domingo, 23 de janeiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|02

Por Carollina Costa


É comum que, ao crescer, todos escutemos pessoas de todos os lados dizendo o que devemos fazer, ser, vestir, comer, dizer... No geral, isso tudo um dia passa e se ganha liberdade para viver a vida com sua própria graça, mas para a mulher é diferente. Algumas têm a sorte de alcançar essa liberdade normalmente, mas muitas outras somam os dizeres da casa com os da sociedade e se mantém reféns de opiniões, objeções, gostos e desejos alheios, a ponto de sequer saberem se algum dia tiveram algum desejo, alguma ambição qualquer. No meu conto "Casinha", narro a história de uma menina que segue para a vida adulta emaranhada nas  histórias dos outros e no fim, ao esvaziar-se de tudo, se preenche de si mesma.


C A S I N H A

 

Havia uma menina. Uma menina que foi ensinada a querer, a viver, a agir, a ser.

Ela queria o que queriam para ela, sonhava os sonhos sonhados para ela, era e se portava de acordo com o que fora planejado para ela. Não que isso fosse bom ou ruim, apenas era tudo o que ela conhecia. Até o sentimento de felicidade fora planejado para ela. E ela o sentia como se fosse seu.

Até que um dia ela acordou mulher e se viu numa casa a qual não pertencia, em um casamento que ela não reconhecia e com um homem que, apesar de aparente semelhança, nada tinha a ver com seu noivo da época —e não é como se tudo estivesse melhor. Precisava pagar a dívida dos pais, já tinha netos que nunca vira —mas eram só bebês, então perdoava-se— e, em um instante, ela reconheceu que ela não era ela. Montada como um quebra-cabeças feito de peças que não se encaixam, ela era aquela que acordava todos os dias para honrar o trabalho que não escolhera e a vida que não viu se formar. Estava, sim, sobrevivendo, mas isso já não bastava.

Por até então não saber que poderia ser diferente, ela fez logo o que devia: resolveu os problemas que não eram dela, abandonou aqueles que eram seus, fez da angústia sua melhor amiga e dos pássaros os seres que mais invejava. Achava que a vida era isso — quando não duvidava se sabia mesmo o que era a vida — e seguiu, até seu coração parar. Não o físico, porque este andava bem, mas o da alma.

Ao despertar, não demorou para acarretar decisões. Terminou o casamento já acabado, deu adeus aos sonhos de seus pais, desistiu do faz de conta e, finalmente longe, livre e abatida, cruzou novos mares na esperança de se refazer em outros lugares para compensar o despedaço do vazio que tanto carregou dentro de si.




domingo, 16 de janeiro de 2022

MOMENTO COM GAIA: Poesia em tempos de pandemia|83

 



Momento com Gaia/83


Esse projeto, de autoria da poeta Janete Manacá, nasceu em 16 de março de 2020, com a chegada da Pandemia causada pelo novo Covid-19. Por se tratar de algo até então desconhecido, muitas pessoas passaram a desenvolver ansiedade, depressão e síndrome de pânico. Com o desejo de propiciar a essas um “momento poético” no conforto dos seus lares, toda a noite é enviado, via WhatsApp, um áudio com poesias de sua autoria para centenas de pessoas do Brasil e de outros países. E estas são replicadas pelos receptores. Acompanhe o poema abaixo:


                                                                      Por Janete Manacá

Para ouvir o PODCAST clique AQUI.


Em estado de alerta


mesmo enquanto eu dormir
que o meu inconsciente esteja alerta
para os teus ensinamentos seguir

a veneração que sinto por ti 
não tem limites, nem fronteiras
é um voo de entrega, sem barreiras

todos os meus sonhos
repousam sobre o seu corpo
expressão do amor universal

que as letras formem palavras
na inquietude dos meus versos
e expressem a grandeza do teu afeto

que eu possa cada vez mais
cultivar a terra para receber sementes
e fazer de cada deserto um oásis

que as minhas poesias sejam orações
a reverberar em cada coração
o cuidado e a dedicação dos guardiões
enfim que as minhas lágrimas
sejam celebrações de alegria
por um amanhã de esperança e sabedoria




CONTE-ME UM CONTO: IDENTIDADE(S) E CALCINHA(S), POR DALVA LOBO

 


CONTE-ME UM CONTO/05


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


IDENTIDADE(S) E CALCINHA(S)

Por Dalva Lobo 


Pedaços de mim espalhados entre palavras que busco tentando encontrar a rima perfeita para esse dia que termina. Não há rima, apenas o ritmo do mundo acontecendo. Uma nota de melancolia surge.  Sempre pode surgir, nada de novo nisso. O novo é a forma de lidar com ela, percebendo nesse exato momento melancólico, o desejo de deixar a “identidade” em casa, dessa vez o desejo assumido, não o ato falho de “esquecer de levar calcinha na viagem”. Engraçado, nunca esqueci a calcinha, aliás, tenho montes delas, cores, texturas, tamanhos. Duas gavetas. Como alguém se esquece de levar a calcinha para a viagem?

