LÍRICA, ÉTICA E FILOSOFIA: MULHER, O QUE GRITA A SUA
POESIA? - II FLENLUA/2023 - MESA 5
POR HELIENE ROSA
|
Heliene Rosa Escritora, poeta, pesquisadora
|
A definição do tema: “Lírica, ética e
filosofia: mulher, o que grita a sua poesia?”
para a quinta mesa do II Festival Literário Enluaradas – FLENLUA/2023 teve como
motivação principal o desejo de conhecer a essência da escrita literária de
cada poeta. Assim, cada autora foi estimulada a refletir sobre o seu fazer
poético, no contexto de produção do último volume da trilogia do Coletivo
Enluaradas: a coletânea I Tomo das
Bruxas: do Ventre à Vida (2022).
|
|
Diante dessa provocação, a poeta Malu Baumgarten revelou que a sua poesia se consolida na complexidade de ser e de estar
no mundo, sob a égide dos desafios e das incoerências humanas na modernidade
tardia. A participação virtual da escritora, a partir do Canadá, aconteceu
coincidentemente sob um frio intenso. Em relação à sua escrita, é possível
perceber intenso lirismo apoiado em uma ética da solidariedade. Intimismo e
emoção se aliam para a projeção de ideais que problematizam o que se
convencionou chamar de humanidade, sob o prisma do capitalismo selvagem. Nesse
contexto, a autora manifesta sua sensibilidade diante do que vê no mundo. No cenário de seu poema: Carlton e a rua da
igreja, declamado durante a live da feira literária, há uma mulher que
dança seminua em uma das ruas geladas da cidade de Toronto. Enquanto isso, um
homem caminha maltrapilho e sem sapatos, sob o ar gélido de oito graus
centígrados. Ambos compõem um espetáculo fantasmagórico presenciado por
passantes que se encolhem indiferentes na calçada. A lente de Malu Baumgarten
flagra a displicência da sociedade diante da miséria e do caos psicológico
presenciados na rua. Há, na semelhança com a temperatura ambiente, neve nos
corações, na alma e nos olhos que olham sem ver a dor dos semelhantes. Em
versos contundentes, desnuda-se a incoerência nas atitudes de gentlemen e ladies bem-nascidos, bem vestidos e bem nutridos que naturalizam as
injustiças sociais pela falta de sensibilidade diante do infortúnio dos corpos
que “dançam” na neve. A poesia de Malu Baumgarten grita contra a
insensibilidade e os desacertos do mundo.
Com foco no poder que a escrita agrega
à trajetória das mulheres intelectuais, Jeane Bordignon, poeta porto-alegrense,
celebra a superação gradual do anonimato feminino na literatura quando realça a
importância da assinatura das escritoras em suas produções. Ela reafirma o
poder das lutas por visibilidade com a publicação de seu livro de poemas O Brado Carmesim (2014). O grito das
mulheres, representado em sua escrita poética, revela a força e a sabedoria
ancestrais trazidas pelo vento e materializadas no voo/dança das deusas, das
fadas, das ciganas e das mulheres que bebem do sol e da chuva, em perfeita
integração com os elementais. Em seus versos, a autora celebra a força que a
escrita das mulheres reúne para vencer, muitas vezes com palavras até
cortantes, a subalternidade feminina. O poema intitulado Cigana-Borboleta,
presente na coletânea I Tomo das Bruxas:
Do ventre à vida (2022, p.49), evidencia o desejo/necessidade de liberdade
das mulheres que rompem com alguns padrões comportamentais, se expressam de
múltiplas formas e fogem das convenções, das amarras e dos estigmas sociais. A
poesia de Jeane Bordignon grita poder feminino e liberdade.
A
liberdade para o exercício do poder feminino por meio da escrita literária não
descarta o sublime nem a metafísica. Nesse sentido, a poeta, terapeuta
holística e astróloga, Astrid Schein Bender, a TidaFeliz expressa em sua
escrita autoral uma conexão intensa com a natureza e reverbera a potência
feminina da criação. Ela ressalta o caráter testemunhal de sua poesia a partir
da materialização de questões idiossincráticas de sua trajetória como discípula
da vida em constante aprendizado. O envolvimento com a terapêutica holística
instrumentaliza o olhar dessa poeta a explorar aspectos que transcendem o real
imediato e favorecem a abertura para novos aprendizados a partir das e para as
artes poéticas. Nos versos de seu poema: Sob um Céu Encantado, presente na
coletânea I Tomo das Bruxas: Do ventre à
vida (2022, p.190), ela aborda um segredo ancestral de manifestação do ser,
em que sonho e revelação se oferecem como opções introspectivas na úmida
verdade de um céu habitado por flores mágicas e coloridas. Na tessitura de seu
poema, vicejam a alegria e o amor que hoje move a escrita das mulheres, das
bruxas contemporâneas que se conectam com o sagrado feminino ancestral para
revelar subjetividades, beleza e histórias. A poesia de TidaFeliz grita
encantamento e magia.
