segunda-feira, 24 de julho de 2023

AMOR E EROTISMO: A DUPLA CHAMA NAS PÁGINAS DE "É tudo ficção", "meu silêncio lambe a sua orelha" e "Fio de Prata", Por ISA CORGOSINHO

 

AMOR E EROTISMO: A DUPLA CHAMA NAS PÁGINAS DE 

É tudo ficção, meu silêncio lambe a sua orelha e Fio de Prata

POR ISA CORGOSINHO

 

Chegaram-me às mãos três livros das amigas poetas do projeto Enluaradas. É tudo ficção e Fio de prata aportaram matutinos quando as autoras Flavia Ferrari e Margarida Montejano estiveram em Brasília, em pleno verão, já o meu silêncio lambe a sua orelha, de Marta Cortezão, chegou marcando o final do outono.

Releio algumas passagens do livro A dupla chama: amor e erotismo, de Octavio Paz, para me acompanhar nesse pequeno artigo, que escrevo para nosso encontro em Campinas, marcado para o final de julho de 2023.  

Os livros das três autoras reforçam, na realidade sensível, que a poesia é o testemunho do mundo dos sentidos. Um testemunho que projeta sua veracidade nas imagens que se oferecem ao leitor como palpáveis, visíveis e audíveis.

O que nos ensina a poesia está no real ou na ilusão? Pergunta que permeia o livro É tudo ficção, de Flávia Ferrari. A ambivalência da resposta está na sustentável fusão de ver e crer. É na conjunção do ver e crer que está o segredo e os testemunhos da poesia a serem desvelados pelo leitor, pois aquilo que vemos na poesia não pode ser visto com nossos olhos da matéria, e sim com as janelas da alma, os olhos do espírito.

FUSÃO


Percebo as vidas soltas

Que deixam de ser invisíveis

Quando contemplo os pés descalços

__ Sempre os pés __

Ponto de apoio quando caminho

Há outro destino disponível que não a espera?

Penso no tempo e em sua medida

Tão legitimada e disseminada

Tão suscetível ao espanto

Há quase tudo por fazer

E tantos lamentos que não alimentam nem o minuto

 

Octavio Paz acerta quando diz que a experiência com a poesia é a mesma que experimentamos no sonho e no encontro erótico. Na poesia de Ferrari, marcadamente no capítulo 5. Entre paredes, tanto nos sonhos como no ato sexual o eu poético abraça fantasmas, ausências, reminiscências. 

      

O TAMANHO DAS COISAS


uma memória pode ser maior que o vento

e mesmo quando surge com todo o seu domínio

é ainda menor que o meu amor presente

 

o tecido que me envolve

e que agora se desmancha na fúria da sua luz

já nos embrulhou em nossas fugas

das histórias ruins que repartimos

e acatou os segredos que soubemos oferecer

 

esses pontos que foram se soltando

e que antes entrelaçavam as banalidades e as aventuras e o pacto

foram alterando toda a estrutura

tivemos que nos arrancar de nós

 

agora que há tão pouco aqui comigo

e mesmo tirando tudo o que persiste

eu não consigo me escapar

 

nem no momento de maior aflição

desejei não ter vivido nossa verdade

mesmo que jamais consiga fazer parar

 

prometo que não escreverei mais

assim diretamente

saber-me invasiva da sua nova  vida

agora me constrange

e me encerra aqui

neste ponto exato

de onde não haverá partida        

    

Embora nosso parceiro tenha corpo, nome e face, na sua realidade, precisamente no momento mais intenso do abraço, acontece a dispersão em ondas de sensações que inexoravelmente se dissipam. A pergunta que insiste em não se calar, está sempre ecoando pelas bocas dos apaixonados, porque guarda em si o mistério erótico:  quem é você? Não é possível obter a resposta, porque os sentidos são e não são deste mundo. É a poesia, por meio deles, que ergue uma ponte entre o ver e o crer. Por essa ponte transita a imaginação, por ela ganha corpo e os corpos se convertem em imagens.

A poesia de Marta Cortezão nos convida a tocar o impalpável e a escutar as ondas do silêncio cobrindo uma terra devastada pelos insones. O testemunho poético refrata, revela um outro mundo dentro deste, o mundo outro – alteridade – que é este mundo.  Os sentidos aqui trabalham, sem descuidar de seus poderes, como servidores da imaginação e nos incitam a ouvir o inaudito e ver o imperceptível.

