domingo, 3 de janeiro de 2021

Carta a uma Mulher mais Bonita do que Eu



Prosa Epistolar/01 

Por SabrinaDalbelo

 

Minha Sacerdotisa,


Tenho pensado em tudo o que ocorreu. Estou ciente de que passaste a viver em meio ao horror e no isolamento. Todavia, não posso deixar de reconhecer a mulher que eras. Creio que a fêmea desejável ainda exista por detrás desses muros petrificados que te cercam e por debaixo dessas serpentes perniciosas que te prendem à monstruosidade.

Persisto firme na minha decisão de condenar-te ao vazio, pois ainda não suporto que tanta beleza, como a tua, fosse conferida pelos deuses a uma mera mortal.

Poseidon começou a me falar de ti e eu não sei quem eu passei a odiar mais, se ele ou tu.

Não pude acreditar que vocês dois cederam à tentação justamente embaixo de meu próprio teto, na minha casa sagrada. Até aquele momento, tu me idolatravas, e ele me desejava. Pouco depois, eu já não tinha mais nada. Feriu-me a honra tamanha traição, sobremaneira porque banhada pelo suor carnal escorrido de ambos.

Lembro-me de Poseidon vangloriando-se de ti, de te ter nos braços, de apalpar tuas carnes e de afagar teus cabelos macios, enquanto preparava os mais vigorosos maremotos, enternecido por um entusiasmo jovial, fruto da lembrança dos momentos íntimos vividos contigo.

Enquanto me traías, eu seguia ocupada, mantendo-me imbatível nas guerras, até mesmo frente a Ares. Optei pela luta solitária e gloriosa. Coube a mim a virgindade perpétua, apesar de saber que sou bastante desejável para os homens e outros deuses.

Foi por isso que te tornei tão vingativa e rancorosa no que diz respeito aos machos, como eu própria sou. Foi por isso que te condenei a uma vida isolada e trágica. Eu queria que vivenciasse minha congênita falta de ternura.

Dolosamente, te penitenciei a não olhar, não acariciar, não presenciar mais nada. Tua sina é paralisar aquele que chegar a ti. Teu destino é viver rodeada de estátuas tão inertes quanto teu próprio coração gelado. Ou seria o meu?

Te condenei a nem mesmo “te” olhar, pois terás nojo e raiva todas as vezes que perceberes o quão horrenda tu te tornaste por fora, como sou por dentro.

Preciso contar-te mais uma coisa. Na tua cabeça abominável, o sangue de tua artéria esquerda é puro veneno, amargo, provocador de dor e petrificação. Contudo, o de tua artéria direita é um remédio divino, com propriedades de ressuscitar os mortos. Ironicamente, permanecerás bonita por dentro, mas nunca te atentarás de usar o remédio da vida. Quando te tornei isso, tu acabaste optando pelo medo e pela infelicidade. Tu, tomada de rancor, vejo agora, só te socorres do veneno que habita metade de ti.

Minha mensagem, por isso, cara Medusa, é para reconhecer que, como minha vingança ao assédio que aceitaste, tornei-te tão dura e fria como eu mesma, incapaz de reconhecer a própria vida que ainda conténs.

Para meu regozijo, saibas tu, nem mesmo terás acesso a esse relato, pois o mensageiro que mando para entregar-te é um homem e, fraco, cederá ao desejo de encarar-te, como todos aqueles que chegam até ti após atravessarem o reino dos mortos a bordo do barco de Caronte. Ele será mais um ornamento paralisado a tua porta, para te lembrar que tua vida estagnou.

Nunca saberás disso, mas haverá um mortal que te libertarás, no exato dia em que te decapitares. Somente ele terá acesso ao sangue da vida que escorre de ti, o qual será usado pelo bem da Grécia.

Desse dia em diante, Zeus me perdoará pelo que fiz contigo e eu voltarei ao Olimpo.

Eu nunca serei liberta, eu sei. Mas tu, Medusa, nunca serás bela novamente.

Resta a mim, agora, vendar meus olhos e carregar a Justiça nas costas, para nunca mais ter de presenciar tamanha insolência, como a tua, embora seja meu fardo olhar pelos mortais, eternamente.