Os desafios impostos à expressão das
intelectuais e artistas da palavra ao longo do tempo movem a atuação de Heliana Barriga, poeta com 40 anos de dedicação à literatura. Ela é artista musical,
Embaixadora das Infâncias e apresentadora do programa infantil A Arte de Ser
Criança. Com sua escrita irreverente e combativa, ela burila a palavra viva na
ludicidade poética da emoção de despertar para o novo a cada momento. Assim,
vem se ocupando com a poesia das infâncias, estimulando a escrita entre as
crianças nas escolas. A autora explora o caráter experimental da poesia e o non sense, vive a poesia no cotidiano
como emoção. Ela é uma bruxa contemporânea que estreia o dia com poesia e
alegria. Nos versos de seu poema: Dibruxa, presente na coletânea I Tomo das Bruxas: Do ventre à vida (2022,
p.41), Heliana Barriga interroga essas bruxas diante da materialidade do viver
e ressalta a magia necessária às atividades que lhes são inerentes. Nesse
exercício, a poeta desconstrói a rigidez da linguagem para alcançar inusitados
sentidos, significados pertinentes ao universo versátil das feiticeiras
pós-modernas. Ela reitera o elo perene das gerações e a força da ancestralidade
que nutre os poderes femininos: “...bruxas novas sempre precisarão das bruxas
antigas. As bruxas antigas é que têm as receitas antigas...”. A poeta conduz
sua arte para o enfrentamento das questões pontuais pela valorização da
cultura, do ensino e o combate às variadas formas de injustiça social. A poesia
de Heliana Barriga grita teimosia e resistência.
A plurissignificação da palavra poética
e a ambiguidade constitutiva da linguagem se materializam na escrita da poeta,
pedagoga e ambientalista Sandra A. Santos. Ela situa a poesia no âmbito da
provocação e do acalento, ao ressaltar o caráter comunicativo e a potência do
dizer nas entrelinhas que reverbera em cada verso, que – no contexto de sua
produção – se transforma em força para as lutas da existência. A arte da
escrita poética pulsa em suas veias como um legado parental, ela revela ter
tido pai poeta. Assim, seus versos transitam de um lirismo delicado onde borboletas
batem asas e beijam flores até a ética das lutas contra todos os tipos de
abuso. A assertividade de sua poesia
lembra que somos seres desejantes e, por essa razão, também seres de poder.
Essa dinâmica instaura e materializa as batalhas cotidianas contra a palavra
vazia. Nos versos de seu poema: Revolução, presente na coletânea I Tomo das Bruxas: Do ventre à vida (2022,
p.176), há uma voz lírica exaurida que faz o verbo ecoar no protagonismo da
palavra poética. Persistente, essa voz revela sua estratégia: “Só sei lutar com
verso”. A poesia de Sandra A. Santos grita
lirismo e revolução.
Os movimentos cíclicos que aproximam os
corpos femininos ao corpo da Mãe Terra estabelecem uma identidade de poder para
as mulheres que não escapa à produção autoral da poeta Hydelvídia Cavalcante,
de Manaus/AM. Ela é professora doutora em Linguística e desenvolve projetos
voltados para o falar amazonense. Na expressão lírica da sua poesia, percebe-se
o grito pela ética que eleva as vozes femininas nos saberes e poderes
necessários à ascensão dessas poéticas e à elevação da estima das mulheres. Nos
versos de seu poema: Berço Orgânico da Vida, presente na coletânea I Tomo das Bruxas: Do ventre à vida (2022,
p.67), a autora aciona a força do sagrado feminino na criação humana ao
reverenciar a figura da mulher em sua justa posição de portal para a terceira
dimensão. Reafirmar essa verdade objetiva também é estabelecer uma ética do
conhecimento a despeito de quaisquer vinculações filosóficas que intentem sugerir
ou legitimar a negação do poder das mulheres na criação, na nutrição e na
manutenção da vida. Nas palavras dela: “A natureza anatômica do ser humano
mulher / traz em seu cerne a dadivosa iniciação da vida...”. A poesia de
Hydelvídia Cavalcante grita amor e feminilidade.
Os desdobramentos da aventura feminina
pelos caminhos da escrita autoral vêm revelando que não basta competência
intelectual para se sobressair nesse universo. São necessárias diversas estratégias,
às quais a poeta Manuela Lopes Dipp se refere, de forma paradoxal. Ela lembra o
poder e o perigo da literatura ao reafirmar a seriedade da escrita e requisitar
para as mulheres escritoras o direito ao status
de profissionais das Letras, com todos os reconhecimentos devidos e merecidos.
