CONTE-ME UM CONTO|06
A M Ã O E O E S P E L H O
Por Margarida Montejano
Era uma sexta-feira comum numa cidadezinha
pacata do interior de São Paulo. Éramos jovens funcionários de um banco,
na casa dos 20 anos. Eu, Márcia e meu amigo Jorge sentados em guichês
coligados, esperando os clientes do banco chegarem.
Sim. Trabalhávamos como caixas bancários,
naquele tempo em que não havia caixas eletrônicos e o atendimento era mecânico
e humano simultaneamente, tínhamos que executar as operações monetárias e, ao
mesmo tempo, agradar o cliente, pois era essa a política para se manter no
emprego. Pois bem. Havia alguns dias no mês em que o trabalho era raro.
Tínhamos que nos cuidar para não cochilar.
Num desses dias, apesar de me mostrar
sempre animada e criativa para passar o tempo, estava meio entediada, pois as
horas não passavam. Foi então que meu colega Jorge provoca, dizendo:
─ Não é
você que sempre arranja um jeito de nos animar? Qual talento usará hoje para
que o tempo passe depressa?
Pensei um pouco e, como adoro ser
desafiada, fui logo dizendo:
─ Me dê
tua mão!
─ Por quê? Vai me pedir em casamento?
Olhei paro os olhos dele e falei sério:
─ Jorge. Dentre os talentos que tenho, há um
que você não conhece. Eu leio mãos. Pratico quiromancia.
Ele olhou-me incrédulo, duvidando. Foi
então que o desafiei:
─ Vamos!
Me dê sua mão esquerda!
Ele, em meio àquela calmaria, olhou e viu
que não vinha ninguém em direção aos caixas. Esticou o braço e estendeu a mão.
─ Quero ver isso!
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Foi aí que tudo começou. Como alguém que
entendia do assunto, fui logo lançando meu olhar na direção das linhas daquela
mão jovem e magrela, que se encontrava, naquele momento, úmida de suor. Estava
meu companheiro nervoso e eu me divertindo um bocado.
─ Anda, Márcia! Por que essa demora? Dizia
meu colega aflito com receio que chegasse algum cliente.
Séria, como se visse algo nas linhas de
sua mão, relatei a ele o texto que em minha mente se formava:
─ Jorge. Você irá se transferir de agência…
será promovido em breve e, após formar-se na faculdade, se casará com uma jovem
que não é a sua atual namorada. Pronto.
Importante dizer que as palavras descritas
a ele eram uma projeção possível, pois eu o conhecia há um bom tempo: ele era
um bom funcionário, dedicado e com potencial para liderança, logo uma promoção
teria muita chance de acontecer. A transferência, uma possibilidade real para
todos nós que lá trabalhávamos, também era fato. Muito bem. Com relação ao
futuro afetivo de Jorge, eu também já tinha os dados. Ele estava terminando o
curso superior e o namoro dele, pelo que ele mesmo contava, ia de mal a pior.
Conclusão. Brinquei com Jorge e fiz a
previsão de seu futuro considerando as possibilidades.
Ele ficou pensativo, mas logo os clientes
vieram e tratamos de esquecer essa brincadeira de desocupados. Seguimos por
cerca de uns três meses trabalhando, levando a sério as atividades a nós
confiadas e nos ocupando de passar o tempo com criatividade, o tempo que nos
rodeava.
Jorge, um belo dia me chama e
diz:
─ Márcia! Não é que você adivinhou mesmo!
Recebi uma promoção e terei de me mudar de cidade.
─ Que bacana, amigo! Eu disse
surpresa!
─
Fico feliz por
você!
E assim Jorge foi para outra cidade, outra
agência e eu fiquei sem meu companheiro de trabalho e de assuntos aleatórios.
Não é que, em uma manhã, eu ainda não
havia assumido os trabalhos no caixa, pois faltavam 50 minutos para a agência
bancária abrir, uma funcionária me chama e avisa que havia uma mulher à minha
procura, dizendo-se ser a mãe de Jorge. A dona Odete.
Fui, é claro, atendê-la, como fazia com
todos que me procuravam na agência. Ofereci a ela um café e já embalei na
pergunta:
─ Bom
dia, dona Odete! Em que posso ajudá-la?
Ela pediu para falar comigo em particular. Levei-a até a cozinha que estava
vazia naquele momento.
─ Márcia!
Leia minha mão? Disse-me ela de forma direta.
─ O quê? Engasguei com o café. Não
estou entendendo!
─ Márcia, você leu a mão de meu filho
e você acertou. Está acontecendo tudo o que você viu nas mãos dele. Ele se
mudou de agência e cidade, foi promovido a gerente e você acredita que ele
rompeu com a Cris e está super apaixonado por Paula?
Naquele momento lembrei-me de minha
travessura lendo, de forma inconsequente, as mãos de Jorge. Tremi nas bases.