Até nunca, minha Sacerdotisa.


Palas Atena.

 

* mensagem originalmente em grego dada pela Deusa virgem Atena, filha de Zeus, deusa da estratégia em batalha, das artes, da justiça e da habilidade, a um mensageiro mortal para ser entregue à Medusa. O homem, apesar de atravessar a Grécia, rumo à extremidade ocidental do mundo, foi petrificado à porta do covil da górgona, diante do seu olhar paralisante. Medusa nunca leu a carta.





 

A ESCRITORA POR TRÁS DA PERSONA: ENTREVISTA COM LOURENÇA LOU, POR ROBERTA GASPAROTTO



A ESCRITORA POR TRÁS DA PERSONA/01


"MINHA LIBERDADE SEMPRE FOI A LITERATURA"

ENTREVISTA COM LOURENÇA LOU


POR ROBERTA GASPAROTTO


Quando eu disse para a poeta Lourença Lou, que queria ter um bate papo com ela e falar sobre literatura, Lou me disse: "ih, sou meio bicho do mato, sei não"... Depois que esclareci que a conversa não seria uma live nem algo do tipo, mas sim uma prévia para que eu pudesse escrever sobre ela, Lou aceitou e tivemos mais de uma hora de boa prosa, naquele mesmo momento. Uma conversa informal, despretensiosa, assim como é essa poeta mineira que adora escrever, mas tem muita dificuldade em propagandear a si própria. Mal ela sabe, mas nesse espaço, faremos isso por ela. Porque Lou merece, escreve imensamente bem e adora quebrar regras, assim como nós! Cedo começou a escrever e aos treze anos de idade, enviava suas crônicas para uma rádio de Belo Horizonte, a rádio Tiradentes. Era um programa voltado para o público jovem e quase todo dia suas crônicas eram  lidas por lá. Os assuntos giravam em torno da adolescência e suas dúvidas: as primeiras paixões, o despertar da sexualidade e algo do erotismo que, anos depois, estaria presente em muitas de suas crônicas e poemas. Perguntada a respeito do que o erotismo significa em sua vida, Lou nem soube me responder, talvez porque o erotismo lhe  seja um aspecto tão natural e um componente tão presente quanto respirar. Afinal de contas, faz sentido perguntar a alguém o que a respiração representa em sua vida? 

Antes de escrever poemas, Lou escrevia crônicas em um blog, algumas de cunho erótico, o que acabou gerando retaliações por parte de algumas poetas e culminou em seu bloqueio do grupo. "É uma pena que algumas mulheres não entendam que eu escrevo para brigar pelo direito de termos uma vida sexual com a mesma liberdade dos homens." 

Se isso não se dá, ainda, na prática, Lou quer exercitá-la, e muito, em seus escritos. A  escritora recusa o título de "poeta erótica", até porque sua obra não se resume a isso. Em sua literatura cabe, com folga, temas políticos, sociais e também, metafísicos. Ao escrever sobre o que quer que seja, Lou quer provocar, pois sabe que só através de uma boa provocação saímos de nosso estado de inércia e comodismo.

Em seu primeiro emprego, aos catorze anos de idade, Lou sofreu assédio sexual de seu patrão. Escreveu sobre isso sem meias palavras e, para essas questões urgentes, ela faz questão de ser bastante clara e não usar metáforas. Lou sempre coloca a mulher no protagonismo da ação, inclusive na esfera sexual. Além disso, sabe que, para se ter prazer no sexo, antes de tudo, há que se ter espaço, inclusive, para falar sobre ele. E se é um campo em que Lou faz questão de exercer sua liberdade, é através da literatura. Quem se beneficia com isso somos nós, as leitoras e leitores dessa maravilhosa escritora, que tem a coragem de escrever sobre um tema, ainda, tão tabu: o prazer das mulheres.


abissais


nosso corpo de fêmea 

em redondilha

abre-se boca

no corpo do macho 

lambuza pelos

de onde os mamilos 

olham em timidez

nossos dentes em riste


em cordéis de epítases

as carnes das coxas

chamam nosso vértice

para o enterrar 

de fogo da espada

em recônditos desejosos

de explodir em festa

nossas fomes abissais


no corpo do homem

despudoramos

cento e tantas virtudes

e nossas intenções 

gulosas de eternizar 

o frêmito secular

de mulheres que gozam

insolentemente.

