“ETERNIDADE X
FINITUDE”, de Márcia Machado
Por Hydelvídia Cavalcante
Corpo, matéria finita, alma revive em outros
corpos...
Será?
Sou estranha por não me apoquentar com isso?
A exemplo de Drummond,
“O presente é a minha matéria...”
Se a espiritualidade
simbolizada em céu/inferno,
anjos e demônios
é algo elevado, sou reles
fome, injustiças, ganância
Ostentação...
Sim, mil vezes sim,
isso me incomoda.
Não à toa,
gostaria de ter escrito
“Solidariedade”, de Murilo Mendes.
Conecto-me com dores
de seres invisíveis,
nossos semelhantes
que às vezes pungem
e andam por aí...
Invocando Rosa, o Guimarães,
“Com dó, desgosto e desengano...”
Basta não cegarmos.
Para quê olhos
se vê e não repara?
A mim basta não encarnar
o mito de Narciso
vivendo em torno
do próprio umbigo
boa, má?
Certa, errada,
ora sim, ora não
antíteses me (in)definem...
Antes de iniciar nossa apreciação,
precisamos observar que, como linguista, faz anos que não nos dedicamos à
análise de obras literárias. Assim sendo, pedimos desculpas por não enveredarmos
pelas trilhas do saber literário que ora não temos condições de apresentar.
O título do poema de Márcia Elizabeth Machado
nos chamou atenção, logo que iniciamos a leitura. Eternidade x finitude são
palavras que denotam, para nós, situações opostas, pois o que é eterno não tem
fim. A eternidade se aliaria, portanto a uma situação de infinitude. Percebemos,
de antemão, mesmo antes da leitura do texto, que o poema se envolveria com os
aspectos dualísticos que induzem a uma análise da vida.
Duas características expressam,
sobremaneira, os diferentes sentidos do poema Eternidade x finitude: a
intertextualidade e as marcas literárias da Escola Barroca. A intertextualidade
se faz presente não apenas quando menciona o discurso já dito de alguns
escritores brasileiros, mas também quando a autora expressa o seu próprio
sentimento a respeito do tema. Quanto às marcas literárias da Escola Barroca,
são facilmente percebidasas características de dualidade, contraste,
inquietação, sentimento de inferioridade, pessimismo, ênfase na dualidade
matéria e espírito, dúvidas, questionamentos, religiosidade, dubiedade de
sentidos e as figuras de linguagem como metáforas, antíteses, paradoxos,
hipérboles e interrogações. Duas características que marcaram a poesia barroca
também se fazem presente no poema em análise: o cultismo ou gongorismo que se
evidencia em um jogo de palavras, criação literária do poeta espanhol Luiz de
Gôngora; e o conceptismo ou quevedismo que ressalta o jogo de ideias, uma
criação do poeta espanhol Francisco Quevedo.
Para melhor explicitar as afirmações
mencionadas, vamos à análise considerando os versos que compõem o poema:
1) Corpo,
matéria finita, alma revive em outros corpos...
Será?
São
versos que denotam dúvida, inquietação. Há uma certeza de que o corpo, por ser
matéria, um dia acaba, deixa de existir, transforma-se em pó. Essa certeza se manifesta ao lado de uma
dúvida, de uma inquietação, o que denota uma contradição, um contraste.
Inquietação e contraste são marcas literárias do Barroco. A inquietação se mostra trazendo nas entrelinhas
a dúvida: acredito ou não acredito na reencarnação? A autora em um único verso
e com apenas uma palavra interrogativa, será?, demonstra a dúvida com relação
ao seu próprio questionamento: o espírito retorna em outro corpo físico? O fato
de a interrogação se encontrar sozinha, isolada, em um único verso, também
denota uma aflição, um questionamento, uma inquietação de cunho pessoal. No
entanto, sabemos que essa inquietação toma conta da mente de muitas pessoas:
acreditar ou não acreditar no processo de reencarnação, aceitar que existe vida
após a morte ou acreditar que o espírito só anima apenas uma vez um corpo
físico. Os questionamentos, as interrogações fizeram parte das inquietações de
escritores do Barroco, como Gregório de Matos Guerra cujas poesias se
caracterizam pelos contrastes e pelas contradições.