Por que é tão bom deixar a identidade em casa? Abrir espaços para outras identidades entranhadas e adormecidas? Quem sabe um pequeno jogo de esconde-esconde, perverso às vezes, é verdade, mas também, extremamente sedutor.

        Entre mim e meu(s) desejo(s) muitas cores; algumas vibrantes, outras “pasteis” como podem ser as identidades em alguns momentos, socialmente vestidas para matar, matar o desejo com ares de plena seriedade, identidades “pastel”, serenas e inofensivas, até.  Passam ao longo do tempo misturadas à massa mundana sem qualquer ímpeto. Essas são as mais vistas e bem-vistas, diga-se de passagem.

Mas há as identidades coloridas, como o desejo, vibrantes... e de várias texturas, assim como as calcinhas. Para elas, gavetas especiais, afinal são identidades coloridas, merecem ser separadas por cor, textura, tamanho.  Um luxo de fazer inveja a qualquer... bem... “calcinha”?  Não importa, sempre podemos ter gavetas para calcinhas e identidade(s).

Por falar nisso, gavetas são muito interessantes. Pequenas ilhas nas quais guardamos “coisas” como se em algum momento não houvesse a tal confusão de guardar a identidade na gaveta das calcinhas!  Às vezes, deliberadamente, para não esquecer nenhuma na viagem.

Gavetas com pequenos compartimentos para separar documentos, meias, absorventes, perfumes, bijuterias, penduricalhos e todo treco que não nos interessa “naquele momento”, ou que nos interessa por demais. Lembranças. Gavetas são ilhas de lembranças de toda sorte – boas, engraçadas, estranhas, tristes (que juramos jogar fora um dia).

Gavetas são ilhas em que guardamos partes de nós, de nossas identidades e de nossas calcinhas. Gosto de gavetas, mas por algum (des)-cuidado acaso, em algum momento tudo se perde dentro delas e então a angústia se revela: onde será que guardei isso? Já me desfiz? Guardei tão bem que escondi de mim mesma?

          Grande acaso! Uma mão do destino, diria algum sábio de plantão. No momento em que o acaso cuida do destino, tudo se modifica, o olhar viciado é obrigado a seguir em outra direção para encontrar nas pequenas ilhas, os guardados valiosos do tempo.

Se por acaso isso cheira à naftalina, não se engane, apenas atente para as pequenas ilhas, olhe sabendo que vão mudar, afinal, ninguém sobrevive ao cheiro de naftalina, isso não é passado valioso, é passado remoído e não cabe em minhas gavetas.

Nestas, somente a mistura de identidades coloridas e as calcinhas, claro! E se as esqueço é porque de alguma forma não preciso delas (ao menos po algum momento). E isso me basta.



quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

EMPOEME-SE EM POESIA: Poema de Ivone Gomes de Assis

 



EMPOEME-SE EM POESIA/36




Leitura de Marta Cortezão


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


ENVELHECER

 

Ando de mãos dadas com o tempo,

Preenchendo-me de solidão e de memórias.

É que dizem que não posso, que não sou capaz.

Proíbem-me de atravessar a rua sozinho,

Mas se esquecem de que eu,

Segurando em suas mãos,

Lhes ensinei os primeiros passos.

Queria apenas que fizessem como eu fiz,

Nos momentos mais difíceis,

Eu os carregava em meus braços,

Quando choravam, eu os acalentava.

Agora, minhas dificuldades são compartilhadas

Com o vazio do meu quarto,

E meu choro é secado pelo travesseiro.

O tempo diminuiu minha visão,

Ensurdeceu meus ouvidos,

Refreou meus passos,

Mas a minha mente continua a de um menino.

Sou o mesmo menino que sonha,

Que ama,

Que acredita...

Busco a felicidade em todo o meu viver.

De certo modo, estou na vantagem,

Porque aprendi, com o tempo,

A desapegar-me do fútil,

E a valorizar a vida.

Já não me preocupo em agradar a todos.

Já não me preocupo em competir.

Sou exatamente o que sou.

E gosto de quem sou.

Falo baixo e compassado,

Porque a pressa já não faz parte de mim.

Valorizo o abraço,

Valorizo a visita,

Amo a boa prosa,

Amo a gargalhada verdadeira.

Quando começo a repetir minhas histórias,

É porque uma saudade mora ali.

O tempo me ensinou a viver.

Tive a gratidão de poder envelhecer.