***


asperezas


há uma poeta 

aprisionada 

na mulher

a escarpelar 

suas paredes


ambas escorrem

ranhuras 

de seda 

e sedução

às estranhezas


elas sustentam 

suas amnésias


há uma mulher

aprisionada 

nos versos

uma poeta

de asperezas

viscerais


ambas se moldam

nas simbioses da língua

e entrelaçam-se

nas reinvenções 

da palavra.  

***


primícias


estas meninas-mães

mal arrancadas da infância

nasceram em ninhos de medo

mordem culpas lábios línguas 

engolem gritos de estupros 


tristes meninas

em busca de ir além

da resistência dor desamor


as meninas de amanhã

árvore de raízes entranhosas

terão útero selvagem livre

voz a desafogar suas escolhas

dentes a sugerir felinidade 


mulheres-terra 

estas meninas de amanhã

primícias de voo pouso vida.


***


ESTA SOU EU, por Lourença Lou:

Loba foi sempre como me senti. Desde quando, ainda menina, adotei meus três irmãos. Depois afiei as garras para sobreviver no mundo dos homens. Cresci por minha conta e risco. Me formei estudando à noite, fui pra sala de aula e aprendi que linguagens são vivas. A sala ficou pequena, fui administrar outras linguagens. Passei por todos os cargos administrativos de uma escola, sempre aprendendo. Fui e sou leitora compulsiva, escrevo quando a palavra não cabe em mim. E às vezes grito – mesmo que o grito seja mudo. Tenho publicados três livros de poemas e um livro de contos. Outros virão, porque a palavra em mim não fica presa.


sábado, 2 de janeiro de 2021

ELES LEEM ELAS: PERMANÊNCIAS OUTONAIS, POR MARCO ARROYO


ELES LEEM ELAS|04

El poema ha sido inspirado en la lectura del libro "Permanências Outonais", de Vania Clares


Por Marco Arroyo

La vida en la tierra

Se manifiesta en cuatro estaciones.

Cada una de ellas

Se prolonga por tres meses

Que se alternan ofreciendo

Fertilidad, bienestar, dicha y nuevos retos.

 

Nuestra vida

A ejemplo de las leyes de la naturaleza

También se desarrolla en ciclos.

Son cuatro etapas que se alternan sucesivamente

Y a pesar de no ser igual para todos

Cada estación de la vida dura varios años.

 

Durante el verano

La tierra con su calor es una delicia a ser disfrutada

Como ella en esta estación

Somos jóvenes llenos de energía,

De sueños y pasiones

Que le dan calor al deseo de vivir.

 

En otoño las hojas de los árboles se caen

Anunciando el rudo invierno que vendrá

En nuestro ciclo adulto

Recordamos la felicidad y los amores de otrora

Y nos abastecemos de leña y vino

Para resistir el frio y la soledad en la estación que llega.

 

El invierno es lluvioso y frio

Puede ser sinónimo de tragedia y desastre.

Nuestros cuerpos comienzan a debilitarse.

Aparecen las canas acompañadas de soledad

El dolor en los huesos y la necesidad de abrigo

Recordamos l verano y el otoño con nostalgia.

 

Después del frio y lluvia en la tierra germinan,

las hojas de los árboles y las flores embellecen el campo.

Algunos abuelos envejecidos en barricas de roble

Se marchan en busca del eterno verano dejando recuerdos

Y los sobrevivientes con su andar manso

Apacientan la belleza del jardín esperando el eterno verano.

 

Cada momento de la vida

Ha de ser vivido intensamente.

Todo pasa y nada permanece

Apenas la memoria de los placenteros momentos

Vividos intensamente al calor del Sol y del amor

Nos acompañarán para siempre.

