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segunda-feira, 26 de junho de 2023

MEMÓRIAS DO SÃO JOÃO DE OUTRORA, POR MARIA DO CARMO SILVA

 

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VIVÊNCIAS POÉTICAS|03 

MEMÓRIAS DE SÃO JOÃO DE OUTRORA

POR MARIA DO CARMO SILVA

O Nordeste do Brasil é referência na celebração dos festejos juninos. Embora tenha sido trazida pelos portugueses, a tradicional festa de São João é uma das maiores expressões da cultura popular brasileira, sendo comemorada nas comunidades rurais e urbanas com grande intensidade, congregando pessoas de todas as classes sociais. Entretanto, a forma desta celebração tem sofrido significativas mudanças, adaptando-se aos padrões culturais da modernidade.

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As minhas memórias da infância trazem à tona inesquecíveis lembranças de um período do ano marcado por cores, sabores, música, dança e alegria, o tão esperado mês de junho! O frio e a chuva típicos da época, anunciavam os festejos da tradicional e tão aguardada festa de SÃO JOÃO. E quando o mês de junho se aproximava, o povo comentava: “São João tá na porta!” Era grande a expectativa para a festa de São João! E o tão esperado 23 de junho, véspera de São João, finalmente chegava! A fogueira era o grande símbolo deste grande dia, sendo religiosamente armada em frente às casas, tendo ao seu lado um ramo erguido, um galho de árvore, ornamentado com bandeirolas, laranjas e espigas de milho. As ruas e as casas eram enfeitadas com bandeirolas de papel de seda. As meninas usavam vestidos de chita, cabelos penteados com duas tranças com laços de fita e nas maçãs do rosto pontinhos feitos com lápis preto. Os meninos usavam camisa de chita e chapéu de palha. Tudo e todos caracterizados aguardando o entardecer (boca da noite) para acender a fogueira, em suas brasas assar o milho e visitar as casas dos vizinhos onde sempre eram servidas as comidas e bebidas típicas: canjica, amendoim, milho cozido, laranja, licôr, pipoca. Após assistirem a fogueira queimar, era costume as pessoas saírem de casa em casa, visitando vizinhos, parentes e amigos, onde todos comiam, bebiam e arrastavam o pé ao som da sanfona ou da radiola que tocava o animado forró. E neste ritmo, amanheciam o dia! Reza a lenda que nesta noite não se dormia. No dia seguinte, o dia de São João, a comemoração prosseguia: juntava-se o que sobrava da fogueira e nela colocava-se fogo novamente. Ao seu redor, as famílias e vizinhos se reuniam para assar o milho e prosear. Era a festa mais linda do ano! O calor da fogueira aquecia o frio, as chamas da fogueira iluminavam as ruas, as bandeirolas tremulavam atraindo os olhares com suas cores vibrantes, as pessoas partilhavam conversas e repartiam com prazer as comidas e bebidas típicas.

Atualmente, os costumes que davam vida ao tradicional São João foram substituídos pelos hábitos da modernidade, restando apenas lembranças e saudades de uma festa genuinamente popular, comemorada com simplicidade, sem ostentação, onde o que prevalecia era a confraternização e a diversão! Na contemporaneidade, a literatura vem resgatar a vivência destes festejos para que sejam conhecidos pela posteridade.

 

FESTA BOA

 

Maio finalizava,

O povo já anunciava:

São João tá na porta!

Á meia noite do último dia de maio:

Fogos anunciavam o tão aguardado mês festivo.

Dava-se início aos preparativos:

Lenha para a fogueira armar,

Bandeirolas para casas e terreiros enfeitar,

Roupa nova para ir forrozear.

Forró pé de serra, era o estilo musical a predominar!

Tinha arrasta-pé aqui e acolá.

O destino do povão era o Arraiá!

Não faltavam o milho, a canjica, o amendoim e o licôr.

Todos forrozeavam: criança, adulto, vovó e vovô!

O braseiro da fogueira assava o milho a todo vapor.

Êta tempo bom, Sô!

Maria do Carmo Silva

Poeta, professora e escritora.

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Maria do Carmo Silva é professora, poeta e escritora. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências" e "Recomendações Poéticas". Tem participação em diversas Antologias Poéticas. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo. Integrante do Coletivo Mulherio das Letras.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

A PELE DA PITANGA DE JÉSSICA IANCOSKI, POR ROZANA GASTALDI COMINAL


POVO GUERREIRO, SEU CANTO OUVI!

 POR ROZANA GASTALDI COMINAL

Foi a capa de A pele da pitanga que me fisgou! A textura das mãos me fez da lembrar da casca amarronzada da pitangueira, por vezes pode ser acinzentada como a do quintal de casa,  em contraste com as pitangas suculentas, saborosas à mostra sob o fundo verde com o pseudônimo Eugênia Uniflora estampado numa pontas, e, na outra, o poema curto “Uniflora”: é urgente/ sermos menos eu/ e mais eugênias.

Quando comecei a ler o livro, impossível não contextualizá-lo dentro do Acampamento Terra Livre – ATL, em Brasília, no abril indígena. São 18 anos realizando encontros com indígenas de todo o território brasileiro, experiências compartilhadas, manifestações e quebra de tabus que impulsionam candidaturas indígenas. Mulheres indígenas, mulheres biomas, mulheres ancestrais vão aldear a política, assim como alguns poucos indígenas já ocupam cargos políticos de destaque no cenário municipal, estadual e federal. 

A mente é uma via expressa em alta velocidade, por ela percorrem palavras, pensamentos, pisadas, podas, pulsos como se fosse um body jump linguístico. Essa é a reação que vou sentido a virar cada página do livro. E me vejo dentro dele, como se fosse parte do processo, pois eu gostaria de ter escrito A pele da pitanga, de Jéssica Iancoski.  Tanto a temática é relevante e necessária – as questões indígenas – quanto forma e conteúdo nas construções que usa para estruturar seus poemas, metalinguagem que fascina. Também o prefácio-nocaute de  Kaê Guajajara, de imediato,  aponta breves iscas para provar do que estou falando. Estão nos poemas  as questões dos pensamentos tutelares dos povos indígenas, apagamento histórico,  as questões de demarcação de terras e sua incorporação para a agricultura e também ocupação de espaços urbanos pelos indígenas.  Incluindo o papel da arte em tempos  de luta, como vetor de resistência para a cultura e ancestralidade. Como é vista a presença indígena na arte brasileira – imaginário e identidade. 

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No princípio foi o ADVÉRBIO, acessório que pode ser usado ou não. No entanto quando “a palavra é tinta genocida/ e desmancha facilmente o advérbio/ pororocas levantando sangue de verbo/ jorrando brasis sem modo/ com intensidade, lugar e tempo/ e demasiada negação desmatada/Macunaíma desvairada” (p.11), o ornamento fica impregnado no verso, não há como tirar a palavra “avermelhada/ talvez carnívora e pouco reflorestada” diante do curral desgarrado do desgoverno: “ao pé de mesas de paubrasília”. Torna-se parte integração da oração.

Em MÃE GENTIL “a palavra que ecoa/ e lavra a palavra/ sem decência/ da violência nacional// descendentes/ do/ estrupo — raiz da/ democracia racial (p.25). Questiona em A PÁ E A LAVRA: “e a palavra o que é?// :a abalança da justiça/ sempre pesa em vintém// sopé do monte pascal/ maré trouxe cabral/ pontapé da imposta fé/ legado do capital-café” (p. 96). BANCADA BOI BALA BÍBLIA vigora em pleno século 21: “bancada ruralista/ evangélica armamentista// num só bloco//. bando ameaça/ minorias do brasil// (p.43).

