar nisso. Logo eu, que não me aguento em pé, que sofro de câimbras, que não resisto ao seu menor suspiro”, notamos o uso de rimas, cadência das
frases, assonâncias e aliterações, evidenciando a forte verve poética de
Astrid, presente desde esta obra inaugural.
O conto O parque fala de um parque cujas
“árvores espichadas, esguias, e arbustos baixotes, corpulentos, mantêm-se
atados pela tranquilidade de pedra. Ali a vida não se pui com o uso, não
implica amanhãs e mortes, mas trata-se de uma paz de pedra, marmórea e mortal.
Neste mundo de pedra, é sempre noite. O tema de Astrid nesta narrativa é a
domesticação da própria existência. Este viver de modo mecânico, sem notar se é
dia ou noite, sem atentar para o que realmente importa, é um não viver.
No conto Avispiscis pulcherrima, Astrid fala de
uma árvore imaginada, uma árvore fabulosa, com a capacidade fantástica de se
adaptar a tudo, aos charcos, ao deserto, às geleiras dos polos e que é de uma
beleza inigualável. Apesar da exuberância, ela tem frutos estéreis, incapaz de
deixar descendência, motivo de suas lágrimas. A temática de Astrid nesta
narrativa diz respeito à validação da beleza pela capacidade de reprodução. A
uma planta (mantendo a analogia com relação à mulher) não basta ser vistosa sem
reproduzir, é necessário deixar sementes e descendência para ser validada sob o
olhar dos humanos. São temas intrinsicamente femininos.
 |
| Imagem Pinterest |
Na narrativa A agonia da rosa, Astrid discorre
sobre rosas que acabaram de florescer e, estando no esplendor de sua beleza, são
colhidas e colocadas como um ramalhete dentro de uma caixa de celofane. Aqui, a
beleza vira acessório, serve somente para dar alegria e prazer a alguém e,
portanto, tem vida curta. A essência feminina é comprimida em um receptáculo.
Aprisionada, ela murcha e seca em definitivo. A autora faz uma crítica à
superficialidade, à vida de aparências e à provisoriedade de tudo.
No texto Um grão de feijão e sua história, o
conto mais lindo desta coletânea na minha opinião, grãos de feijão estão sendo selecionados
para serem cozidos, mas um grão é deixado de lado por não atender às
expectativas da empregada. Ele é jogado pela janela e vai parar numa terra
fértil, enchendo-se de esperança, julgando que vai brotar, enraizar e
reproduzir, até que a empregada, que tinha o mau hábito de jogar coisas pela
janela, derrama um jato de água quente sobre ele, desfazendo seu futuro. A
partir desta história singela, podemos pensar em inúmeras inferências, tais
como: só inteiros temos o ‘direito’ de ‘estar no mundo’, ou: a finitude nos
torna tão vulneráveis quanto um grão de feijão, ou: mesmo uma planta é capaz de
sentir, ou: para ‘ser’ algo ou alguém é preciso ocupar um determinado lugar,
ou: é na terra que está a vida; é ela que preserva toda nossa descendência, ou:
é preciso criar raízes para florescer. Astrid abre portas para vários subtextos
e várias interpretações.
 |
| Imagem Pinterest |
Passando ao último conto da coletânea, encontramos À
sombra da papouleira, onde uma folha seca e outra verde conversam à sombra
da papouleira, dentro do jardim de uma casa. Elas escutam a aproximação do
jardineiro e se surpreendem ao saber que o dono quer derrubar a papouleira para
fazer um novo jardim. Então, as folhas se revoltam, tomando ciência de que a
vida é breve e que, aos homens, “era comum o hábito de derrubar plantas e até
florestas inteiras. A preocupação de Astrid com o meio-ambiente e com a prática
dos homens de devastar se faz notória. Num mundo onde “a vida é um rosário de
pequenas mortes”, só resistindo em coletivo podemos sobreviver.
A grandiosidade da obra inaugural de Astrid é notável
e pujante, seja nos temas, seja na sua prosa poética, na sua visão à frente do
seu tempo, na sua preocupação com o feminismo e nas questões ambientais, fazendo
os leitores refletirem sobre a vida através de histórias singelas do nosso
cotidiano, lhe reservando o merecido lugar de destaque na literatura amazonense
e na literatura brasileira contemporânea. Leiam Astrid!
☆_____________________☆_____________________☆
Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira.