Por Heliene Rosa
Nesse momento em que escrevo, sou
tomada por gratidão e ternura; ao mesmo tempo em que me sinto em débito com a
querida poeta Graça Graúna. Eu posso explicar o motivo: fui convidada para o
lançamento virtual de seu mais recente livro, onde deveria declamar um belíssimo
haikai presente nessa obra e que fora ofertado a mim, de forma muito graciosa,
por ela mesma. Então aconteceu o fato inesperado, por problemas de
instabilidade na rede da internet, eu não consegui adentrar a sala virtual do
evento.
Assim, quero aproveitar para me justificar de modo público e inadiável. Devo
confessar que não se trata de tarefa difícil ou desgastante, já que a leitura
foi deliciosamente desfrutada e venho aqui alegremente compartilhar um pouco
desse prazer. Não antes sem, novamente agradecer a nossa querida poeta, minha
amiga Graça Graúna, pela oportunidade do deleite poético, compartilhar alguns
momentos da agradabilíssima leitura e recomendar o livro, pois sei que irão
apreciar.
O lançamento de Fios Do Tempo: quase haikais consolida uma
costura poética da sensível escritora indígena brasileira Graça Graúna. O
conjunto de sua obra evidencia um importante movimento de luta por visibilidade
e respeito para o seu povo Potiguara, para os povos originários, de forma ampla
e, sobretudo para as mulheres.
Esse protagonismo feminino vem desaguar em um contexto maior: as lutas
do Movimento Indígena Brasileiro, cuja consolidação se deu, de forma mais
perceptível, a partir da década de 1980. Nesse contexto, além da produção
literária rica em narrativas ancestrais e em refinada poesia, Graça Graúna tem
se dedicado a uma bem sucedida carreira acadêmica, na qual a prática docente, a
pesquisa e as contribuições para o arcabouço teórico dessa vertente da literatura
brasileira contemporânea caminham juntas e permanecem atreladas.
A poeta potiguar possui diversas outras obras,
entre elas: Canto Mestizo, publicada pela Editora Bloco no ano de 1999,
na cidade do Rio de Janeiro; Tessituras
da Terra da Editora M.E Tânia Diniz, em Belo Horizonte, em 2000; Tear da Palavra, também editado na
capital mineira e lançada no ano 2007; Criaturas
de Ñanderu, obra infanto-juvenil publicada em 2010, pela Edições Amarylis
‘Selo Manole’, na cidade de Barueri, n o interior do Estado de São Paulo; Contrapontos da literatura indígena
contemporânea no Brasil, lançada no ano de 2013, em Belo Horizonte-MG, pela
Mazza Edições; e Flor da Mata, em
2014, pela Peninha Edições (BH).
Na sequência, lançou no ano de 2021, na bela cidade do Recife pela Editora
Baleia Cartonera, essa magnífica obra Fios Do Tempo: quase haikais que é,
ao mesmo tempo, singular e complexa em sua tessitura. Nela há recortes,
dobraduras, trilhas e fios de algodão encobrindo um conjunto de admiráveis
haikais, em que a poeta faz jorrar flagrantes do sensível, em intensa magia e feminilidade.
No miolo, páginas cuidadosamente recortadas por onde voam e cantam pássaros
de variadas espécies, tangidos pelo vento e atraídos por quaresmeiras, ipês, cajueiros
e hibiscos em flor. As aves seguem o vento, por entre matas e rios e acabam por
se deparar com redes elétricas e edifícios. Nessa encantada trajetória, volitam
ao som de flautas e de cantos ancestrais. Enquanto seguem por esse fio mágico,
galanteiam para acordar as cidades e espantar os males.
A composição da paisagem poética
se concretiza na multiplicidade de vozes e de identidades. Atendo ao chamado e,
logo ao iniciar a leitura, a epifania. Um lampejo e já caí de encantos por um
mensageiro xamã, na fugaz figura de um beija-flor. Amanheço na aldeia e sigo a
trilha do vento, com olhos cafeomantes, miro a revelação: a imagem andarilha me
traz à retina, o reino de Ameríndia e então celebro, junto aos indígenas, a alegria
de pertencer a esse chão sagrado: “Viva!”.
No percurso, o voo dos pássaros-origami na Praça da Liberdade me lembra
que há vida também na selva de concreto: Freedom? O cheiro da maresia acalenta
a lembrança do Caribe e seus negros ritmos: os blues e o esverdeado do mar
entorpecem meus sentidos. De longe me chega o lamento do Cais do Valongo, apuro
os ouvidos e reencontro meus irmãos expatriados. Novamente, me sinto invadida
por um desejo ancestral de liberdade. Quase sem perceber, contemplo a tarde que
vai se findando na trilha imaginária, onde, na grande oca, um “pajé tange o
inverno” ao som de flautas para chamar Poesia: “escrever é resistir”. Arrepios!
Em busca da cura, a pena da poeta
“desliza e as palavras derramam sangue no papel”. Enquanto a autora confabula
com parentes e escuta a Mãe-Terra, pássaros cantam para afastar os males e “um
preto velho sonha na estação do metrô”. No campo e nas cidades, os dias e
noites se sucedem ao som das maracas e do vai e vem das ondas do mar: “a água
tem memória”.
Os fios do tempo, poeticamente tecidos, desenham graúnas que, ao final
da tarde, dormem dentro da mata. O desenrolar desses fios acorda manhãs que, embaladas
por cantigas de roda, despertam a cidade com o calor morno do sol. No caminho
da volta, a poeta maneja a palavra que se dobra, docilmente à sua pena. E a
poesia se faz entre as flores das mangueiras “nos quintais vizinhos” enquanto pardais
famintos devoram restos no “chão da rodoviária”.
Ao lado dos canoeiros, das lavadeiras, dos pajés, dos barqueiros e dos
parentes indígenas, a poeta e sua pena dialogam com culturas orientais e
ressignificam a natureza. No cenário inóspito dos arranha-céus, enquanto se
aguarda o abraço do sol, a pandemia vai se travestindo de inverno. A poesia,
nesses quase hailkais, abre suas velhas asas e, ao final do entretecido poético,
reflito a respeito da indagação da sábia tecelã indígena: “se eu parasse de
escrever respiraria?”
Para continuar conhecendo a poeta Graça Graúna,
encontre-a em seu blog: https://gracagrauna.com/
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