Por
Marta Cortezão
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Fonte: @artivistha - Thais Trindade |
Pela primeira vez,
na história das Olimpíadas, o Brasil levou uma delegação, em sua maioria,
composta por atletas mulheres. Um
registro significativo dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, que tem suscitado
profícua discussão sobre paridade de gênero pelo mundo. Até o momento que
escrevo esse texto, são 14 medalhas olímpicas, sendo duas de ouro, 5 de prata e
7 de bronze. Nesta conta que não fecha, o destaque é das esportistas mulheres
com 9 medalhas, mas o protagonismo é negro, assim como é negro o ouro do Brasil
machista, misógino e racista.
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Fonte: @artivistha - Thais Trindade |
No contexto desta
equação machismo + discurso de ódio + aversão às mulheres e a tudo que é
relacionado ao universo feminino, temos como resultado a crescente violência
contra as mulheres que multiplica o número de feminicídios e os casos de
estupro. Os registros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam a brutal
cifra de 83.988 casos registrados, em 2023. É assustador pensar que uma mulher
é estuprada a cada 6 minutos e que as maiores vítimas do crime de estupro são
meninas negras de até 13 anos.
No momento que
escrevia o parágrafo anterior, lembrava do poema Não há oásis no deserto,
da escritora gaúcha Cátia Castilho Simon, publicado na coletânea Se Essa Lua Fosse Nossa (Ser
MulherArte Editorial, 2021):
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Fonte: Pinterest |
Não há oásis no deserto
Hoje foi a vez da diarista e outras mais
O jornal anunciou o assassinato de cinco mulheres por seus homens
Outro dia uma juíza foi morta na frente das filhas
Em outros dias, horas, meses, anos,
Agora, agorinha
Por séculos dos séculos, amém e ai de nós
Elas têm se revezado como em uma corrida em meio ao deserto
Uma a uma acredita no oásis e sucumbe:
A bruxa
A frentista
A cabeleireira
A advogada
A professora
A escritora
A costureira
A médica
A manicure
E assim vão morrendo de morte matada, todas
Não há filhas nem filhos capazes de salvar daquele que se entende
escarnecido, ainda que seja o pai
Era necessário esfaquear dezesseis vezes para que voltasse ao seu lugar
Sucumbir diante das filhas ou filhos é um morrer sem fim,
É cortar o osso e segurar a dor
Doca Street, o assassino de Angela Diniz, morreu aos 86 anos há poucos
dias. Morreu de morte natural, 44 anos após o crime, como um justo que nunca
foi.
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Fonte: @artivistha - Thais Trindade |
É nesse palco,
onde a tragédia da vida real segue sendo representada initerruptamente, que os
feitos olímpicos de Paris 2024 ganham relevância nas vozes das protagonistas
atletas mulheres: “Mulherada, pretos e pretas é possível”, disse Beatriz Souza
quando recebeu sua medalha de ouro; a ginasta Rebeca Andrade, após vitória
reafirmou a sua felicidade em “representar a negritude”; Dayane Santos, após
pódio de Simone Biles e Rebeca Andrade, não economizou palavras para falar desde
esse lugar-de-dor-ausência da mulher negra, trazendo para a cena do discurso a
questão necessária sobre a representatividade preta: “Ela representa todos. Mas
a representatividade de 56% de uma nação, que é excluída, subjugada, que muitas
vezes quando ganha é pertencente. [Mas] e quando não ganha? [...] Tomara que as
pessoas reconheçam o valor dessas mulheres pretas”; ainda, para delírio dos
racistas, a imagem preta, no pódio, da reverência de Simone Biles e Jordan
Chiles à brasileira Rebeca Andrade correu o mundo, selando, com medalha de
ouro, mais um capítulo histórico que marca o lugar de fala como um ato político
de resistência, de luta e, especialmente, de pertencimento.
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Fonte: @artivistha - Thais Trindade |
A
importância destes eventos contraditórios é perceber que há um movimento de
mulheres conscientes da vida fronteiriça que nos subjuga e nos maltrata,
mulheres conscientes das lutas necessárias e que sabem do poder de
transformação dos discursos e das ações e causas políticas, feministas,
antirracistas que caminham na contramão de tudo o que representa o patriarcado.