*_*    *_*    *_*    *_*




segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

POESIA NA REDE: ÁGUAS DE JANEIRO, POR FLAVIA FERRARI



POESIA NA REDE|03

Á G U A S   D E   J A N E I R O

 

Mês de janeiro, agradecemos as águas que caem e enchem os reservatórios dos quais somos dependentes para que tenhamos água durante o período de seca. Mas quantas tragédias nos deparamos neste período, com índices de chuva altíssimos que parecem que a cada ano batem recorde e nos colocam em conflito com nosso modo de vida e de como a sociedade está estruturada para cuidar (ou não) dos seus. Choramos pelo Capitólio e pelo Sul da Bahia nos perguntando como agir coletivamente para que as tragédias evitáveis não mais ocorram e que o que não se pode prever, possa ser cuidado, reparado.

O fato é que nos sentimos pequenos diante da magnitude e das consequências do que assistimos. 

A rede foi invadia por reflexões, orações, poemas e imagens que mostram como a arte responde à vida. Porque responde sempre de algum modo. Por vezes nos conforta, outras nos desafia ou nos coloca frente a frente com os buracos de nosso tecido social.

Finalizo com o poema de Mayra Luiza Corrêa, Cabo de Guerras:
 
Um puxa de lá,
Outro polui daqui,
Não há força pra soltar
O preço é esmaecido, aflito.
A gota acaba em manancial
A solidão bomba e flui líquida
Não mais maresia,
Só mar se vai
 
Ensacam água!
Plastificam água!
Sujam água!
Choram água!
 
Acordo para ser fluído...
Mas alguns compraram os sonhos
E ainda pagaram com o sangue
Dos outros
 
Haverá dia sem chuva para beber
Podre é quem usa o céu contra nós
Poluído de ouro-barro, rio...
O que corre em nossas veias é oceano

*_*   *_*    *_*   *_*  
 
Mayra escreve poesia desde criança com mãe poeta. Aos 14 anos participou de sua primeira antologia e, desde então, publicou contos, ganhou prêmios por textos teatrais e falou de temas difíceis.
 
 
Referência:
 
Chorando pela natureza: poesia geopolítica ambiental / Jéssica Iancoski (Organizadora); Adriana Teixeira Simoni, Adriano Bensen, Alana Aguida Berti, et al. – Curitiba: Eu-i, 2021.




sábado, 8 de janeiro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA



LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|01


A   C O R   D A   L I N G U A G E M 


Por Carollina Costa


Ora bem aceito, ora estigmatizado e símbolo de luta e empoderamento feminino desde 1912, o batom vermelho nunca passa despercebido onde quer que apareça. Os nuances de um batom vermelho são tão diferentes entre si quanto as mulheres que o usam — incluindo as várias mulheres que existem dentro de cada uma de nós — e em cada cor uma linguagem, uma vontade, uma potência, um significado.

Tal qual variadas forças, expressões e tons, nessa coluna pretendo apresentar a multiplicidade do ser mulher tanto quanto as mulheres que habitam em mim conseguirem alcançar. Para isso farei uso da ferramenta que mais me é cara: a escrita. Apresentarei poemas, resenhas, textos diversos que eu acredite mostrarem, cada um a seu modo, faces e fases presentes no universo feminino interno e externo.

Nessa minha postagem de estreia, compartilho aqui três poemas de minha autoria, dois publicados em duas coletâneas poéticas diferentes e um publicado no meu livro de poemas O Singular do DualSete Véus da Solidão, publicado na coletânea "Mulheres Brilhantes Escrevem Poesia – Uma Homenagem A Hilda Hilst" pela editora Versejar, Tornar-se, publicado na Coletânea Enluaradas I: Se essa Lua Fosse Nossa (Ser MulherArte Selo Editorial, 2021) e Eu ainda lembro da vitrola da minha avó, do meu livro de poemas O Singular do Dual (2018).
 
Para ouvir o podcast, clique AQUI.

Sete Véus da Solidão

Seu prazer não pode valer meu sofrimento
Já passei por muito desalento
De dormir com o corpo quente
E o coração ao vento
Demorei mas entendi
Que da tristeza não faço parte
Da solidão não quero nem metade
E não vou ser
A Sherazade
De nenhum harém

*_*    *_*    *_*    *_*
 
Tornar-se

A gente não é
A gente se torna
Mas a gente também nasce
E renasce
Porque ser mulher
É um eterno parir
De si mesma
 
*_*    *_*    *_*    *_*
 
[Sem título]

Eu ainda lembro da vitrola da minha avó
Ou já era um rádio?
Enquanto eu dançava pelos corredores
Piruetando
E sendo
Criança

 *_*    *_*    *_*    *_*




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