Quem ri quando goza / é poesia / até quando prosa 

                                                                {Alice Ruiz}

desvãos

 

meu silêncio lambe tua orelha

e se arvora feito cobra

para infiltrar-te o veneno

 

meu silêncio se espicha

pelas frestas feito lagartixa

para roubar-te a fala

 

meu silêncio aflora

e ri que goza

quando lambe

quando cobra

quando se larga e atiça

para confundir-te as horas

e de olhos nos olhos

alimentar-te a prosa

com íntima poesia

 

Octavio Paz faz uma profícua relação entre erotismo e poesia. Segundo ele, o erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica verbal. Os dois são compostos de uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – e é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação.

No livro meu silencio lambe a sua orelha, de Cortezão, encontramos as imagens recorrentes da chama vermelha do erotismo, transfigurada em linguagem.   

Eu não nasci rodeada de livros, e sim rodeada de palavras 

                                                              {Conceição Evaristo}

geossintaxe                    


com passos indecisos

percorro as sentenças

da língua que me devora

 

reviro os escaninhos

dos verbos obtusos

cuja geometria

adensa os advérbios

que florescem das pedras

 

meus sapatos sujos de pausas

deixam todas as pegadas

órfãs de sintaxe-delírio

 

onde guardei a palavra

com gosto de chuva?

 

onde minha língua

se entrelaçará na tua

para cópula ardente

de neologismos?

 

quando o sexo verbal

gozará metonímias

em teu corpo metáfora

afro afrodisíaco

Afrodite de palavras?

 

Na poesia de Cortezão ocorre a concreção daquilo que afirma Paz. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora, e a imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É, afirmativamente, a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora.  Observamos em sua poesia a imagem poética como um abraço de realidades opostas, os versos livres e a poesia concreta encenam a cópula de imagens e sons. Sua poesia erotiza a linguagem e o mundo, porque ela própria, em modus operandis, já é erotismo.

Diferente da mera sexualidade, o erotismo é uma metáfora do sexo animal, reafirmando o significado conotativo designa algo que está além da realidade que lhe dá origem, uma invenção distinta dos termos que a compõe. Igualmente, a poesia já não aspira a dizer, e sim a ser. A poesia interrompe a comunicação prosaica do cotidiano como o erotismo, a reprodução. 

Os sentidos do amor e do erotismo também estão presentes no conto A metáfora do Buraco e a Água no Rosto, do livro Fio de prata, da escritora e poeta Margarida Montejano, do qual destacamos alguns fragmentos.

__ Caro amigo,

Você já teve a sensação de que está andando, ou parado e que, de repente, um buraco se abre e sua frente e você é simplesmente engolido por ele?

[...]

Água! Me dei conta que... minha boca, nariz e olhos estavam cheios de areia. Meu corpo sendo sacolejado por mãos delicadas. Mãos de mulher. Água sobre o meu rosto ela jogou.

__ Acorda! Acorda!

Disse a voz rouca e suave!

[...]

O perfume da mulher me inebriou a mente, a alma e, como a um sonho, as imagens se desvaneceram. Sensação agradável tomou-me.

Respiro. Olho meu ouvinte de olhos arregalados e pergunto:

Quem é esse ser de meia idade abobado que acorda? Sem nome e sem história? Sem memória e feliz com o que vê? Com o que sente?

Bem! A misteriosa mulher ajudou-me a levantar. Olhou-me nos olhos e como a um encantamento, me disse:

__ Eu sabia que um dia a gente iria se encontrar de novo! Que bom que você veio!

[...]

Tenho a sensação de que uma curva do tempo me engoliu e me devolveu para esta era. Me trouxe de volta.

__ E Ela? A mulher do perfume?

Perguntou-me ele:

Respondo de pronto:

Ela é a melhor parte de mim. A minha companheira! Minha alma gêmea. A mulher que acorda ao meu lado, dia após dia! Que me acalma e me toca com a serenidade que somente no céu eu poderia encontrar, eu poderia sentir! Ela me completa, mas... mas tem algo nesta história que eu ainda preciso entender.                   

 

O personagem vivencia uma experiência na qual o tempo se entreabre e nos deixa ver o outro lado. São instantes de conjunção entre o sujeito e o objeto, do eu sou e você é, do agora e do sempre, do mais além e do aqui. A imperiosa imagem que está presente no conto de Montejano é a do amor, na qual a sensação se une ao sentimento e ambas ao espírito. O personagem experimenta um alto nível de estranhamento, uma epifania: está fora de si, lançado diante da pessoa amada -- experiência da volta à origem, a esse lugar que não está no espaço e que é a nossa pátria original. A pessoa amada é a um só tempo a terra incógnita e a casa natal; a desconhecida e a reconhecida.