 



 


 

Miniconto Poético: Paredes




Miniconto/01

Por Lucirene Façanha


Seus gemidos roucos chegavam através da parede. Se afastou da abertura, disposto a levar as últimas consequências seu protesto.

Escutou seus passos lentos, regulares. Nada mais havia a argumentar.

Não podia desfazer a história ou apagar os erros.

Na porta, estacou.

Levantou a cabeça.

Como num filme: o inicio idílico louco de paixão exacerbada. As travessuras. Depois: As viagens. Ausências. Inferno astral.

Olhou em frente. As palavras se movem. Reescreveria sua história. O horizonte além daquelas paredes se abriria para um recomeço.

E foi.



 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A ELAS COM AMOR: Um mar em Maria*

 

Por Marta Cortezão

 

Olhava fixamente aquela linha que se esticava longe separando mar e infinito horizonte. Estar ali lhe remexia de uma maneira especial por dentro e, ao mesmo tempo, lhe causava uma estranheza tamanha. Nunca esteve naquele lugar, contudo a sensação era de que estivesse estado sempre. De alguma forma sentia que esteve ali, não saberia explicar. Não tinha respostas, nenhuma, apenas sentia e entregava-se a esse prazer de sentir. Com setenta e nove anos nas botinas da vida e estava ali por primeira vez redesenhando em seu caleidoscópico paneiro de recordações (tão distantes, tão vagas, mas tão vivas...) o caminho que seus avós Francisco e Maria Jesuína haviam feito, desde aquela provinciana e pequena cidade de Messejana, no Ceará (agora um bairro) até o perdido Eldorado do Norte. Tempos duros, de fome, de estradas, de chão de terra, de caminhos incertos, de constantes perigos, de muitas dificuldades. Sua família foi buscar e plantar esperança no Norte. Primeiro veio o avô Francisco, arranjou trabalho duro para uma vida dura nos seringais do Acre e com o passar do tempo, com muita luta diária, prosperou e mandou buscar a família, “a vovó, meus tios e tias e minha jovem mãe”, pensou Maria Arlinda com o olhar caminhando sem pressa pela linha comprida que contornava o horizonte que tinha diante de si.

A família reunida foi uma grande alegria para todos, podia ver e contemplar o sorriso cunhatã de sua mãe se desenhando naquele infinito azul. “Como seria maravilhoso estar presente naquele momento não vivido!” e continuou pensando no amor que não pode receber do avô, que morreu de uma febre constante, sem fim, talvez malária, o corpo só esfriou com a morte mesmo. O tio Jeremias, que num descuido trágico, foi alcançado por uma árvore que lhe ceifou infante vida... 

A ausência do avô trouxe tantos problemas. Maria Jesuína não pode continuar no Acre, sentiu-se só sem saber que rumo tomar; sem o conhecimento necessário dos negócios que tinha o marido, viu-se obrigada a vender as poucas propriedades; o peso da viuvez lhe saiu caro, a sociedade não perdoa (nem gostava de pensar nisso, mas a vida foi assim de dura com as mulheres, sempre). Portanto, Jesuína não viu outra saída: vendeu tudo e foi viver com os filhos na Ilha do Ariá, nas proximidades do município de Coari, dentro do rio Coari Grande, nos confins do Amazonas, onde vivia o irmão Alberto que, dentro do que pode ser, foi o melhor e mais importante apoio que Jesuína pode ter, do seu jeito peculiar de ser. “E a vida seguiu seu curso como esse mar, gigante feito dragão, que agora mesmo desfila bem diante de mim”, pensou.

Tanta gente que a vida não lhe permitiu abraçar! Essas lembranças não lhe visitavam com dor, mas sim com amor, o amor que guardou para o avô, para o tio, para todos aqueles que se foram sem que a vida lhe pudesse presentear com o prazer da convivência, um amor que cresceu em seu peito e brotava em momentos especiais como aquele que estava vivendo agora e que lhe enchia de uma forma especial de sentir o pulsar da viva em seu peito. Veio em sua mente o rosto de sua mãe Ana Maria, que já há alguns anos havia feito a travessia, essa que todos faremos e para a qual nunca estamos preparados. Ana Maria era dona de um olhar severo, mas que no fundo escondia uma docilidade cor de mel. Era uma mulher sensível que aprendeu ser dura por necessidade e que travou muitas lutas para ser dona não apenas de seu olhar, mas também de seu próprio destino. Agora Maria Arlinda ali – com seu olhar feito um passarinho pousado no aconchegante ninho, naquela imensidão azul de céu e mar – era um pêndulo que se balança agarrada no fio do horizonte, sentia-se leve balanceando entre as fendas do presente e passado, do passado e do presente, tudo se entrelaçava e, ao mesmo tempo, tudo era cada vez mais nítido... Era ali que queria estar, era ali o lugar perfeito para sentir...

