Crônica /02
A SOPA E O ÓDIO, de Márcia Antonelli
Eu só queria tomar aquela sopa em paz...
Fazia um início de tarde agradável e eu então parei em uma das feiras da Manaus moderna para tomar uma sopa. Uma sopa encorpadinha com direito a todos os condimentos possíveis que só ali teria a certeza de encontrar, como já acontecera em outras ocasiões. Então eu olhei sorrindo as nuvens harmoniosas no céu e entrei decidida naquele estabelecimento que ficava bem próximo à feira da Banana. Entrei e me sentei regozijada com o cheiro de sopa e com o frescor de vento agradável que vinha do rio. (Não sei por que eu me sentia tolamente feliz.) Uma moça muito simpática veio me atender. Pedi-lhe então a sopa. Aguardei. O movimento era grande. As pessoas comiam satisfeitas ao meu redor. Depois de alguns minutos, veio-me a sopa. Ela fumegava. Cheirava bem. Sorri pra sopa. Ela, pra mim. Sorrimos pra vida. Quando de repente – creio que foi na segunda ou terceira colherada daquela sopa, não me recordo bem – ouvi um resmungo ao meu lado:
“Isso lá é mulher porra nenhuma fulana, isso é um viado!” Apenas ouvi e continuei tomando minha sopa. “Viadão do caralho! Isso aqui tá cheio de viados!” Continuou a voz ao meu lado. Olhei discretamente. Tratava-se de um senhor de meia idade, gordo e um rosto redondo e avermelhado da cor de um camarão. Ele não podia estar se referindo a mim, por isso continuei a tomar minha sopa tranquilamente. Mas ele insistia: “Isso não é cabelo de verdade, isso é peruca! Viadão do caralho, quer ser mulher esta porra, mas não passa de um viado!” Concluí que a provocação era mesmo para mim. Continuei a tomar minha sopa serenamente. Ela fumegava. Me enchia os olhos de lágrimas. Pensei em minha mãe que fazia uma sopa deliciosa, uma sopa da hora com toda felicidade em seu coração. Ah, estas recordações! Sempre me invadem nessas horas. “É por isso que este mundo tá assim! Viado filha da puta!” Minha mãe tinha uma receita de pãezinhos que acompanhavam uma boa sopa, herança de minha vó. Eram uns pãezinhos franceses picados em rodelas cobertos com colheres de azeite e sal a gosto. Ficava uma delícia.
“Olha como ele
toma a sopa, esse viadão! Isso é viado, isso não é mulher não!” Ela também,
minha mãe, usava pitadas de oréganos frescos ou manjericão picadinhos. Os pãezinhos
ficavam douradinhos, douradinhos. Acho que nunca mais vou provar uma sopa dessas
em minha vida. Não vou mesmo. “Viadão, vai pagar no inferno viado filho do caralho!”
Não sei se eu lagrimava por causa daquela sopa igualmente deliciosa, ou se lagrimava
em razão de minhas lembranças momentâneas. Olhei ao redor. As pessoas olhavam
para mim como se aguardassem uma resposta; uma atitude, sei lá. O distinto senhor
batia com raiva a sua latinha de cerveja sobre a mesa, brandindo: “Viadão! Isso
não é cabelo de verdade não, fulana, isso é peruca!” Eu degustava de verdade
aquela sopa, ela me descia bem, me fortalecendo os nervos e a alma. Me trazia
lembranças maternas. A garçonete me trouxe uma água e me perguntou se estava
tudo bem. Disse que sim, sorrindo. Que a sopa estava ótima. Degustável.
Mantive-me mesmo tranquila. “Bichona escrota, rá rá rá rá rá...” Minha mãe
também sabia fazer uma sopa de hortaliças como ninguém. Ela dissolvia o caldo
de galinha na água quente, cortava as batatas, cenouras e cebolas em rodelinhas
e depois refogava-os no azeite por alguns minutos... ah, também tinha as
abobrinhas que ela cortava em cubos...Minha mãe fazia uma sopa como ninguém. “Viado
tem é que morrer! Pá pá pá pá pá!” Enxuguei minhas lágrimas com um lenço. Eu corava de
dor de saudades. Um momento de minha vida que ficou lá atrás e que nunca mais
voltaria. Minha mãe costumava dizer que o ódio é uma doença do coração e por
isso devemos combater o ódio ignorando-o sumariamente. Os líderes com suas
palavras e ações instigam o ódio no coração das pessoas. Vivemos o tempo do
ódio. Após épocas de civilidade e contenção, parece que o ódio enfim se
libertou das correntes morais e invadiu a vida social desse nosso difícil
século XXI. Sem remorso o ódio berra e vinga para todo lado. Brande. Late. O
senhor de baixo QI ao meu lado sentia ódio de mim. Se pudesse, ele me
agrediria. Mas ele não pode. Ninguém pode. Vi uma única vez seu rosto branco,
largo e vermelho da cor de uma lagosta me dizendo aquelas palavras duras. Mas,
quanto mais ele me agredia mais eu me sentia forte. Mas eu sentia gosto na
sopa. Era uma sopa simples, mas recheada de verdurinhas e muito da sua
saborosa. E também havia o frescor daquele início de tarde de sábado que nunca
mais vou esquecer. Não sei o que é o ódio. Mas sei que ele existe. Existe na
exata medida da infelicidade na qual vivemos.
Terminei a sopa e fiquei olhando outra vez as nuvens azuis harmoniosas
no céu. Deslizei suavemente minhas mãos sobre aquela toalha de mesa rosa e bem
decorada e sorri, pedindo a conta. Definitivamente o ódio é para os fracos.
Para aqueles que têm um coração bem pequeno. Pensei esta frase antes de partir.
Antes mesmo de ouvir o distinto senhor a brandir desesperado pela última vez:
“Viado filha da puta, deixa ele...”
Nossa! Essa sopa me deixou com água na boca!
ResponderExcluirQue exemplo de ser humano!
Abraços direto da Alemanha! 🥰
Obrigada pela leitura, Ale. Preciso trazer algum de seus velos poemas para nosso Catálogo Virtual de Autoras. É só enviar um ou dois poemas, junto com uma pequena bio de 4 linhas para o e-mail martabartez@gmail.com Um forte abraço
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