Ao citar um fragmento de Hegel sobre o amor, Octavio Paz ressalta que o grande e trágico paradoxo do sentimento amoroso consiste em que os amantes não podem se separar a não ser na medida que são mortais ou quando refletem sobre a possibilidade de morrer.

No conto, a morte é a força da gravidade do amor. Ao cair no buraco, o personagem encena o impulso amoroso que nos arranca da terra e do aqui; a consciência da morte nos faz compreender que somos mortais, feitos de terra e a ela temos de voltar. A unidade compacta se rompe em dois e o tempo reaparece – é um grande buraco que nos engole. A dupla face da sexualidade reaparece no amor: o sentimento intenso da vida é indistinguível do sentimento não menos poderoso da extinção do apetite vital; a subida é queda, e a extrema tensão, distensão. Dessa forma, a fusão total implica a aceitação da morte.

Ao seu atento interlocutor, o narrador solitário ensina que amor é vida plena, unida a si própria, o contrário da separação. Ao sentir o perfume e as mãos da amada em estado epifânico, ele reencontra o abraço carnal. A união do casal se faz sentimento e este, por sua vez, se transforma em consciência: o amor é o descobrimento da unidade da vida. 

O narrador, o mar e a areia nos permitem a reflexão poética de que somos tempo, nada é durável.  O amor não vence a morte, mas a integra na vida. A morte da pessoa amada confirma nossa condenação: viver é um contínuo separar-se, mas, paradoxalmente, na morte cessam o tempo e a separação: regressamos à indistinção do princípio, a esse estado da cópula carnal.  O amor é o regresso à morte, ao lugar de reunião. 

Os poemas e conto aqui trabalhados, neste breve texto, estão em fina sintonia com importantes passagens do livro de Octavio Paz, principalmente em consonância com a magnífica imagem do fogo, elaborada por ele: a chama é a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal. O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amor. Erotismo e amor: a dupla chama da vida.         

       

Referências bibliográficas:

CORTEZÃO, Marta. Meu silêncio lambe a tua orelha. Curitiba: Eu –i, 2023.

FERRARI, Flavia. É tudo ficção. Curitiba: Eu-i, 2023.

MONTEJANO. Margarida. Fio de Prata. São Paulo: Scenarium, 2022.

PAZ, Octavio. A dupla chama – amor e erotismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.   

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Para adquirir os livros, entre em contanto diretamente com as autoras Flavia Ferrari, Marta Cortezão e Margarida Mntejano.

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Isa Corgosinho é de Brasília/DF, professora universitária aposentada, poeta. Participou de várias Coletâneas, entre elas: Coletânea enluaradas (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Ciranda de Deusas I e II (Enluaradas Selo Editorial, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal 2021); Livro Memórias da pele, Venas Abiertas – III – Mulherio das Letras, 2021.

ELES LEEM ELAS: MEU SILÊNCIO LAMBE TUA ORELHA, DE MARTA CORTEZÃO

Venda diretamente com a autora
ELES LEEM ELAS: MEU SILÊNCIO LAMBE TUA ORELHA, DE MARTA CORTEZÃO


 POR RONALDO RHUSSO

Meu silêncio lambe a tua orelha” da Marta Cortezão - Editora TAUP (Toma Aí Um Poema – 2023)

Trombei, por assim dizer, com a Marta Cortezão numa das esquinas da rede de gente virtual nem um pouco virtual! Convite da Eliana Castela para ver, em outubro de 2020, ápice pandêmico, a Live VIII Tertúlia Virtual sob o Tema: “A Poética que roça os sentidos” no Canal Banzeiro Conexões do iutubi... Vi o “card” de chamada, procurei textos das outras convidadas para compartilhar na hora e vi a Marta apresentando geral, um tanto desacostumada com as geringonças internéticas, porém, sempre com esse sorriso de Sol, fazendo um trabalho lindo de divulgação de novas poetas e escritoras...  Conferi os vídeos anteriores e continuei acompanhando os demais, enquanto ela se transmutava em “Enluarada”, “Bruxa”, “Deusa” (levando geral com ela, grande parte, gente que tinha seus escritos engavetados e desacreditados) ... Aí fui lendo, também, o versejar vicejante da Marta...