Deu-se conta de que aquele azul que banhava seus olhos era o mesmo azul que fazia morada nos olhos de sua avó Jesuína, em especial, quando ela lhe contava sobre as histórias vividas junto a seus pais e irmãos em Messejana, naquela casinha pobre, naquela rua muito pobre de barro batido, naquele chão de muita pobreza.

Sentia os pés na areia fofa e úmida de uma entre tantas praias de Fortaleza... sentia os pés no mundo e o coração afagava a alma. "Existe um mar aqui diante meus olhos e há outro dentro de mim", constatou Maria Arlinda.

*Texto dedicado às mulheres de minha linha materna.
 


AUTORA DA VEZ: “ETERNIDADE X FINITUDE”, DE MÁRCIA MACHADO - POR HYDELVÍDIA CAVALCANTE


AUTORA DA VEZ/02

“ETERNIDADE X FINITUDE”, de Márcia Machado


Por Hydelvídia Cavalcante


Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

Será?

Sou estranha por não me apoquentar com isso?

A exemplo de Drummond,

“O presente é a minha matéria...”

Se a espiritualidade

simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

isso me incomoda.

Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...”

Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

boa, má?

Certa, errada,

ora sim, ora não

antíteses me (in)definem...

Antes de iniciar nossa apreciação, precisamos observar que, como linguista, faz anos que não nos dedicamos à análise de obras literárias. Assim sendo, pedimos desculpas por não enveredarmos pelas trilhas do saber literário que ora não temos condições de apresentar. 

O título do poema de Márcia Elizabeth Machado nos chamou atenção, logo que iniciamos a leitura. Eternidade x finitude são palavras que denotam, para nós, situações opostas, pois o que é eterno não tem fim. A eternidade se aliaria, portanto a uma situação de infinitude. Percebemos, de antemão, mesmo antes da leitura do texto, que o poema se envolveria com os aspectos dualísticos que induzem a uma análise da vida.

Duas características expressam, sobremaneira, os diferentes sentidos do poema Eternidade x finitude: a intertextualidade e as marcas literárias da Escola Barroca. A intertextualidade se faz presente não apenas quando menciona o discurso já dito de alguns escritores brasileiros, mas também quando a autora expressa o seu próprio sentimento a respeito do tema. Quanto às marcas literárias da Escola Barroca, são facilmente percebidasas características de dualidade, contraste, inquietação, sentimento de inferioridade, pessimismo, ênfase na dualidade matéria e espírito, dúvidas, questionamentos, religiosidade, dubiedade de sentidos e as figuras de linguagem como metáforas, antíteses, paradoxos, hipérboles e interrogações. Duas características que marcaram a poesia barroca também se fazem presente no poema em análise: o cultismo ou gongorismo que se evidencia em um jogo de palavras, criação literária do poeta espanhol Luiz de Gôngora; e o conceptismo ou quevedismo que ressalta o jogo de ideias, uma criação do poeta espanhol Francisco Quevedo.

Para melhor explicitar as afirmações mencionadas, vamos à análise considerando os versos que compõem o poema:

1) Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

    Será?