2) Sou
estranha por não me apoquentar com isso?
Este verso nos diz o seguinte: posso até
acreditar, mas prefiro não refletir a respeito. Também expressa uma
contradição: não querer se apoquentar já admite existir um questionamento, uma
inquietação a respeito do assunto. A expressão “sou estranha ”traz a voz de quem
sabe haver outras pessoas que se importam em querer saber sobre a vida do espírito,
após a morte do corpo. Mas, por que eu também preciso me preocupar com isso? Essa
interrogação presume que há uma preocupação com o que outras pessoas acham em
relação a essa atitude de não querer se apoquentar com isso. Na vida, este
comportamento é um fato real. Sofremos muito, pensando no que os outros vão
achar de nossas opiniões, ideologias e de nossos valores. Por incrível que
pareça é o que pensamos que os outros pensam de nós mesmos que nos deixam
apoquentados. Bakhtin (2006 [1979], p. 342) nos diz que “eu não posso passar
sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim
mesmo no outro, encontrar o outro em mim”.O ser humano não consegue viver sem
esse outro que lhe apoquenta a vida.
Há
também um jogo de ideias entre o verso “prefiro não me apoquentar com isso” e
os versos anteriores: “alma revive em outros corpos... Será?”. Esse jogo de
ideias refleta um refinado confronto intelectual, com raciocínios duvidosos, o
que remete ou lembra o conceptismo que tem origem com o escritor espanhol
Francisco Quevedo.
2) A
exemplo de Drummond,
“O presente é a minha matéria...”
A
autora traz a citação de Carlos Drummond para amparar um sentimento que acha
ser também próprio de seu viver neste plano: sua preocupação com o corpo físico
no tempo presente, em tempo real. O que lhe importa é o corpo material, o corpo
físico, sem nenhuma consideração com o espírito, com a energia inteligente que
lhe dá vida. Há uma inquietação à mostra, remetendo à dualidade matéria x
espírito, também uma característica da Escola Literária Barroca. O verso traz
em si um fingimento, lembrando Fernando Pessoa, quando diz que o poeta é um
fingidor. A autora tenta se enganar, tenta fingir que não se importa em saber se
há ou não animação de outro corpo físico por um mesmo espírito. Se o espírito
que dá vida inteligente ao seu corpo presente já lhe animou a vida em outro
corpo em uma vida pretérita. Embora a autora cite Carlos Drummond, o fato de
privilegiar o tempo presente lembra uma das características de Gregório de
Matos Guerra, que também privilegiava o momento, o tempo presente, o carpe diem. Citar Carlos Drummond, nesse
contexto poético, também se justifica, uma vez que, por ser este renomado
escritor brasileiro o poeta da escavação do real, trouxe em seus poemas uma de
suas mais reveladas preocupações: o impasse entre o homem e o mundo, a
realidade interior e exterior, o mundo objetivo e o subjetivo, o sonho e a
realidade.
4) Se
a espiritualidade
simbolizada
em céu/inferno,
anjos
e demônios
é algo
elevado, sou reles
fome,
injustiças, ganância.
Ostentação...
Sim,
mil vezes sim,
Isso
me incomoda.
Analisando
os versos citados, encontramos:
a) Figura de contraste
antítese: céu/inferno, anjos e demônios.
b) Expressão de dualidade: céu e inferno, anjos e demônios.
c) Cultismo ou gongorismo: se a espiritualidade simbolizada em céu/inferno, anjos/demônios.
d) Feísmo. Sentimento de
inferioridade. Não se sentir elevada, digna da espiritualidade: sou reles.
e) Morbidez em relação aos
aspectos elevados da espiritualidade: fome
f) Manifestação de
indignidade perante o comportamento dos que se dizem defensores da
espiritualidade: injustiças, ganância.
g) Contradição perante a fome
e a injustiça, ostentação de muitos que usam a espiritualidade para
enriquecimento e galgar a fama de líder: ganância.
h) Figura de linguagem
hipérbole, uma afirmação exagerada para acentuar o sentimento de incômodo que a
inquietação causa: sim, mil vezes sim. Isso me incomoda.
i) Expressão de perplexidade
diante da vida e do mundo: Ostentação. Sim, mil
vezes sim. Isso me incomoda.
j) Contrastante jogo de
ideias, caracterizando o conceptismo ou quevedismo: Se a espiritualidade/ simbolizada em céu/inferno/ anjos e demônios/
é algo elevado/ sou reles/ fome, injustiças, ganância/ Ostentação.../ Sim, mil
vezes sim/ Isso me incomoda.