E o atual livro? Ah! Sim. “Meu silêncio lambe a tua orelha” (gostosinho falar isso, não é? Quem não fica logo muito a fim de ler este livro?) derrama sobre nós leitores um balde estelar de poemas vivos... Saca, vivo? Tipo vivo assim:

estas cicatrizes que levo

agarradas na pele

falam muito mais de mim

que as palavras fugadas

de meu distraído silêncio

                          (intemporalidades)

 

meu corpo desértico

feito de solidão e degredo

pelo ímpeto da dor

do não pertencimento

reage com solícitos ais

                       (mar de diásporas)

Evento Campinas, das 14h às 16h30, Sáb/27/JUL

Há, notavelmente, um espetáculo de poemas Concretos e um desnudar de alma em cada um deles, sendo que a Marta já havia demonstrado esse poder ou virilidade no escrever sobre o que ainda é tabu para quem se assusta com a realidade que todo mundo sente ou todo mundo quer sentir e se libertar para tanto! O uso das Figuras de Retórica é aplicado de uma forma bastante rica e o gozo do leitor se amplifica num acompanhar de momentos poéticos que nos fazem reler e reler porque a sonoridade é boa e a identificação com o que lemos nos embala a continuar a beber as palavras:

o tempo escorre arenoso

pela ampulheta

vai inevitável

estirando granulado fio

que tece a sanhuda

pressa das horas

               (liquidez)

Eu preciso comentar essa combinação bonita entre a Marta Cortesão e a Toma Aí Um Poema, inicialmente um podcast idealizado pela Jéssica Iancoski que postou a primeira declamação em novembro de 2020 no Canal com o mesmo nome. Ou seja, “Meu Silêncio Lambe a Tua Orelha” e a TAUP é mais que uma parceria com poemas fortíssimos e um trampo de editoração bonito pra caramba! Design gráfico bastante contemporâneo, tão vivo quanto os sessenta e seis poemas. É um livro que tinha que acontecer! É um encontro de dois belos e caudalosos rios escorrendo e se juntando, em delta, ao mar da Poesia para deliciosamente encher o mundo dessa fertilidade criativa...

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Marta Cortezão, de Tefé/AM, é escritora e poeta. Possui publicações em antologias nacionais e internacionais. Livros de poesia publicados: “Banzeiro manso” (Porto de Lenha Editora, 2017), “Amazonidades; gesta das águas” (Penalux, 2021), Zine “Aljavas para Cupido” (2022) e “meu silêncio lambe tua orelha” (Toma Aí Um Poema Editora, 2023). 


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Ronaldo Rhusso
: autor anual de “Meditações para o Pôr do Sol” da Casa Publicadora Brasileira pela União Sudeste dos IASD, do Compêndio poético “2016, o Dia, o Tema e o Poema” (produção independente) e de “Atos de Jesus” pelo Clube de Autores (2022), além de cordéis em parceria com membros da Academia de Cordel do Vale da Paraíba. Escreve, principalmente, no site “Descanso das Letras” e em seu blogue particular “A Sós Com a Poesia”.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO | 18, POR CAROLLINA BARBOSA

 








LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|18

MULHERES FAZENDO HISTÓRIA

Por: Carollina Barbosa


Há um ano atrás participei de uma das várias fotos tiradas em várias partes do Brasil para o registro histórico de escritoras brasileiras. Hoje, tendo em mãos o livro com nossas fotos contando um pouco  sobre esse movimento, me vem à memória como foi viver esse dia tão simples, porém tão mágico.

A foto das escritoras cariocas estava marcada para 12 de junho, domingo de dia dos namorados. Eu soube do evento poucos dias antes e fiquei tão animada que já tinha até uma playlist pronta para ouvir no dia enquanto me arrumava. Tentei chamar algumas escritoras que eu conhecia, mas nenhuma poderia ou queria ir por conta da data. Fui sozinha e fui feliz.

Cheguei cedo na escadaria do Theatro Municipal e comecei a conversar com outras escritoras que já estavam lá, aguardado o horário da foto. Conversa vai, conversa vem, o grupinho foi aumentando e,  coincidentemente ou não, notamos que éramos todas solteiras ou divorciadas. Apenas uma de nós estava em um relacionamento, porém teve uma manhã conturbada porque insistiu com o namorado que era "foto primeiro, dia dos namorados depois". Ela nos contou um pouco do acontecimento e concluiu: "Depois dessa foto, nem sei se ainda tenho namorado". A história era triste, mas ela estava tão feliz de estar ali que não parecia se incomodar com o desenrolar do resto do seu dia. Mais tarde, não pude deixar de observar a quantidade mínima de casais que estavam ali, apoiando sua parceira naquele momento histórico.

Para muitos pode parecer irrelevante, "só mais uma foto", "só mais um livro", mas esse momento fez parte de uma pesquisa para o levantamento da quantidade de escritoras brasileiras nesse momento da nossa história. Todas as mulheres participantes do evento agora fazem parte do registro histórico de escritoras brasileiras e todas nós, mesmo as que não estão na foto, somos parte da construção dessa história por insistirmos e resistirmos com nossos escritos.