São versos que denotam dúvida, inquietação. Há uma certeza de que o corpo, por ser matéria, um dia acaba, deixa de existir, transforma-se em pó.  Essa certeza se manifesta ao lado de uma dúvida, de uma inquietação, o que denota uma contradição, um contraste. Inquietação e contraste são marcas literárias do Barroco.  A inquietação se mostra trazendo nas entrelinhas a dúvida: acredito ou não acredito na reencarnação? A autora em um único verso e com apenas uma palavra interrogativa, será?, demonstra a dúvida com relação ao seu próprio questionamento: o espírito retorna em outro corpo físico? O fato de a interrogação se encontrar sozinha, isolada, em um único verso, também denota uma aflição, um questionamento, uma inquietação de cunho pessoal. No entanto, sabemos que essa inquietação toma conta da mente de muitas pessoas: acreditar ou não acreditar no processo de reencarnação, aceitar que existe vida após a morte ou acreditar que o espírito só anima apenas uma vez um corpo físico. Os questionamentos, as interrogações fizeram parte das inquietações de escritores do Barroco, como Gregório de Matos Guerra cujas poesias se caracterizam pelos contrastes e pelas contradições.

2) Sou estranha por não me apoquentar com isso? 

Este verso nos diz o seguinte: posso até acreditar, mas prefiro não refletir a respeito. Também expressa uma contradição: não querer se apoquentar já admite existir um questionamento, uma inquietação a respeito do assunto. A expressão “sou estranha ”traz a voz de quem sabe haver outras pessoas que se importam em querer saber sobre a vida do espírito, após a morte do corpo. Mas, por que eu também preciso me preocupar com isso? Essa interrogação presume que há uma preocupação com o que outras pessoas acham em relação a essa atitude de não querer se apoquentar com isso. Na vida, este comportamento é um fato real. Sofremos muito, pensando no que os outros vão achar de nossas opiniões, ideologias e de nossos valores. Por incrível que pareça é o que pensamos que os outros pensam de nós mesmos que nos deixam apoquentados. Bakhtin (2006 [1979], p. 342) nos diz que “eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim”.O ser humano não consegue viver sem esse outro que lhe apoquenta a vida. 

Há também um jogo de ideias entre o verso “prefiro não me apoquentar com isso” e os versos anteriores: “alma revive em outros corpos... Será?”. Esse jogo de ideias refleta um refinado confronto intelectual, com raciocínios duvidosos, o que remete ou lembra o conceptismo que tem origem com o escritor espanhol Francisco Quevedo.

2) A exemplo de Drummond,

   “O presente é a minha matéria...”

A autora traz a citação de Carlos Drummond para amparar um sentimento que acha ser também próprio de seu viver neste plano: sua preocupação com o corpo físico no tempo presente, em tempo real. O que lhe importa é o corpo material, o corpo físico, sem nenhuma consideração com o espírito, com a energia inteligente que lhe dá vida. Há uma inquietação à mostra, remetendo à dualidade matéria x espírito, também uma característica da Escola Literária Barroca. O verso traz em si um fingimento, lembrando Fernando Pessoa, quando diz que o poeta é um fingidor. A autora tenta se enganar, tenta fingir que não se importa em saber se há ou não animação de outro corpo físico por um mesmo espírito. Se o espírito que dá vida inteligente ao seu corpo presente já lhe animou a vida em outro corpo em uma vida pretérita. Embora a autora cite Carlos Drummond, o fato de privilegiar o tempo presente lembra uma das características de Gregório de Matos Guerra, que também privilegiava o momento, o tempo presente, o carpe diem. Citar Carlos Drummond, nesse contexto poético, também se justifica, uma vez que, por ser este renomado escritor brasileiro o poeta da escavação do real, trouxe em seus poemas uma de suas mais reveladas preocupações: o impasse entre o homem e o mundo, a realidade interior e exterior, o mundo objetivo e o subjetivo, o sonho e a realidade.

4) Se a espiritualidade

     simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância.

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

Isso me incomoda.