4) Não
à toa,
gostaria
de ter escrito
“Solidariedade”,
de Murilo Mendes.
Estes
versos apresentam o segundo exemplo de um discurso já dito. A autora menciona
Murilo Mendes e, embora não cite trechos do poema Solidariedade, a ele faz
referência na tentativa da possibilidade de ser ela também, como o poeta
expressa em seus versos, solidária com pessoas e fatos que se caracterizam por
apresentarem naturezas díspares. A contradição e a dualidade se encontram
presentes na obra de Murilo Mendes, que procurou conciliar de tal maneira o
sagrado e o profano, a ponto de se tornar conhecido como o poeta místico e
cósmico. Esse viés literário também o fez criar um conceito particular de
religiosidade, para que pudesse mostrar um processo de dilaceração do seu
próprio Eu em conflito.
A
autora gostaria de ter escrito Solidariedade, nos termos em que Murilo Mendes
escreveu, para que pudesse expressar o sentimento de alteridade, mostrando o
quanto seria capaz de ser solidária às pessoas com quem presume também se
contrapor, seja por razões sociais, culturais ou morais. E assim, o ser humano
conduz a vida, espelhando-se no outro, com vontade de ter as atitudes do outro.
Acontece que, ao manifestar o desejo de realizar o que o outro já efetivou, ele
declara sua própria leitura de vida em relação ao evento já efetivado pelo
outro. Em Estética da Criação Verbal,
Bakhtin (2006 [1979], p. 383, grifo do autor) afirma que “O eu se esconde no outro e nos outros, quer
ser apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como
outro, livrar-se do fardo do eu único
(eu-para-si) no mundo”. O outro é e
será sempre um amparo ou, podemos mesmo dizer, um espelho, para ver o nosso
próprio eu.
5) Conecto-me com dores
de
seres invisíveis,
nossos
semelhantes
que às
vezes pungem
e
andam por aí...
Estes
versos apresentam uma dualidade com versos já mencionados. A autora, no início
do poema, demonstra claramente não querer se preocupar com assuntos que se
relacionam com a dualidade matéria x espírito. No entanto, mostra, nestes
versos, que está predisposta a se conectar com espíritos sofredores, ainda que
não os veja. Quando menciona “seres invisíveis, nossos semelhantes”, a autora
deixa nas entrelinhas acreditar na existência do espírito que dá vida ao corpo
humano, aceitando e acreditando que, após o desencarne, muitos desses espíritos
ficam vagando, sofrendo as punições que lhes são cabíveis. Mais uma vez,
encontramos nestes versos, a característica inerente à natureza humana de se
apoiar no comportamento do outro para manifestar seus próprios desejos, seus
idênticos propósitos.
6)
Invocando Rosa, o Guimarães,
“Com dó, desgosto e desengano...”
Mais
uma vez a intertextualidade se faz presente no texto de Márcia Machado que traz
a voz de Guimarães Rosa para manifestar a dor que pode sentir em relação à dor
do outro. Há uma atitude responsiva em relação à dor alheia, uma atitude que
carreia em si mesma o desgosto pelo acontecido e o desengano causado pelo
desencanto que o turbilhão de sofrimento causa nas pessoas.
O simples fato de que eu, a partir do meu
lugar único no existir, veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça, o
fato de que também para mim ele existe - tudo isso é alguma coisa que somente
eu, único, em todo o existir, em um dado momento, posso fazer por ele: um ato
do vivido real em mim que completa a sua existência, absolutamente profícuo e
novo, e que encontra em mim somente a sua possibilidade (BAKHTIN, 2010a [1920],
p. 98).
Esse
sentimento pode ser uma demonstração do impulso de alteridade que nos faz ver o
outro, sentir o que se passa com o outro, até mesmo nos colocar no lugar do
outro, mesmo sabendo que trazemos a marca da nossa unicidade e que o lugar que
ocupamos na existência é único.