Ela reafirma, enfaticamente, o labor da escrita e o caráter revolucionário
desse ofício. Natural de Porto Alegre/RS e formada em Direito, Manuela Lopes
Dipp declara não ser uma profissional do Direito que escreve, mas uma escritora
que, entre outras atribuições, atua nessa área. A autora lembra ser
indispensável estimular as novas gerações de mulheres para que lutem por esse
reconhecimento para a profissão de escritora. Seu poema: Feitiço, presente na
coletânea I Tomo das Bruxas: Do ventre à
vida (2022, p.116), faz referência ao silenciamento secular das mulheres e
às estratégias para manutenção da subalternidade feminina na contemporaneidade.
Reposiciona o papel das lutas femininas em favor da extinção das fogueiras – em
suas diversas formas e variadas manifestações – para que sejam banidas juntamente
com práticas da opressão feminina que são continuamente perpetuadas e
naturalizadas nas sociedades machistas. A poesia de Manuela Lopes Dipp grita
respeito e reconhecimento.
A síntese das discussões propostas
nesse encontro de mulheres escritoras é anunciada pela poética de Rita Queiroz.
A poeta da capital baiana também é professora doutora em Filologia com extensa
produção literária e competência reconhecida no campo da escrita autoral. Os
versos de seu poema: Fervedouro de Sementes, presente na coletânea I Tomo das Bruxas: Do ventre à vida (2022,
p.155) resgatam quimeras primitivas, sonhos gestados nos ventres das primeiras
bruxas e a força ancestral que vem da alquimia e do gozo. Desejos forjados nas
lutas por transformações empreendidas por mulheres em diferentes lugares e
tempos: “Na pluralidade de eras...”. Sementes deixadas por bruxas antigas e
contemporâneas, deixadas por todas nós que; “Fabricamos o mundo, o tempo, o
infinito”. Sua poética resgata a força motriz da ancestralidade no universo das
autoras da trilogia, as bruxas contemporâneas que elevam suas vozes na
segurança do poder e do conhecimento ancestral: o sagrado feminino que pulsa em
cada ventre. A poesia de Rita Queiroz grita vida e plenitude!
A mediação desse potente encontro
feminino suscitou reflexões importantes para a minha trajetória como
pesquisadora das poéticas femininas. Quando defendi a minha tese de doutorado
sobre as poéticas das mulheres indígenas há dois anos, comecei a me interessar
por temas que permeiam a escrita das mulheres e, principalmente, por temas que
as motivam a escrever e a publicar. Assim, recebo essas provocações como
estímulo para a minha constante investigação sobre o tema e também como um
grande impulso para a minha produção autoral.
Agradeço às escritoras Patricia Cacau e
Marta Cortezão que são as idealizadoras desse importante projeto, pela
oportunidade de partilhar desse momento histórico na produção literária
brasileira de autoria feminina coletiva. O registro dessas atividades é
imprescindível para a historiografia da literatura brasileira, sobretudo no
seguimento da produção das mulheres, historicamente apagada pelos cânones
tradicionais.
Para BAIXAR GRÁTIS a I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, clique AQUI.
♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡
Heliene Rosa é poeta mineira, professora e pesquisadora das poéticas femininas. Escreve para o Blog Feminário Conexões e publica textos em antologias literárias nacionais e internacionais. Além da produção poética, tem publicações acadêmicas sobre a produção feminina na literatura e articula projetos e eventos de leitura literária.
Que texto maravilhoso Heliene! Uma coreografia das escritas das mulheres Enluaradas, adorei! Muito sensível e profundo. Beijos
ResponderExcluirQue mimo poético Heliene! Abristes o presente que o coletivo enluaradas nos entregou! Amei! Uma descrição singular e sensível. 👏🏻👏🏻👏🏻❤
ResponderExcluirAh quanto maravilhamento ao ler essa profunda análise de Heliene Rosa. Me encheu o coração de alegria e minha alma por perceber estar no caminho certo, caminhando ao lado de mulheres incríveis e batalhadoras. Vamos lutar com nossos versos e de mãos dadas, tecendo nossa rede.
ResponderExcluirÓtimo texto. Um convite a leitura de mulheres engajadas e comprometidas com as lutas de seu tempo!
ResponderExcluirJá considerado o Projeto Enluaradas daqueles marcos especiais deste século, porque agrega saberes, conhecimentos, potências, escritas por mulheres cujas vozes poéticas jamais serão silenciadas.
ResponderExcluirAmei o texto, Heliene! Ficou linda essa junção de vozes da II FLENLUA, parabéns!
ResponderExcluir