 

Analisando os versos citados, encontramos: 

a)    Figura de contraste antítese: céu/inferno, anjos e demônios.

b)    Expressão de dualidade: céu e inferno, anjos e demônios.

c) Cultismo ou gongorismo: se a espiritualidade simbolizada em céu/inferno, anjos/demônios.

d) Feísmo. Sentimento de inferioridade. Não se sentir elevada, digna da espiritualidade: sou reles.

e)    Morbidez em relação aos aspectos elevados da espiritualidade: fome

f)  Manifestação de indignidade perante o comportamento dos que se dizem defensores da espiritualidade: injustiças, ganância.

g)  Contradição perante a fome e a injustiça, ostentação de muitos que usam a espiritualidade para enriquecimento e galgar a fama de líder: ganância.

h) Figura de linguagem hipérbole, uma afirmação exagerada para acentuar o sentimento de incômodo que a inquietação causa: sim, mil vezes sim.  Isso me incomoda.

i)     Expressão de perplexidade diante da vida e do mundo: Ostentação. Sim, mil vezes sim. Isso me incomoda. 

j)      Contrastante jogo de ideias, caracterizando o conceptismo ou quevedismo: Se a espiritualidade/ simbolizada em céu/inferno/ anjos e demônios/ é algo elevado/ sou reles/ fome, injustiças, ganância/ Ostentação.../ Sim, mil vezes sim/ Isso me incomoda. 

4) Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Estes versos apresentam o segundo exemplo de um discurso já dito. A autora menciona Murilo Mendes e, embora não cite trechos do poema Solidariedade, a ele faz referência na tentativa da possibilidade de ser ela também, como o poeta expressa em seus versos, solidária com pessoas e fatos que se caracterizam por apresentarem naturezas díspares. A contradição e a dualidade se encontram presentes na obra de Murilo Mendes, que procurou conciliar de tal maneira o sagrado e o profano, a ponto de se tornar conhecido como o poeta místico e cósmico. Esse viés literário também o fez criar um conceito particular de religiosidade, para que pudesse mostrar um processo de dilaceração do seu próprio Eu em conflito.

A autora gostaria de ter escrito Solidariedade, nos termos em que Murilo Mendes escreveu, para que pudesse expressar o sentimento de alteridade, mostrando o quanto seria capaz de ser solidária às pessoas com quem presume também se contrapor, seja por razões sociais, culturais ou morais. E assim, o ser humano conduz a vida, espelhando-se no outro, com vontade de ter as atitudes do outro. Acontece que, ao manifestar o desejo de realizar o que o outro já efetivou, ele declara sua própria leitura de vida em relação ao evento já efetivado pelo outro. Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2006 [1979], p. 383, grifo do autor) afirma que “O eu se esconde no outro e nos outros, quer ser apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro, livrar-se do fardo do eu único (eu-para-si) no mundo”. O outro é e será sempre um amparo ou, podemos mesmo dizer, um espelho, para ver o nosso próprio eu.

5) Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Estes versos apresentam uma dualidade com versos já mencionados. A autora, no início do poema, demonstra claramente não querer se preocupar com assuntos que se relacionam com a dualidade matéria x espírito. No entanto, mostra, nestes versos, que está predisposta a se conectar com espíritos sofredores, ainda que não os veja. Quando menciona “seres invisíveis, nossos semelhantes”, a autora deixa nas entrelinhas acreditar na existência do espírito que dá vida ao corpo humano, aceitando e acreditando que, após o desencarne, muitos desses espíritos ficam vagando, sofrendo as punições que lhes são cabíveis. Mais uma vez, encontramos nestes versos, a característica inerente à natureza humana de se apoiar no comportamento do outro para manifestar seus próprios desejos, seus idênticos propósitos. 

6) Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...” 

Mais uma vez a intertextualidade se faz presente no texto de Márcia Machado que traz a voz de Guimarães Rosa para manifestar a dor que pode sentir em relação à dor do outro. Há uma atitude responsiva em relação à dor alheia, uma atitude que carreia em si mesma o desgosto pelo acontecido e o desengano causado pelo desencanto que o turbilhão de sofrimento causa nas pessoas.

O simples fato de que eu, a partir do meu lugar único no existir, veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça, o fato de que também para mim ele existe - tudo isso é alguma coisa que somente eu, único, em todo o existir, em um dado momento, posso fazer por ele: um ato do vivido real em mim que completa a sua existência, absolutamente profícuo e novo, e que encontra em mim somente a sua possibilidade (BAKHTIN, 2010a [1920], p. 98).