Respirei e expliquei a ela que eram coincidências, pois eu havia brincado com
Jorge. Que não lia mãos.
Ela foi logo pegando em minhas mãos e
oferecendo as suas, implorando para que eu as lesse.
─ Dona Odete. Ouça-me. Eu brinquei com
Jorge. Não leio mãos, repeti:
Ela com os olhos cheios de lágrimas me
implorou.
─
Moça. Por favor!
Diga-me alguma coisa, pelo menos! Eu estou a um passo de explodir, de fazer uma
loucura!
Estava desesperada, com os olhos tomados
de lágrimas. Era visível a necessidade daquela mulher de ser ouvida. De receber
atenção. De um ombro, um colo, uma palavra! Sentamo-nos no banco daquela
cozinha gelada como todo ambiente bancário, peguei as duas mãos da senhora
aflita à minha frente, e disse:
─ Fala-me: o que está acontecendo? Rendi-me
ao pedido.
E ela falou da traição e separação do
marido que tanto amava, das dificuldades que tinha com os filhos mais novos e
do medo de não conseguir lutar e seguir sozinha, pois estava a ponto de
desistir de tudo.
Ela desabou ali e contou-me de suas dores.
A mim, uma mulher desconhecida.
Ouvi com atenção cada palavra. Ela chorou
e eu chorei junto com ela. Quando ela parecia mais calma e recomposta, eu
disse:
─
Odete. Vou lhe
chamar assim. Não preciso ler tua mão. Você vai vencer essa tormenta, porque
você é mulher e, por isso, é forte. Vai enfrentar a adolescência dos filhos com
coragem, porque você é mãe e os ama e vai ainda ser muito feliz. É esse o seu
desejo e também porque o mundo não acaba quando um casamento não dá certo.
Creia nisso! Acredita. Tudo se encaminhará!
Ela secou os olhos vermelhos com as mãos.
Agradeceu-me por ouvi-la e saiu.
Naquele dia, a agência lotou de clientes e
eu mal tive tempo de pensar no que havia se passado na cozinha. De organizar as
ideias. De respirar, de entender o ocorrido naquela manhã.
Passou o tempo, desliguei-me do banco,
formei-me professora, casei-me e fui morar no Rio de Janeiro.
Um belo dia, em visita à cidade natal,
estava eu na farmácia São José, sendo atendida por um balconista, quando,
dentre outros clientes que também esperavam no balcão, uma mulher reconhece
minha voz e, sem demora, me aborda!
─
Moça. Dá licença.
Você não é a Márcia que trabalhava no banco com o Jorge, meu filho?
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Eu gaguejo, olho nos olhos dela e a
reconheço. Estava mais envelhecida, mas ainda muito bonita. A senhora é a…
─ Odete. Sim, mãe do Jorge!
Enquanto o balconista providencia minha
compra, converso com ela:
─ Olá Odete! Prazer em vê-la! Eu disse meio
espantada.
─ Como a senhora está? E seu filho? Eu
gostava muito de trabalhar com ele!
Ela esperou eu terminar de ser atendida,
puxou-me pelo braço num canto da farmácia e foi logo dizendo:
─ Nossa, menina! Como eu a procurei! Muito
obrigada! Preciso dizer que tudo o que você falou para mim, naquela cozinha,
aconteceu!
Emocionada pegou minhas mãos e apertou-as
como se quisesse transpor a mim sua energia. Sua gratidão.
Aos poucos fui me desvencilhando das mãos
da bela senhora e fiquei por uns segundos olhando-a. Um tempo de um raio ou de
uma eternidade durou a cena. Só sei que foi o suficiente para lembrar-me de
tudo o que aconteceu e pude dizer a ela, com detalhes, o que senti naquela
manhã no banco.
─ Dona Odete. Naquele dia eu não fiz a
leitura de sua mão. Eu não podia atender seu pedido, porque seria imprudente
fazer aquilo. Mas, eu fiz a leitura das minhas mãos, das nossas mãos.
Quando a ouvi, entendi o quanto precisamos,
nós mulheres, umas das outras e, não importa o quanto somos próximas ou
distantes, nos fortalecemos quando estamos juntas. Quando nos ouvimos, quando
nos damos as mãos!
Ela me olhava atenta e eu respirei fundo e
continuei:
─ Quanto às palavras ditas naquele
dia, é preciso que eu lhe diga: mirei os seus olhos marejados e, naquele
momento, eles pareciam um espelho. Um espelho refletindo… e, o que eu neles lia
e repetia em voz alta, eram os seus desejos.
─ Sou também grata por aquele momento,
Odete! Aprendi muito. Boa sorte a você querida!
Sequei meus olhos com uma sensação
estranha, mas feliz. Me despedi dela e saí da farmácia com o espelho na mão, o
qual eu acabara de comprar.
(Margarida Montejano, in Fio de Prata,
2022)