Dos poemas visuais, o primeiro  o encantamento se eleva pela variedade de árvores diversas em NOTA, mas  sabendo o resultado quando da floresta derrubada, porque  valem mais: cifrão solo lenha tora// grão/ gado papel e nota (p.52). Denúncias que não passam imunes pelo registro da foto de madeiras cortadas: DESMATAMENTO ILEGAL (p.38-39) e pelo grafite que contesta: MORTE AO AGRO na parede  com desenho de dedo “fuck you” (p. 50-51. Vale acrescentar na batalha deste conjunto o AGRO É POP que contém forte apelo contra  a indústria do agronegócio, até simula uma imagem do patrão matador com arma não ao som de pop, pop, pop. São as “cenas de apologias feudais/ herança  colonial/ dos sacanas  (p.53). O segundo momento  de mira certeira é com ARCO E FLECHA. Embora agora o alvo seja a selva de pedra, pois mora na favela, indígena é a aldeia/ na veia/, continua guerreiro de sua etnia (p.89).

Outras construções envolvem mobilidade, se assemelham à prática do parkour, a desbravar percursos, fazer saltos pelas etnias em versos. IBIAPINA  é combinação de yby: terra + apin: rapado, pelado, que significa terra pelada em tupi. Antiga terra da nação tabajara no CE. Ali há mais que palmeira: “macaba/ emburi/nidaiá” e  sabiá: “guirá/jacu macuco/maritaca/tangará”  (p.16), referência explícita à “Canção do Exílio” de Goncalves Dias, escritor do Romantismo brasileiro. Na fase nacionalista de GD, fauna e flora brasileiras são exaltadas, o jovem se encontra em exílio voluntário estudando em Coimbra. Os AUTÓCTONES estão aí: “o brasil não é o rio/ de janeiro a dezembro/ já dizima os nativos/ Kara’ivwa Oka/ cari.oca/ casa de branco” (p.17).

MAMA NA TETA DA MATA é daqueles trava-línguas imperdíveis: quem “desmata/mata não só a mata// matam a mata/ matam à bala//a boca branca bebe e/ mama na teta da mata// mata  e mama// mamam e mata/ é mamata”. Já conhecem esse refrão, não é? (p.40). Com a força da palavra falada, portanto, é batalha de slam com ritmo, entoação, modulação da voz, uma verdadeira performance com a voz, o canto, a música, o máximo da interação com linguagens múltiplas para a diversidade. Destaca as 12 principais línguas nacionais que ficaram neutralizadas pelA LÍNGUA BRASILEIRA, assim a  “política pombalina permitiu/ maior domínio sobre brasileiros// (p.57). Realmente resistência e controle ultrapassando os obstáculos.

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Resistência  como verdadeira aula de AULA DE HISTÓRIA com a voz  daqueles que sobraram para contar como  foi a invasão durante o período colonial, pois muitas tribos foram para sempre dizimadas. Ao longo dos séculos “a perda dos valores e das identidades” nos aniquilam (p.56). Não há como ficar indiferente diante  disso, manifestação em qualquer linguagem como prova da lição aprendida é o mínimo que nos resta como leitores ávidos dessa jovem escritora.

Dá para ver o quanto a intertextualidade é um dos exercícios mais criativos para a composição poética. Ao trazer a referência do ponto inicial, há que se dar conta de uma análise vasta de várias transições e surgem tantas analogias! No Romantismo brasileiro, na fase indianista idealizada, temos de um lado José de Alencar que eternizou IRACEMA como a virgem dos lábios de mel, consagrada a Tupã. A índia, filha do pajé Araquém da nação Tabajara, foi  transformada  no anagrama mais poderoso: AMÉRICA, atualmente sua extensão se agiganta. Em NINGUÉM É IRACEMA,  a imagem da indígena romantizada cai por terra: “ ninguém é Iracema/ passiva, submissa/ erotizada// a visão colonialista/ atrasa a autonomia// identidade não é acessório// (p.55). Mulheres indígenas têm suas vivências, constroem narrativas, têm necessidade de criar.

Das escritoras indígenas sobressai Eliane Potiguara com seu livro Metade cara, metade máscara, porque ela valoriza a comunidade indígena a partir de “projeto consciente de vida pessoal e também coletivo de manter vivas as tradições ancestrais, a cosmologia e a herança espiritual, aliadas ao engajamento político,  afirma Dorrico (2018). Bate no peito um senso de justiça ao ver o protagonismo de Eliane Potiguara, valorizando a representação da mulher indígena que aceita beleza e força no corpo feminino. Em seu poema BRASIL, o eterno questionamento: “Que faço com minha cara de índia?// Não sou violência/ ou estupro// Eu sou história/ Eu sou cunhã/ Barriga brasileira/ Ventre sagrado/ Povo brasileiro.// Ventre que gerou/ O povo brasileiro/ Hoje está só.../ A barriga da mãe fecunda/ e os cânticos que outrora cantavam/ Hoje são gritos de guerra/ Contra o massacre imundo”. Brota no peito um amor assim desmedido para as futuras gerações do Brasil. Aprendizado constante com a ancestralidade que envolve sentimento, memória, história, respeito pela diversidade cultural.

De outro lado, ressalto o quanto Gonçalves Dias foi primoroso na construção de “I-Juca Pirama” (que em tupi significa “o que há de ser morto”), poema longo que narra a história de um guerreiro tupi que conduz o pai cego pela floresta. Quando este lhe pede comida e bebida, o filho, à procura de alimentos, cai prisioneiro dos timbiras. Os guerreiros timbiras, num ritual antropofágico, devoravam os inimigos, desde que ele não manifestasse covardia. Dramática saga vivida pelo último descendente da tribo Tupi, no momento de sua morte:“Sou bravo, sou forte,/ Sou filho do Norte;/ Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. Embora não fosse porta-voz da cultura indígena, GD deixou vasta contribuição, dedicou ao estudo da etnografia e da linguística, além de passar um tempo na Amazônia, período em que fundamentou as obras Brasil e Oceania (1852) e Dicionário da língua tupi (1858). Especula-se que tinha origens indígenas, pois que era filho bastardo. Povo guerreiro da tribo Tupi, seu canto ouvi! ecoa até hoje em mim, em seus descendentes, e, irmanados, com eles, queremos outros 500 para contar outra versão da história. Apesar dos pesares, ainda resistem e querem existir como parte integrante do Brasil. Prevalece, portanto, o canto da vida!

Canto esse que parece se esvair quando se contrapõe aos INDÍGENAS URBANOS, que “ buscando/ raízes longe da natureza/   procurando sobreviver// pesa o pescoço// sobre o cálcio dos ossos/petrificados// municípios e edifícios/inteiros levantados/ sobre tanto tanto tanto/sangue derramado// (p.76). A ilustração que antecipa o poema exibe a novas moradias amontoadas. com “a liberdade perdida de nadar em águas cristalinas”, agora resta  vencer a força que horizonta ( p.74-75). Outro alerta nas placas de cimento de possíveis favelas: É INDÍGENA PORRA! Deslocados, os indígenas estão em todas as partes (p.80-81), prestem atenção! TUDO AQUI É TERRA INDÍGENA na parede lascada com placa branca de ALUGA-SE AMÉRICA LATINA, total descaso da “:pindé/rica”, é pilhéria, pois, antes, Pindorama soava grandiosa (p. 30-32).

Esse tipo de apagamento histórico é acentuado pela melopeia  apresentada em  O ÍNDIO DO GRINGO: “é um restingo, um restingo// um lingo-lingo, um lingo-lingo//  um pingo, um pingo/,  como se fosse “um xingo, um xingo” a um ameríndio, um ameríndio”, o que reforça a visão estereotipada que se tem do indígena em todo o continente americano por “um Ilídio, um Ilídio”,  (p. 79). Enquanto isso, em terra sem lei, corre solto o  eco  na “ terra de rei”: “ei ei ei ei ei” que se estende em  GAVETAS DE MADEIRA DE LEI: “ei ei ei ei”,  “florestas são engavetadas/pessoas são engavetadas// Ipê Tatajuba/ Cumaru Teca Jacarandá Cedro Jatobá//  com a gana de quem? “ei ralé / fazendo uma/ grana branca// (p.94).  Percebe-se, ainda, o quanto  aliterações permitem que o jogo de palavras para desqualificar o colonizador. Afinal, os  homens de bem, políticos na bancada para maracutaias, fazem “estropício estropiado” (p.11), “são bando de criminosos/ conservadores/ covardes”, aqueles da BANCADA BOI BALA BÍBLIA (p.43). Eis a “caucásia clara cândida” jogada na cara do povo servil (p.95).