7) Basta não cegarmos.
Para quê olhos
se vê e não repara?
Estes
versos se iniciam com um alerta: não vale fingir que não nos apercebemos do
sofrimento alheio. Não apenas isto. Não vale fechar os olhos para encobrir o
que não admitimos como certo, coerente e preciso para validar os princípios que
regem a conduta correta e pertinente de uma vida saudável e salutar. O jogo de
palavras “para quê olhos se vê e não repara” denota a contradição, a antítese
que, muitas das vezes, limita o comportamento humano para uma aceitação, uma
acomodação. Encontramos nestes versos mais uma característica das poesias
barrocas: o cultismo ou gongorismo. Ao mesmo tempo, o joga de ideias denota o
conceptismo.
8) A mim basta não encarnar
o mito de Narciso
vivendo em torno
do próprio umbigo
Estes versos
enfatizam que, embora se confirme a unicidade do ser, ninguém consegue viver as
experiências da vida, sozinho, considerando tão somente seus próprios defeitos,
suas próprias qualidades. “Não encarar o mito de Narciso” significa não ficar
apaixonado por sua própria beleza, pelo seu próprio eu físico. Narciso,
personagem da mitologia grega, filho deus de Cefiso e da ninfa Liríope, por ser
apaixonado por sua própria beleza física, tornou-se o símbolo da vaidade, o que
no mundo de hoje, tem induzido a sociedade ao culto da beleza, levando muitas
pessoas a um transtorno obsessivo pela própria imagem corporal. Quanto ao verso
“vivendo em torno do meu próprio umbigo”, ainda que não aceitemos, no mundo da
vida, a nossa unicidade se faz presente em nossos atos, o que é confirmado por
Bakhtin (2010 a [1920], p.43), quando observa que o “ato da atividade de cada
um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas
direções opostas”. A nossa própria unicidade nos remete às dualidades, às
contradições.
9) boa,
má?
certa, errada,
ora sim, ora não .
“Boa,
má; certa, errada; ora sim, ora não” são versos que refletem justamente o que é
o espírito não totalmente evoluído, mesmo quando não se encontra no plano da
erraticidade. Somos bons ou maus, dependendo do contexto, da situação e das
pessoas com quem convivemos. Para alguns, muitas das nossas ações são tidas como
boas; para outros, podem ser a causa de uma ferida que deixou marcas. Temos
atitudes certas e outras também erradas, em determinados momentos de nossa
vida. Como somos seres inconclusos, a nossa inconclusibilidade nos pode
remeter, dependendo do nosso nível de discernimento, para o acerto ou para o
erro. Ora acertamos, ora erramos e essa avaliação se constata com as possíveis
interações que realizamos com o outro em nossas experiências de vida. A nossa preocupação em saber como os outros
nos definem é que nos fazem, na maioria das situações, saber quem somos nós,
como nós estamos e como nos vemos. Com base nessa concepção, Bakhtin (2006
[1979], p. 341) observa que “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo
unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do
outro”. Sem o outro, sem a interação o outro para mim e eu para o outro, se
torna mais difícil termos um nível de consciência do nosso próprio eu.
9)
antíteses me (in)definem...
Somos
seres dualísticos? Nossa persona, o retângulo ou o quadrado de nossa máscara se
deixa ilustrar por antíteses? Essa
resposta é facilmente encontrada, quando estamos em um grupo de amigos e
perguntamos sobre como consideram ou veem a personalidade de uma pessoa. As
respostas são as mais divergentes possíveis. Neste verso, a autora, após
mostrar vários aspectos que se contrastam, se coloca como uma antítese, uma
pessoa que se revela por meio de contradições e que, ao mesmo tempo, permanece
como uma incógnita, porque nem mesmo as antíteses conseguem defini-la
completamente. Somos assim: seres incompletos, seres inconclusos. E essa nossa
incompletude faz com que nossas ações nem sempre permaneçam com as mesmas
intenções, com os mesmos propósitos.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal.Trad. do russo por Paulo Bezerra.5ª.ed.São
Paulo:Martins Fontes, 2006 [1979].
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e
Alberto Faraco. São Carlos: São Paulo: Pedro & João Editores, 2010a [1920].