E não estamos sozinhas, pois como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se
movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Sueli Carneiro se
une a Davis quando toma a palavra e diz, em primeira pessoa: “Nós, mulheres
negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro,
somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre
ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real
e efetivo de integração social”. A poeta ativista, feminista, Jeovânia P., também entra
neste importante diálogo com o seu poema:
Falsa igualdade
Aqueles que pensam
que o vírus é igualitário
Se enganam
Ele tem endereço
certo para levar a morte
Os corpos
estendidos na frente dos hospitais lotados
Sabem bem que eles
são alvos de extermínio
Quem nada tem para
comer
Com o corpo fraco
Com baixa
imunidade
Sabe o quanto lhe
cabe e é para si essa morte
Que ronda as
cidades
São os pobres
São os pretos
Que ficam lançados
no vazio do descaso
Que nem
contabilizados são
Apenas restam mais
um e um… corpo no chão
(fonte: https://revistaacrobata.com.br/anna-apolinario/poesia/4-poemas-de-jeovania-p/)
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Fonte: @artivistha - Thais Trindade |
Contar
a própria história é um ato político. Falar da repressão de nossos corpos é
libertador, é uma potente ferramenta de luta feminista. É preciso nunca
esquecer que o patriarcado se coloca como ordem e se propaga através da
linguagem com sua eterna narrativa simbólica. O racismo, assim como todos os
preconceitos, é um ato de fala, portanto, contradizer o patriarcado será a
nossa canção monódica, no sentido de que é um canto triste, porém, uma Canção
dos corpos imprescindível, como sugere a poeta macapaense Leacide Moura, a
ser entoada por uma legião de bruxas-mulheres (e desejamos que também seja
entoada por homens que se unam à causa) que se sublevam e que não se calam
diante do projeto patriarcal que é silenciar mulheres. O objetivo será sempre
problematizar para avançar nas conquistas e reconquistas. Será esta atitude que
nos colocará no caminho de um Feminismo Humano, esse lugar do exercício
linguístico como forma de resistência.
Canção dos corpos
Sob o luar
Ao longe
Ouço o uivo das lobas
Bruxas em círculo de
irmandade entoam
Canções de liberdade
Entre as árvores
As estrelas brilham
Enquanto o patriarcado
ataca
Elas atiçam o fogo
Em danças circulares
Acordam ancestralidades
Declaram que seu corpo
Não tem
proprietário
Num coro ritmado
Entoam
As canções dos corpos
Que falam.
Somos
mulheres sobreviventes de um sistema que oprime e mata. A nossa revolta é
legítima e política porque, não só nos conecta com outras mulheres, mas com
nossa própria essência. Que nos emancipemos do patriarcado, que nos autorizemos
a dizer sem medo, a construir espaços para diálogos conscientes através de
nossas lutas.
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Cátia Castilho Simon é escritora, doutora em estudos da literatura
brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Publicações solo: Nos
labirintos da realidade – um diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis
(Prêmio UBE/RJ, 2014); Por que ler Clarice Lispector? (POA:TDA, 2017); Rastros
de Estrela (contos), 2022; Não há oásis no deserto (poesia) – Venas
Abiertas, 2023; Brigite – (infantil), ilustração Liana Tim, 2023. É
coorganizadora do Digressões Clariceanas, desde 2021. Integra o Mulherio das
Letras/RS, é vice-presidenta cultural da AGES, 2023/2024.
Jeovânia P. é escritora, professora, mestre em Filosofia. Nasceu
em Natal/RN, vive em Bayeux/PB. Publicações: seis livros poesias, um de contos,
e organizou nove coletâneas. Tem o selo e o canal no YouTube Literatura
Feminina, onde desenvolve o projeto “Bom dia com literatura feminina!”. Faz
parte da UBE/PB. É patrona da cadeira 27 da Academia Bayeuxsse de Ciências,
Letras e Artes. Participou da XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.
Leacide Moura nasceu à meia noite, no meio do mundo, na lua nova,
às margens do Rio Amazonas, em Macapá/AP, pelas mãos de parteira tradicional. É
mãe, avó apaixonada de Maria e Arthur, professora, sindicalista, ativista da
literatura, meio ambiente e empoderamento feminino. É da prosa e do verso,
organiza obras e tem participação ativa na literatura nacional.