Poderia ser incoerência o uso da palavra índio em sua raiz, qual delas? a tupi? a guarani? Com essas povoações mais pacíficas José de Anchieta fez a catequização e a sistematização do nheengatu, língua geral amazônica em tupi moderno. Dos séculos 16 ao 19, foi a língua mais usada no Brasil tanto pelos indígenas quanto pelos portugueses, afinal era o idioma corrente, a língua boa. Até o século 19 a língua nheengatu foi falada  no litoral do Brasil, ainda hoje é falada nas tribos da Amazônia. Isso indica o quanto a língua é viva, dinâmica. Percebo que há  sarcasmo expresso em RADICAL quando Jéssica Iancoski usa: “:tudo é índio- “// ídios- não há”// indioleto indioma// indílios/indiovidual/ indiolatria indiotipo// e na corruptela NE’ENG: “é tudo é do índio”//“-ídio -ídio -ídio”/ é idiotice. Um contra-ataque ao nhenhenhém  verborrágico dos idiotas, ao comportamento idiossincrático de quem cria estereótipos de grupos sociais (p.28-29).

Por fim, LÁPIDE é o êxtase para mim: “pedra/poema/lápide” (p.68). Epitáfio sem memórias, quem quer isso?  Todos desejamos a HERANÇA mesmo que “errança” “de legados/ levantados”  “pela/ língua/ calada// ou afiada (p.97). Tanto que já fiz a minha singela pedra tumular, logo posso morrer em paz. O poema de minha autoria “Memórias ancestrais”  que integra a coletânea I Tomo das Bruxas – do Ventre à Vida,  nasceu após a leitura do livro de JI. Quando algo mexe muito comigo, naturalmente, me expresso na linguagem poética. Isso foi no primeiro semestre de 2022, tempo em também concluí a resenha. Imagine depois como me senti ao ver  A pele da pitanga entre os 10 finalistas do prêmio Jabuti  na categoria Poesia?

Tenho cá para mim que A pele da pitanga será um daqueles tratados de vanguarda, bem pertinente  tal qual a proposta de Jéssica Iancoski em “100 anos depois: O que é a poesia?” que lança aos autores contemporâneos  temas com viés provocativos em  relação à Semana de Arte Moderna de 1922. Com base sólida em ascensão: podcast, revista e editora Toma Aí Um Poema avança sob a regência de Jessica Iancoski que tem esse caráter em sua produção poética assim como a diversidade e a experimentação estão em seu dna. O público, às vezes, aceita mais rápido as mudanças em estilos literários do que a própria crítica que ainda se apega aos parâmetros de preciosismos da linguagem. Claro que metáforas, comparações, metonímias, ironias, paralelismos são sempre bem-vindos, assim como rimas ricas, raras. Rimas pobres são clichês necessários atualmente, refletem o empobrecimento da linguagem não da autora, é óbvio, mas em relação a  tudo que está sendo apregoado como modelo de educação pelo desgoverno, um desfavor  ao ensino público de qualidade e à valorização do professor enquanto pessoa e profi$$ional bem remunerado. Sonho nosso sei bem disso. Entretanto é nisso que acredito: no ciclo da terra com seres humanos que cuidam da natureza porque, antes, cuidam, daqueles que dedicam a plantar, colher e ser: MILHO NA TERRA CRESCE CRESCE: “cereal, ceres/ seres/ vida” da mesma forma que pitanga: “o fruto nutre/ quando pinga e/ a vida sangra/ o grito vermelho/ y’piranga”. Demarcação já das terras não das lápides! Esse é o novo brado retumbante às margens de qualquer rio com água potável, em abundância, que, livremente, escorre pela nossa pele, nossa terra. 

Para a próxima edição, ficam algumas sugestões:

1.  Um descuido, talvez, na página 18 pelo elo de ligação pode dar a impressão de que falta revisão ao poemas. Parece que foi intencional por parte de Jéssica Iancoski, para  sentir juntos aos leitores e aos críticos a reação deles. Como se os erros e a desatenção fosse para com nossa atitude em se tratando das questões cruciais  da população indígena brasileira, principalmente. Legado histórico negado aos povos primitivos desta terra que em tudo se plantando dá.  Tudo é muito novo quando se trata de apropriação com respeito pelo outro, por isso rever conceitos e adequações gramaticais podem nos dar outra perspectiva e ampliar nossa escrita. 

2. Na pontuação, tiraria mais vírgulas, visual mais limpo, espaço entre as palavras são suficientes para indicar que é outra palavra, como se estivessem aprendendo um nova língua. Outros sinais gráficos incomodam? A mim não, é brincar, é desenhar, às vezes causa impacto, às vezes não. Nem tudo vai funcionar 100%, então melhor não arriscar? Arrisque e aguente o tranco!

3. O poema MODA EM P&B poderia ser dividido em 2 partes: “o pulmão brasileiro do mundo/ está sendo comprometido/ tal qual vírus maligno (...)// todos os pareceres padecem/ enquanto a flâmula/ arvorada no mastro principal/ se empalidece em cada alvorada// - parte que retrata o desmatamento em exponencial. Já a última estrofe da página 92 viria para o início da página 93 com o mesmo formato, fazendo par com a estrofe final, sendo  flâmulas desbotadas. Ou  deixar para quem ler inventar outras possiblidades.

4. Após meus apontamentos, para me certificar de que estava caminhando num exercício para reantropofagizar, ver de novo o que não foi visto, fui ler o livro Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção, organizado por Julie Dorrico e outros, disponível em https://www.editorafi.org/438indigena. Satisfação garantida comigo mesma e com a leitura proporcionada pelos poemas de Jéssica Iancoski. Porque a luta é diária, não há trégua enquanto houver genocídio, garimpo ilegal e desmatamento de florestas em terras dos povos originários. Nesse caso, literatura é denúncia, é ato político de intervenção, visto que a poesia traz técnica e experiência estética, experimentar-se para registrar seu lugar no mundo.

Rozana Gastaldi Cominal

Poeta e professora

Hortolândia-SP

junho de 2022

Bibliografia

DORRICO, Julie. et al (Org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. Disponível em: https://www.editorafi.org/438indigena. Acesso em: 19 junho 2022.

GONÇALVES, Dias. I Juca Pirama. Disponível em

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/jucapirama.pdf. Acesso em 19 junho 2022.

IANCOSKI, Jéssica. A pele da pitanga. Toma Aí um Poema, 2021. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1Fz7yl_c28jVq7Hi-DWSKoXEWRMMGPPtJ/view

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro, 3ª ed. Grumin, 2018.

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Rozana Gastaldi Cominal, de Hortolândia/SP. Poeta e professora. Formada em Letras, faz revisão de textos. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz com a poesia na ordem do dia. Publicação de poemas em redes sociais, revistas literárias digitais, e-books e livros impressos. Livro solo Mulheres que voam (2022, Editora Scenarium).


domingo, 21 de maio de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A MAIOR AVENTURA TERRESTRE - Por Rita Alencar Clark


LIÇÕES DE SILÊNCIO
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A MAIOR AVENTURA TERRESTRE 

A primeira vez que fui mãe, um misto de alegria suprema, medo, insegurança e pânico tomou conta de mim. Apesar da incontrolável vontade de ter um filho, por duas vezes, esse sonho escapou-me às mãos…mas na terceira vez, eu me agarrei a esse sonho como quem agarra o invisível fio de prata que nos liga à própria vida. Não soltei. Aconteceu de ser envolvida por magia e beleza, meu corpo se abriu e germinou, a alquimia materna refez minhas células e a primeira filha nasceu! Victoria, um ser diminuto de olhos intensos num rosto de anjo…tive medo! Depressão pós-parto. As rezadeiras foram chamadas… "como posso ter medo de um sonho tão sonhado?!" O leite empedrou, o desespero bateu, nem rezas, nem médicos, nem emplastos reduziam a dor. Uma noite nos enfrentamos, o peito lanhado, rachado, sendo sugado com a força da fome e do amor. Lágrimas minhas se misturavam à láctea seiva vital, lágrimas de ambas se misturaram ao som do lamento murmurado, disfarçado de canção. Assim nos encontramos, minha filha, assim nos misturamos, para sempre. 