Esse sentimento pode ser uma demonstração do impulso de alteridade que nos faz ver o outro, sentir o que se passa com o outro, até mesmo nos colocar no lugar do outro, mesmo sabendo que trazemos a marca da nossa unicidade e que o lugar que ocupamos na existência é único.

7) Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

Estes versos se iniciam com um alerta: não vale fingir que não nos apercebemos do sofrimento alheio. Não apenas isto. Não vale fechar os olhos para encobrir o que não admitimos como certo, coerente e preciso para validar os princípios que regem a conduta correta e pertinente de uma vida saudável e salutar. O jogo de palavras “para quê olhos se vê e não repara” denota a contradição, a antítese que, muitas das vezes, limita o comportamento humano para uma aceitação, uma acomodação. Encontramos nestes versos mais uma característica das poesias barrocas: o cultismo ou gongorismo. Ao mesmo tempo, o joga de ideias denota o conceptismo. 

8) A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

Estes versos enfatizam que, embora se confirme a unicidade do ser, ninguém consegue viver as experiências da vida, sozinho, considerando tão somente seus próprios defeitos, suas próprias qualidades. “Não encarar o mito de Narciso” significa não ficar apaixonado por sua própria beleza, pelo seu próprio eu físico. Narciso, personagem da mitologia grega, filho deus de Cefiso e da ninfa Liríope, por ser apaixonado por sua própria beleza física, tornou-se o símbolo da vaidade, o que no mundo de hoje, tem induzido a sociedade ao culto da beleza, levando muitas pessoas a um transtorno obsessivo pela própria imagem corporal. Quanto ao verso “vivendo em torno do meu próprio umbigo”, ainda que não aceitemos, no mundo da vida, a nossa unicidade se faz presente em nossos atos, o que é confirmado por Bakhtin (2010 a [1920], p.43), quando observa que o “ato da atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas”. A nossa própria unicidade nos remete às dualidades, às contradições.

9) boa, má?

certa, errada,

ora sim, ora não . 

“Boa, má; certa, errada; ora sim, ora não” são versos que refletem justamente o que é o espírito não totalmente evoluído, mesmo quando não se encontra no plano da erraticidade. Somos bons ou maus, dependendo do contexto, da situação e das pessoas com quem convivemos. Para alguns, muitas das nossas ações são tidas como boas; para outros, podem ser a causa de uma ferida que deixou marcas. Temos atitudes certas e outras também erradas, em determinados momentos de nossa vida. Como somos seres inconclusos, a nossa inconclusibilidade nos pode remeter, dependendo do nosso nível de discernimento, para o acerto ou para o erro. Ora acertamos, ora erramos e essa avaliação se constata com as possíveis interações que realizamos com o outro em nossas experiências de vida.   A nossa preocupação em saber como os outros nos definem é que nos fazem, na maioria das situações, saber quem somos nós, como nós estamos e como nos vemos. Com base nessa concepção, Bakhtin (2006 [1979], p. 341) observa que “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro”. Sem o outro, sem a interação o outro para mim e eu para o outro, se torna mais difícil termos um nível de consciência do nosso próprio eu.

9) antíteses me (in)definem...  

Somos seres dualísticos? Nossa persona, o retângulo ou o quadrado de nossa máscara se deixa ilustrar por antíteses?  Essa resposta é facilmente encontrada, quando estamos em um grupo de amigos e perguntamos sobre como consideram ou veem a personalidade de uma pessoa. As respostas são as mais divergentes possíveis. Neste verso, a autora, após mostrar vários aspectos que se contrastam, se coloca como uma antítese, uma pessoa que se revela por meio de contradições e que, ao mesmo tempo, permanece como uma incógnita, porque nem mesmo as antíteses conseguem defini-la completamente. Somos assim: seres incompletos, seres inconclusos. E essa nossa incompletude faz com que nossas ações nem sempre permaneçam com as mesmas intenções, com os mesmos propósitos.

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal.Trad. do russo por Paulo Bezerra.5ª.ed.São Paulo:Martins Fontes, 2006 [1979].

BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Alberto Faraco. São Carlos: São Paulo: Pedro & João Editores, 2010a [1920].


 




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