Da segunda vez que fui mãe, já quase entrando nos quarenta, já nem sonhava tanto, porém o desejo se mantinha latente, veio Miguel, meu príncipe celeste, descido do Éden pra me encontrar nesse mundo confuso. Dessa vez já não tinha tanto medo… não, minto, tinha sim, mas com experiência. A mágica se fez novamente, e inflei como um balão colorido e feliz, era festa na minha alma. Ele chegou, tão bonito, tão plácido...como minha mãe bem definiu: "olha filha, ele é todo afiladinho"…traços finos, braços, pernas compridas e fome de um pequeno leão. Não lhe faltou alimento, meu leite jorrava como cachoeiras amazônicas! Um dia, após extremo cansaço, dormi enquanto o amamentava, acordei com a chegada da babá em pânico: "Meu Deus, o pobrezinho está empanzinado!" Tratando, então, de fazer movimentos pélvicos e pequenas pedaladas com as perninhas…eu em estado de exaustão plena, só atendia a comandos: água morna, toalhas, compressas…só sonhava com uma noite inteira de sono. Mas foi lindo! Vê-lo dormindo em paz, satisfeito e limpinho era tudo o que uma mãe como eu desejava pra ser feliz! 

At last but not least…a terceira vez, quarentona inaugurante, veio Duda, a flor de setembro, sacudindo todas as certezas, raiando como um sol na minha vida. O médico, que operou minha coluna (L5 e L6) dois meses antes de engravidar, deu-me um sermão de irresponsabilidade, uma vez que rompi com o trato feito de não engravidar, pelo menos, nos próximos 12 meses. Ouvi, calada e resignada, o veredito, só vai poder engordar nove quilos! Vai fazer exercícios todos os dias, inclusive aos domingos, hidroginástica, não pode pegar peso, nem movimentos bruscos. Miguel queria colo, chorávamos os dois pela impossibilidade. Afinal, ele ainda tinha 1 ano quando fiquei grávida da Maria Eduarda…"mamã tila esse boão de você!" O "boão" era a minha barriga. Ele queria colo. Fomos em frente! Aos cinco meses consegui engordar apenas 2 quilos e meio. Cheguei ao final cravando os nove. Resultado, Duda nasceu com uma fome de loba, coitadinha! Eu, já na prorrogação do tempo regulamentar, estafada e desnutrida, pra não sobrecarregar a coluna, cumpri o prometido. 

Na primeira semana, o leite não dava conta da fome da minha filha…eu me senti incompetente, ansiosa, preocupada e não dormia. Veio a salvação, o pediatra receitou o complemento, Nan, bendito seja! Pude dormir 12 horas seguidas, finalmente. Tudo isso passou tão rápido, foi tudo tão intenso e breve, que hoje, prestes a completar 60 voltas ao redor do Sol, com todos seguindo suas vidas e saudáveis, penso que faria tudo exatamente igual novamente, assim, bem clichê! Então, que fique registrado: Maternidade é a minha maior e mais bela aventura terrestre.
Está feito!

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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista,
cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

sexta-feira, 19 de maio de 2023

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM ANA ELISA RIBEIRO, POR GABRIELA LAGES VELOSO

    


UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |06

ENTREVISTA COM ANA ELISA RIBEIRO

Por Gabriela Lages Veloso

Conforme a ativista Malala Yousafzai, "quando o mundo todo está silencioso, até uma voz se torna poderosa”. Diante disso, a literatura é uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber Ana Elisa Ribeiro, uma importante escritora para a literatura brasileira atual, ganhadora do Prêmio Jabuti (2022).

ENTREVISTA COM ANA ELISA RIBEIRO:

Arquivo pessoal da autora

Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. É bacharel e licenciada em Letras pela UFMG, com mestrado e doutorado em Estudos Linguísticos. É professora titular do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, o CEFET-MG, onde atua na formação no nível médio, em Letras e nos estudos de Edição há vários anos. É autora de livros de poesia, conto, crônica, infantis, juvenis e técnicos. Em 2022, celebrou os 25 anos de suas publicações em livros. Começou em 1997 com a coletânea de poemas Poesinha, publicada em uma coleção, isto é, os coletivos editores e publicadores sempre fizeram parte de sua vida. Em seguida, publicou Perversa, em 2002, pela editora Ciência do Acidente, uma das primeiras “independentes” brasileiras, em São Paulo. Daí em diante não parou mais. Foram nove livros de poesia, três de crônicas, um de contos breves, três infantis e três juvenis. Em alguns casos, as obras foram premiadas, como o poemário Álbum, de 2018, pela editora mineira Relicário, que antes obteve o prêmio nacional Manaus; o Dicionário de Imprecisões, de 2019, pela Impressões de Minas, finalista do Prêmio Jabuti em 2020. O infantil Pulga atrás da orelha foi duas vezes distribuído pelo Clube Leiturinha, além de estar em kits de prefeituras e no PNLD. Seu juvenil Romieta e Julieu (RHJ, 2021) ganhou o Prêmio Jabuti de 2022. A autora tem textos publicados em outras línguas, em revistas e coletâneas internacionais, impressas e eletrônicas. As publicações mais recentes são séries de poemas nas revistas Toró e Desvario. A produção infantojuvenil de Ana Elisa Ribeiro segue no PNLD e é reconhecida pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Enquanto isso, ela também é editora, dirigindo coleções de poesia e prosa. Na editora paulistana Peirópolis, por exemplo, ela ajuda a pôr de pé a Biblioteca Madrinha Lua, só com mulheres brasileiras contemporâneas. No selo Autêntica Contemporânea, ajuda a compor um catálogo de romances nacionais e traduzidos, de autoras e autores de várias partes do mundo. Seu título mais recente é o poemário Menos ainda, pela Impressões de Minas, lançado no final de 2022. Em 2023, sairão alguns livros para públicos diversos. Ana Elisa coordena, com duas colegas, o grupo de estudos Mulheres na Edição e é membro do GT A Mulher na Literatura, da ANPOLL. 

Como você começou a escrever?

Comecei nas últimas folhas dos cadernos da escola. É nelas que me lembro de ensaiar uns poemas, umas rimas ruins, escrever recados para jamais serem lidos, desabafar, imitar autores admirados, copiar trechos de textos que eu admirava, escrever pequenas narrativas, depois arrancar, rasgar, jogar fora. Sentir uma vergonha, mas também um impulso de escrever mais. Não mostrava a ninguém, mas pode ser que, acidentalmente, na virada do ano letivo, alguém tenha lido alguma coisa desses cadernos velhos. Depois passei a escrever em folhas soltas, numa máquina de datilografar que peguei emprestada do meu pai. Aí já era uma vontade de ver os textos impressos, mudou a chave. Escrever passou a ter um vetor: publicar. Da máquina dele passei a outra, e dela ao computador. Acho que também usei agendas para escrever, como se fossem diários, ou quase.

Em 2022, você celebrou os seus 25 anos de publicações em livros. Qual é o significado desse marco para sua carreira literária?

Até hoje tenho dúvidas se tenho uma carreira. É que a autoexigência faz aparecerem umas frustrações, os tamanhos das coisas ainda são frouxos dentro dos moldes dos planos e dos sonhos. Mas às vezes eu caio em mim e acho que, sim, é uma carreira, inclusive persistente. São 25 anos. O problema é confrontar o que a gente quer e o que realmente acontece. Quando me dei conta dos 25 anos de publicações em livros (1997-2022), achei que devia dizer algo, fazer um livro, pensar nisso. É bom, mas também é para se refletir. Perguntas duras como: o que eu fiz da minha vida até aqui? Insisto muito, me defronto com muitas coisas incontroláveis e incontornáveis. Não tem a ver com esforço, tempo de estrada, quantidade de livros, nada. Isso era ilusão de 25 anos atrás. E muito do que nunca aconteceu não é atestado de incompetência. Tem relação com outras tantas coisas que independem da minha escrita. Talvez dependam mais das relações sociais que não tenho, da marcação geográfica de tudo, da má distribuição de recursos e valores etc. O que celebrei foi a existência dos meus livros e a minha coragem ainda vigorosa. O livro que lancei por isso, o Menos ainda, é a celebração de uma carreira literária oclusa, mas com uma ironia elegante. 

Por que você escreve?

Porque eu gosto. Acho gostoso e me dá certa sensação de alívio.

Quais escritoras(es) te inspiram?

Já mencionei escritores que fizeram parte da minha formação e volto a falar neles, porque foi isso que aconteceu mesmo: Paulo Leminski, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa. Lamento que sejam só homens, até aí, mas só fui tomar consciência disso recentemente, quando a discussão sobre o ler mulheres gritou mais alto. Não sei quem me influencia hoje. Leio muita coisa, mas me sinto mais refratária na hora de escrever. De certo modo, levei anos, mas encontrei minha voz literária. Não sei mais com que ela se parece. Ou se é preciso se parecer com algo. Minha prosa é que vem sendo mais testada, nos últimos anos. Quando leio algo bom, ou melhor, algo que me agrada, sei dizer que aquilo é algo que me impressiona, me agrada, me admira, mas não chego a pensar que seja uma influência. Hoje, na poesia, por exemplo, me revolvo de delícia quando leio a portuguesa Adília Lopes. E queria que ela me jogasse umas luzes.

Conte-nos sobre o seu livro Álbum (2018), que obteve o prêmio nacional Manaus. Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda? Onde podemos adquiri-lo? 

O Álbum nasceu de uma ideia mais projetada. Os livros de poemas anteriores eram coletâneas de textos escritos meio aleatoriamente. O Álbum nasceu da ideia fechada de responder ao álbum de fotografias que minha mãe faz para cada um dos quatro filhos. Então escrevi os poemas com um norte nítido. Nesse sentido, é meu primeiro livro-projeto, tinha uma espécie de planta baixa. De certo modo, isso dá uma coerência ao conjunto e os júris gostam. Não sou só eu que já notei esse aspecto. No Álbum as fotografias de família são o eixo. O resto vem a reboque: memória, afeto, ancestrais, morte, aborto, gravidez, amor, desamor. O livro está ativo no catálogo da excelente Relicário Edições, fácil pela web e também em algumas livrarias. 

Comente sobre Dicionário de Imprecisões (2019), que foi finalista do Prêmio Jabuti (2020). Explique o título e suas implicações no sentido/proposta da obra, e onde podemos adquiri-la. 

O Dicionário também tem essa característica do projeto. Meu filho me disse uma frase e eu tive o clique de pensar em um dicionário que imprecisasse as palavras. Um dicionário poético, sem compromisso com a verdade, declaradamente (porque nenhum tem mesmo). Não sou a primeira a ter essa ideia, mas num livro inteiro isso parece ter agradado a algumas pessoas. Em 2020, o júri de poesia do Jabuti indicou o livro entre os finalistas. Foi uma alegria compartilhada com a editora Impressões de Minas, com a qual tenho feito meus trabalhos poéticos mais recentes. Também é um livro ativo no catálogo da editora, pela web e em algumas livrarias.

E quanto ao seu livro Romieta e Julieu (2021), que ganhou o Prêmio Jabuti (2022)? Qual é o mote desse livro? Onde podemos adquiri-lo? 

Engraçado que os livros juvenis geralmente são textos que pensei por muito tempo e demorei a executar. Eles vêm num ambiente de diversão. Rio enquanto escrevo. Geralmente são jatos, porque estavam sendo gestados há tempos. A editora é que me dá um empurrão: você tem algo aí na manga? E eu sempre tenho. O mote é a história clássica e muito popular de Romeu e Julieta, só que atravessada pelas tecnologias de hoje. O Jabuti em 2022 foi também uma alegria que compartilhei com a RHJ, que me edita há mais de uma década e sempre aposta nas minhas aventuras. Gosto muito do jeito como as coisas saem lá. O livro está ativo no site da editora, na web e em algumas livrarias também. Depois do prêmio, mais lugares se interessaram em ter a obra. E vem mais por aí.

Fale sobre as suas participações em concursos e prêmios literários, como, por exemplo, o Prêmio Jabuti (2022). 

Não fui uma pessoa que entrou em muitos prêmios. Às vezes é trabalhoso e frustrante. Mas de vez em quando me animei e fui. No caso do Manaus, é um prêmio para inéditos, isto é, você precisa guardar absoluto segredo. É como outras premiações: Sesc, Paraná, Cepe etc. Já o Jabuti é um prêmio para obras publicadas. As editoras é que inscrevem os livros, ou você, se for autopublicado ou independente. É o caso também do Oceanos e de outros. Como jurada, estive em alguns prêmios, em prefeituras, no estado de Minas Gerais, no Sesc e mesmo no conselho do Jabuti, em ano anterior. É bom saber como isso funciona por dentro e ampliar a confiança na seriedade das coisas. 

Mais do que escrever, é necessário fazer ecoar nossas vozes. Qual é a importância do ato de publicar, para você? 

Publicar foi secundário na minha vida, mas já na adolescência eu comecei a pensar em pôr meus textos para circular. Nosso ambiente comunicacional e tecnológico era completamente outro. Até que fiz muito, num mundo analógico em que as pessoas pareciam muito mais distantes. Para se publicar é imprescindível conhecer gente. A Internet tornou todo mundo mais próximo, mas também criou um ambiente de burburinho muito maior. É mais difícil hoje, nesse sentido. Publicar é importante para que eu torne minha escrita algo profissional, intencionado. Não escrevo mais apenas para desabafar, como fazia na adolescência. Escrevo porque entendo que essa atividade seja parte da minha vida profissional. Tenho mais clareza de que quero ser lida e de que mereço alguns retornos pelos livros que conseguem circular. 

Como convidada da nossa coluna Uma cartografia da escrita de mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?

Há muitas escritoras da minha geração que começaram a escrever agora. Há escritoras de gerações anteriores que estão na luta há muito mais tempo; há pessoas nesse esforço, como eu e algumas pessoas da minha faixa etária. Há jovens e recentes escritoras que atuam no mesmo espaço simbólico. É difícil dizer sobre gerações no sentido etário. As escritoras que estão no mundo comigo, tenham a idade que for, sentem coisas parecidas com o que eu sinto. Elas têm dúvidas, desejos, pretensões, ambições, frustrações etc. Hoje o mar está para sereias. Muitas mulheres escrevendo e publicando. Mais: tornando-se mais visíveis na paisagem literária. O que penso que pode ser interessante é evitar o deslumbramento, o alumbramento, até se esquecendo das colegas; para equilibrar isso, muitas são bastante conscientes do significado dessa tomada de posse do espaço – discursivo, mas também físico nas vitrines. Não sei bem o que dizer às minhas colegas. Elas raramente me perguntam algo, então só observo mesmo. O que eu penso é que precisamos arranjar um jeito nosso de fazer bem as coisas. 


Contatos da escritora:

Instagram: @anadigital

E-mail: anadigital@gmail.com

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Gabriela Lages Veloso é escritora, poeta, crítica literária, e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atualmente, é colunista do Feminário Conexões. Além disso, colabora com coletâneas e revistas, no Brasil e no exterior. Em 2023, organizou a Antologia Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, juntamente com a Editora Brecci Books.

sexta-feira, 31 de março de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: HÁ TANTO O QUE SE FALAR

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LIÇÕES DE SILÊNCIO|07

POR RITA ALENCAR CLARK

HÁ TANTO O QUE SE FALAR 

Ontem, não posso dizer que fui surpreendida, ao abrir as redes sociais a primeira notícia que vi foi  da moça no transporte público, indignada, com o celular do abusador na mão, gritando e denunciando o criminoso ao seu lado, o qual se mantinha impassível, como se não fosse com ele, assim como os outros homens, todos testemunhas oculares do (hoje) crime de Importunação Sexual, previsto pelo Código Penal Brasileiro e reforçado pela Lei No. 13.718/2018, com pena de um a cinco anos de prisão.


Revoltou-me, mais ainda, o fato de nenhum, NENHUM homem que estava no mesmo veículo, mesmo com provas explícitas, não se indignarem, não se manifestarem, pareciam estátuas de sal, impassíveis diante da “normalidade” do caso, afinal, isso é corriqueiro, diário, faz parte da cena urbana, do caos da vida cotidiana… pra eles né?! só pode!


Tanto tempo caladas, assustadas, acuadas, passando todos os constrangimentos e importunações, parece que nos acostumamos a “costurar” a boca, engolir o choro e a raiva, seguir em frente. Minha mãe , de certo, passou por isso ou coisa pior, nossas tias, primas, amigas, conhecidas, vizinhas…mas todas caladas. Tem um momento que calar não faz mais sentido, a mudez corrobora com  futuras agressões, nossas filhas, netas não merecem receber de nós o legado da covardia, que espécie de mulheres somos que “passa pano” para abusador, confortável em sua condição de macho predador?! Não me calo. Chega. Estou farta. Tenho medo? Diariamente. Minhas filhas estão no mundo, vivendo suas vidas com dignidade, alvos, portanto, de todo tipo de importunação. Rezo, fervorosamente, rezo para que passem ao largo desses traumas.

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Uma vez, nunca pude esquecer, quando criança, devia ter por volta de 8/9 anos estava com minha mãe numa daquelas lojas de material escolar, no Rio de Janeiro, as aulas estavam quase começando e pais e  mães se amontoavam  para comprar os itens da lista em promoções. Lembro bem, centro da cidade, Casa Mattos, quase 6 horas da tarde, um empurra-empurra, gritaria, criança chorando, o caos total. Imprensada entre minha mãe e uma senhora, eu estava imóvel. Senti uma espécie de “lambida” no meu braço, mas como disse , não podia me mexer. Num esforço, puxei o braço com força, dei um grito, mas não fui ouvida, todos gritavam. Olhei para trás e vi o homem fechando o zíper apressado, empurrando as senhoras. Apertei a mão de minha mãe o máximo que pude e fiquei em estado de choque olhando aquele líquido viscoso escorrer pelo meu braço inocente de criança, sem ao menos saber o que era. Não pude falar, não pude gritar, senti uma estranha vergonha, puxei a mão de minha mãe mais uma vez e tive engulhos. Ela me levou para fora da loja e botei para fora, ali mesmo, junto com o vômito, o nojo, a angústia, a revolta e a desproteção do mundo. Tudo que queria era chegar em casa e tomar um banho, que lavasse tudo, meu corpo, minha alma, minha memória.


Quando vi a reportagem da moça no ônibus, esse mesmo engulho voltou ao meu estômago, só que dessa vez não calarei, minha mãe, guerreira que foi, a poupei de saber desse evento, mas minhas filhas não, pois esse jogo de caça e caçador não prescreveu ainda. Elas precisam estar atentas, prevenidas, fortes e prontas para lidar com os abusos até que o mundo mude. Até lá, restam-me as palavras.


Fiz este poema alguns dias atrás, não o publiquei ainda, talvez esperasse pela ocasião, talvez esperasse pelo mote. Ele veio: pela moça corajosa do ônibus, pela criança violada que fui, pelas mães acuadas, impotentes.



HÁ TANTO O QUE SE FALAR


Há tanto o que se falar de sombras

Há tanto o que dizer e nos calam

Nossos corpos, um dia de menina,  

Tanto sangraram, vazaram, reclusos nos

Pântanos da alma, feridas tantas de tempos

Passados, somam distâncias no peito oco

Entre o que somos hoje e um dia fomos.


Carregam nas mãos, sujas, inocência

E medo, alisando em mácula nódoa

A pura hipocrisia, roçam, importunam,

Desdenham e ferem. Viris. Impunes.

Flanam em festas, em bares, em becos

Buscam prazer em líquidas doses

Para amaciar, das moças, as resistências.


Um cheiro de nojo que sobe e engulha 

Rasga a carne, que nos habita e veste,

Subindo a saia sem consentimento ou pudor.

Sempre assim, por baixo dos panos, estamos sós.

Olhos que fingem não ver o que está exposto

Para depois, quando tudo se consumar, negar.

Não, não foi a saia, não foi o corpo, foi a violência!


Milênios de violação, abusos e sequestros

Transformam meninas em mulheres amputadas

Sobreviventes de um destino não traçado, cruel.

Aprisionadas por dentro, temendo expor a fêmea

Sedenta, que sempre foi, temendo seu próprio corpo

E desejo, por fim, exausta, sucumbe à invisibilidade.


Há tanto o que ser (re)visto sob o sol dos dias

Há tanto o que ser falado dessas dores e noites

Que, quando nos levantarmos todas, isso é certo,

Nossa voz explodirá numa aurora nuclear irrefreável.


Indomável.


Rita Alencar Clark 

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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

quarta-feira, 22 de março de 2023

MOSAICO DE IDEIAS: UM TANGO PARA EULÁLIA, POR SANDRA SA'NTOS

 

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MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|03

U M  T A N G O   P A R A   E U L Á L I A 

POR SANDRA  SA'NTOS


Pela música que invade nossas almas, por um sonho, pela dança, pela poesia, e principalmente pela nossa liberdade. Dancemos com Eulália.


O hotel em que estavam hospedados era antigo, chique e pretensamente “Cult”. Tão refinado quanto ultrapassado, lindo mesmo assim. Eulália estava com Jairo em Buenos Ayres para algo que ela considerava uma espécie de lua de mel.

Para ela que crescera em uma família humilde, tudo era novo e deslumbrante. A cidade era especial, as pessoas que passavam pelas ruas combinavam tanto com o cenário que pareciam colocadas ali, apenas para enriquecê-lo. Figurantes escolhidos cautelosamente em um set de filmagem. Mas, apesar da beleza do ambiente, e de toda a preparação para essa viagem, ela tinha uma terrível sensação de estar no lugar errado. 

Apaixonara-se loucamente por Jairo, um argentino bonito e alguns anos mais velho, responsável pela reviravolta em sua vida. Uma paixão incontrolável os envolvera, e há pouco haviam se assumido como casal pois, até então, eram amantes acostumados com a clandestinidade. Talvez, por isso a incômoda sensação de não merecer estar bem a inundava. Tentava bravamente afastar os pensamentos conflitantes que lhe povoavam a mente, acreditando que a aura de criminalidade, ficaria para trás. Depois de tudo o que enfrentaram para ficar juntos, seria natural sentir-se em paz na companhia dele, porém, pelo contrário a sensação de alegria insistia em se afastar.

- Talvez seja apenas uma questão de tempo. É tudo muito recente. – Pensava consigo mesma.

Jairo de todas as formas possíveis, fazia com que ela se sentisse amada. Mas, agora ali longe de casa, a única coisa que ela sentia era medo e insegurança, além de uma latente intuição lhe tirava a tranquilidade. O homem por quem se apaixonara, em alguns momentos, parecia-lhe um estranho, e Eulalia via pequenos sinais que a incomodavam em suas atitudes. Algo não estava certo.

- Será que nos precipitamos? Será que eu me precipitei? – Inconformada com a sensação, estava decidida a fazer o que fosse possível para sentir-se mais calma, afastando como podia os pensamentos para longe.

Saíra de um relacionamento regado a solidão e precisava da atenção que Jairo lhe dava. Mas, havia um “mas” pairando como uma névoa sobre sua cabeça. Tudo se parecia demais com uma mentira. Um lado de sua mente, já havia decretado que tudo não passava de uma grande mentira que agora, ela teria que conviver. Assim, forçava-se a ficar imune aos alertas de sua intuição.

- Como posso não me sentir feliz na companhia dele?  Agora que já estou aqui preciso relaxar e aproveitar todos os momentos – Concluiu, ensaiando uma mudança de postura.

Haviam passeado de mãos dadas pela primeira vez sem incomodarem-se com as pessoas ao redor. Agora assumidos, poderiam fazer coisas de gente normal, livres como nunca se permitiram antes. Almoçaram em um restaurante maravilhoso, foram as compras e tudo parecia perfeito. Desde que chegaram ela sentira-se extremamente bem recebida em todos os lugares que passaram, Eulália sentia-se quase uma conterrânea, na verdade, seu biotipo realmente fazia com que ela parecesse muito com uma filha da terra. Mesmo assim, para ela, algo estava fora do lugar.

Naquela noite, Jairo havia prometido levá-la para conhecer a noite portenha e seus encantos, Buenos Ayres e sua famosa boemia. Eulália tinha um lado que apreciava a beleza das noites e sentia uma curiosidade romântica acerca dos seres que vagam solitários de bar em bar.

Em sua ingenuidade, acreditava que todos os boêmios eram artistas, compositores ou músicos. Nem de longe, se permitiria imaginar criaturas tristes e solitárias vagando sem rumo, objetivos ou sem esperança. Para ela, Jairo meio que retratava essa fantasia, o via como um lindo boêmio, e essa noite prometia. Tango, vinho, boas risadas e muito romance.

Olhando-se no espelho ordenou a si mesma para que fosse feliz. Decida a mudar sua postura, preparou a banheira e deleitou-se com um longo banho, chegando mesmo a adormecer naquela água perfumada e cheia de espuma, enquanto Jairo participava de mais uma reunião de negócios com os produtores de uva. Precisavam encaminhar detalhes da próxima safra, e sua rotina fazia com que se dividisse entre a Argentina e outros países, incluindo o Brasil.  

Maquiou-se, e vestiu sua roupa especial, um belíssimo vestido que Jairo lhe dera especialmente para a ocasião. Um tomara que caia, em tafetá preto, que parecia ter sido feito sob medida, lindo e tão caro quanto seu salário de um mês. Já vestida, parou para admirar-se no espelho, tudo estava perfeito. Mesmo assim, sentiu-se estranha. Ela nunca gastaria tanto dinheiro em uma peça de roupa.

- Talvez deva me acostumar com esse tipo de luxo. – Concluiu terminando a maquiagem e aprovando sua imagem. Estava pronta para a tão esperada noite de tango, mas ali em frente ao espelho apesar de toda a produção, o que viu foi um par de olhos tristes.

- Acho que vou colocar mais rímel, um pouco mais de blush e talvez disfarce. – Foi o que fez.

Eulalia ainda ouvia os insultos e sentia os olhares de desaprovação quando a notícia de seu divórcio se fez conhecida. Fora julgada e condenada por amigos e familiares, enfim, todos os que não se deram ao trabalho de perguntar o porquê. Preferiram fingir não saber o que é possível se viver ou morrer entre quatro paredes. Houve uma espécie de escolha e na caça às bruxas, as mulheres sempre perdem.

- Santa hipocrisia, eu me separo pra viver minha vida com mais dignidade e sou tratada como uma puta. Elas preferem manter as aparências? Então tudo bem, não sei se perdoo, mas com certeza eu supero. A escolha foi sua. Você buscou a liberdade e conseguiu. Agora, bora ser feliz dona Eulália! É uma ordem!!! - Falou em voz alta, certificando-se que a mulher de olhar triste que via refletida no espelho entenderia o recado. Deu uma última ajeitada nos cabelos, e saiu do banheiro.

Jairo já a esperava sentado confortavelmente em uma bela poltrona estilo retrô. Ao vê-la abriu seu enorme sorriso cheio de dentes, pulou em sua direção envolvendo-a nos braços. Ela, uma mulher pequena, ficava completamente escondida no enorme corpo de Jairo e aquele abraço, aquele carinho, aquela demonstração de conforto eram para ela a representação de um excelente momento pro relógio quebrar, e o tempo parar de andar. Um lapso de momento em que Eulália acalmou-se.

- Meu Deus como está linda! Me deixa ver como ficou nesse vestido, minha nossa! Eu sou muito sortudo, o homem mais sortudo de toda Buenos Ayres. - Exclamou Jairo enquanto a girava imitando um passo de dança. Findo o rodopio, olhou-a nos olhos e a beijou com a ternura e a potência que lhe eram características. Seu amor era uma bomba de sensações controversas e irresistíveis. Era um homem bonito com uma figura altiva, de gestos cautelosos e postura de leão.  Trajava um terno caro e bem cortado, que na verdade era a forma que usualmente se vestia.

- Vamos bela senhora Blanco? Senhora Eulália Blanco! Fica chic não acha? - Disse-lhe dando-lhe o braço, e empregando seu próprio sobrenome a ela.

- Senhor Jairo Blanco! Devo pressupor que isso seja um pedido de casamento? - Completou Eulália rindo.

- Vamos bela senhora, a noite nos espera. – Continuou sem responder sua pergunta. Sorrindo e rodopiando sobre si mesmo, ensaiou pequemos passos de dança enquanto atravessavam o corredor de seu quarto de hotel.

Na verdade, casamento não havia passado na cabeça de Eulália. Durante o curto período em que estavam juntos, apesar do envolvimento avassalador, se viam pouco e Eulália tinha consciência quanto a diferença de idade, e de vida entre os dois. Não haviam conversado sobre essa possibilidade, na verdade nem sequer haviam viajado juntos antes. Ela se envolvera com um homem que trabalhava muito e adorava seu trabalho, haviam se conhecido em uma convenção já que Eulália era secretária em uma empresa de eventos.

No elevador, Eulália assistiu confusa Jairo sacar o celular para checar se tudo estava encaminhado no que se referia aos convites e reservas dos convidados daquela noite.

- Convidados, que convidados? Deus do céu, quantas pessoas estarão lá? - Perguntou a si mesma indignada, pois naquele mesmo dia ele havia trabalhado. Imaginou que a noite fosse só deles. Tudo o que desejava era uma noite de romance, como ele a havia feito acreditar que seria.

Algo desabava a sua frente escancarando o que esse talvez viesse a ser a sua vida com ele, escancarando talvez o motivo de suas incertezas. Talvez nunca conseguisse ser importante o suficiente para ele, talvez não seria como agora, sequer consultada sobre algo que também a envolveria. Talvez, os negócios estivessem sempre entre os dois.

Uma nuvem de medo surgiu em seus olhos e quebrou seu espírito. Eulália não gostava de conflitos, e já apreensiva, questionava-se se deveria ou não externar sua indignação e desconforto. Preferiu calar-se, e engolindo as palavras continuou apenas observando enquanto Jairo falava, gesticulava e coordenava a tudo com desenvoltura. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela os baixou para que ele não percebesse. Mais uma vez, fez o que sempre fizera, calou-se como havia se calado a vida inteira.

- Que porra é essa? Não era um jantar romântico? Por que não conversou comigo antes? Por que não me avisou? – Bradou internamente sem nada dizer. A insegurança que ela ensaiara dar fim enquanto se arrumava, havia voltado e ele sequer percebeu. Eulália ainda não sabia, mas Jairo não conseguia ver muito além de si próprio.

O carro já havia andado alguns quilômetros quando enfim, a ligação terminou. O motorista, funcionário de confiança de Jairo, apenas a cumprimentou evitando olhar para ela durante todo o trajeto. Para Eulália isso foi um alívio, pois afastou o constrangimento de sua visível decepção. O destino era relativamente próximo do hotel, e a essa altura, seja lá quem o havia escolhido, fizera um bom trabalho. “La Noche”, um pequeno bar, no charmoso bairro de San Telmo.

Com móveis de madeira escura torneada, piso de ladrilhos brancos e pretos alternados. Lindo, tão lindo que parecia ser parte de outra época. Sentiu-se entrando em um túnel do tempo, num cenário perfeito, da música aos garçons, das pessoas aos cheiros que inundavam o ambiente que ostentava um refinamento único e genuíno.  

Estava encantada e considerou deixar-se levar pelo clima da noite portenha. Talvez não fosse assim tão difícil transformar aquela em uma noite inesquecível. Ela precisava desesperadamente sentir-se viva e havia entrado em um mundo de sonho. Estava deslumbrada.

Como pôde, sorriu e foi simpática com os convidados de Jairo, mesmo que para ela fossem apenas estranhos falando uma língua estranha, e que provavelmente só teriam assuntos que não lhe interessariam. Após algum tempo, abstraiu-se das conversas e desistiu mostrar-se presente na situação. Desistiu das delicadezas ensaiadas e da ausência de Jairo que se ocupou a agradar os presentes. Eulália distinguia sua voz ao longe, já que ele havia se sentado do outro lado da mesa para conversar. 

- Está tão animado e profícuo. Ou será prolixo? Essas conversas são sempre mais do mesmo e eu não vim aqui para trabalhar. Como ele pode fazer isso nessa noite? - Riu do próprio trocadilho.

Distraiu-se analisando tanto Jairo quanto o seu interlocutor, um senhor mais velho que prestava uma atenção sobre-humana nas palavras em suas palavras.

Acho que o homem não colocou direito a peruca. Sim, acho que ele usa peruca. - Cerrou os olhos prestando atenção aos detalhes que pudessem lhe entregar a verdade sobre o caso.

- É, eu estou certa. Aquela quantidade de cabelo sobre sua cabeça não combina nem com seu rosto, nem com os ralos cabelos nas laterais, e a cor é diferente. – Concluiu que a partir de então, seria um ótimo passatempo encontrar defeitos em todos que estavam estragando a sua noite, pelo menos assim, ficaria com uma expressão risonha o que daria a impressão de estar satisfeita.

Foi o que fez com o auxílio do garçom um tanto empolgado com a moça que parecia deslocada. O rapaz, decidira manter sua taça cheia, num bom pretexto para estar por perto numa espécie de flerte proibido. Ela por sua vez, entregou-se inteira as delícias do líquido sagrado.

A imagem de Jairo, aos poucos, desapareceu na fumaça dos cigarros, no som da música, e na leseira daquele bom vinho. Ele tornou-se apenas mais um no meio de tantas pessoas e Eulalia já não estava mais com eles. Estava sozinha como nos longos anos de seu casamento. Estava em um lugar repleto de gente, mas sozinha.

Como não entendia muito bem o idioma, decidiu colocar mentalmente uma legenda nas palavras que jorravam das bocas das pessoas fazendo com que a dificuldade de comunicação, passasse então a diverti-la. Agora a língua que eles falavam já nem era mais tão estrangeira assim.

A liberdade etílica, que captura facilmente aqueles não acostumados ao álcool, fez com que ela se sentisse à vontade consigo mesma. Deixou-se levar pela vibração do ambiente e assistiu extasiada à apresentação musical de três senhores que tocavam acordes perfeitos em instrumentos que ela nem conhecia. Teve a impressão de que o restante dos músicos talvez, estivesse escondido, como era possível, apenas três senhores, só três, inundarem todo o salão com tamanha magia? A harmonia daquelas figuras já idosas, se encaixava perfeitamente ao cenário, e Eulália divagava alternando-se entre o real e a fantasia trazida por Baco.

- Talvez tenham nascido aqui, têm a mesma idade do bar. Acho que bebi demais. - Percebendo o absurdo que pensara, decidiu que era hora de comer alguma coisa, tomar um copo de água, e andar um pouco. Precisava se recuperar antes que alguém notasse sua embriaguez. Levantou-se com calma e dirigiu-se ao banheiro.

Nem se deu ao trabalho de comunicar a Jairo. Cuidou em andar de forma leve e cautelosa para que ninguém percebesse que estava “alta”. Lavou o rosto, retocou a maquiagem, e sentindo-se melhor resolveu retornar à sua mesa. No caminho de volta, distraiu-se com os homens e mulheres bem vestidos, e com a alegria que pairava no ar, sem dúvida era o ambiente perfeito para casais apaixonados.

Voltou a passos lentos, ciente de que havia demorado mais que o normal, mas agora sentia-se bem. Constatou que Jairo que trocara de interlocutor, ainda não voltara para a cadeira ao seu lado, talvez nem tivesse dado por sua falta. Estava contrariada e decidida a não estragar ainda mais a sua noite quando o anúncio da apresentação principal lhe atraiu a atenção.

- Tango! – Exclamou batendo palmas entusiasmada. Ajustou-se rapidamente na cadeira no mesmo momento em que o prestativo garçom, lhe oferecia mais uma taça de vinho que ela mais que prontamente, aceitou. Assistiu à apresentação hipnotizada, pondo-se a calcular o nível de harmonia e entrosamento que um casal de profissionais da dança deve possuir para realizar com tamanha desenvoltura aqueles passos intricados.

- Se o sexo fosse uma música, definitivamente seria o tango. – Concluiu acompanhando com atenção cada movimento. Mentalmente bailou com eles chegando a inferir se fora do palco, também seriam um par. Invejou a dança e invejou aquela moça que rodopiava leve nos braços de seu parceiro. Gostaria de trocar de lugar com ela.

Sem que Eulália soubesse, era praxe ao fim da apresentação que os dançarinos escolhessem pessoas entre o público para dançar, como se fosse uma aula. Entusiasmada acompanhou atentamente toda a movimentação. A moça, após andar um pouco, convidou um senhor grisalho e tímido de uma mesa no lado oposto do salão. O rapaz sem nenhuma hesitação, assim que se separou da parceira, buscou por Eulália e a olhou fixamente. Caminhou em sua direção com a determinação de quem sabia muito bem o que queria. Queria Eulália. Parou em sua frente, sorriu e estendeu-lhe a mão.

Com o coração acelerado, mais que depressa ela aceitou o convite e saíram de mãos dadas rumo a pista de danças. Já no meio do salão lembrou-se de Jairo, dirigiu seu olhar a ele procurando talvez, um sinal de aprovação que não recebeu. Pelo contrário, ele a observava com um misto de surpresa e raiva. Sua reação negativa não a demoveu. Era visível que ele estava perplexo e que se pudesse dizer algo naquele momento, com certeza a impediria. Eulália olhou a sua volta, e recebeu a aprovação do bar inteiro por meio de palmas e palavras de incentivo, para ela e para o senhor tímido que agora sorria. Era isso o que todas as mulheres naquele bar queriam, e era isso o ela queria. Esqueceu-se de Jairo, e se entregou ao tango como antes se entregara ao vinho.

Nos braços daquele estranho fascinante se deixou conduzir como uma amante que flui nas mãos de seu homem. Olhavam-se fixamente e ela agiu como se dançar lhe fosse algo costumeiro, como se eles já houvessem ensaiado aquela dança muitas e muitas vezes.

Há uma aura que emana de um corpo para outro em uma fluidez simbiótica que vem com a dança. Quando corpo e alma se misturam a uma melodia tornando-se parte dela de tal maneira, que entre dois estranhos nasce uma cumplicidade que só existe no compasso da música. Eles haviam entrado nesse universo.

Naquele bar antigo nascia uma Eulália atemporal, sem medo de lançar-se ao desconhecido. Deixou que todas as sensações pulsantes do momento, invadissem sua alma. Uma Eulália que vivia aquela fantasia sem medo de ser feliz. Ela rodopiou nos braços daquele homem, nos braços do tango e da poesia que faltava em sua vida. Esqueceu-se da tristeza e do medo. Ali não havia pecado, havia apenas a euforia da liberdade.

Não havia passado. O presente era mágico. E quanto ao futuro?

Bem... Nesse ela pensaria depois. 

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Sandra Sa'ntos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, pela faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo- FMS/USP. Ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Escritora, dedica-se a poesia e aos contos. Publicou "Jardim dos Silêncios" - Editora Viseu e organiza seu primeiro livros de contos. Além de um romance a caminho. Sua temática gira em torno do universo feminino, com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina. 

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