Quando chegou a hora da foto e vi que praticamente fechamos a escadaria do Theatro, senti uma emoção indescritível. Eu não conhecia nenhuma daquelas mulheres e, ainda assim, me senti parte daquele grupo. Já houve grupos em que participei anos sem de fato me sentir parte e ali, cercada de mulheres desconhecidas, me senti rapidamente integrada. A sessão de fotos durou uns 20 minutos e assim que fomos liberadas fui direto para casa porque o tempo estava com cara de que ia cair aquela chuva.

Agora folheio o meu exemplar de Um grande dia para as escritoras — Autoras do Brasil mostram a cara (que você pode comprar aqui) relembrando esse dia (que tem várias fotos aqui) marcante não só para minha memória, mas para a história.



MEMÓRIAS DO SÃO JOÃO DE OUTRORA, POR MARIA DO CARMO SILVA

 

Imagem Pinterest


VIVÊNCIAS POÉTICAS|03 

MEMÓRIAS DE SÃO JOÃO DE OUTRORA

POR MARIA DO CARMO SILVA

O Nordeste do Brasil é referência na celebração dos festejos juninos. Embora tenha sido trazida pelos portugueses, a tradicional festa de São João é uma das maiores expressões da cultura popular brasileira, sendo comemorada nas comunidades rurais e urbanas com grande intensidade, congregando pessoas de todas as classes sociais. Entretanto, a forma desta celebração tem sofrido significativas mudanças, adaptando-se aos padrões culturais da modernidade.

Imagem Pinterest

As minhas memórias da infância trazem à tona inesquecíveis lembranças de um período do ano marcado por cores, sabores, música, dança e alegria, o tão esperado mês de junho! O frio e a chuva típicos da época, anunciavam os festejos da tradicional e tão aguardada festa de SÃO JOÃO. E quando o mês de junho se aproximava, o povo comentava: “São João tá na porta!” Era grande a expectativa para a festa de São João! E o tão esperado 23 de junho, véspera de São João, finalmente chegava! A fogueira era o grande símbolo deste grande dia, sendo religiosamente armada em frente às casas, tendo ao seu lado um ramo erguido, um galho de árvore, ornamentado com bandeirolas, laranjas e espigas de milho. As ruas e as casas eram enfeitadas com bandeirolas de papel de seda. As meninas usavam vestidos de chita, cabelos penteados com duas tranças com laços de fita e nas maçãs do rosto pontinhos feitos com lápis preto. Os meninos usavam camisa de chita e chapéu de palha. Tudo e todos caracterizados aguardando o entardecer (boca da noite) para acender a fogueira, em suas brasas assar o milho e visitar as casas dos vizinhos onde sempre eram servidas as comidas e bebidas típicas: canjica, amendoim, milho cozido, laranja, licôr, pipoca. Após assistirem a fogueira queimar, era costume as pessoas saírem de casa em casa, visitando vizinhos, parentes e amigos, onde todos comiam, bebiam e arrastavam o pé ao som da sanfona ou da radiola que tocava o animado forró. E neste ritmo, amanheciam o dia! Reza a lenda que nesta noite não se dormia. No dia seguinte, o dia de São João, a comemoração prosseguia: juntava-se o que sobrava da fogueira e nela colocava-se fogo novamente. Ao seu redor, as famílias e vizinhos se reuniam para assar o milho e prosear. Era a festa mais linda do ano! O calor da fogueira aquecia o frio, as chamas da fogueira iluminavam as ruas, as bandeirolas tremulavam atraindo os olhares com suas cores vibrantes, as pessoas partilhavam conversas e repartiam com prazer as comidas e bebidas típicas.

Atualmente, os costumes que davam vida ao tradicional São João foram substituídos pelos hábitos da modernidade, restando apenas lembranças e saudades de uma festa genuinamente popular, comemorada com simplicidade, sem ostentação, onde o que prevalecia era a confraternização e a diversão! Na contemporaneidade, a literatura vem resgatar a vivência destes festejos para que sejam conhecidos pela posteridade.

 

FESTA BOA

 

Maio finalizava,

O povo já anunciava:

São João tá na porta!

Á meia noite do último dia de maio:

Fogos anunciavam o tão aguardado mês festivo.

Dava-se início aos preparativos:

Lenha para a fogueira armar,

Bandeirolas para casas e terreiros enfeitar,

Roupa nova para ir forrozear.

Forró pé de serra, era o estilo musical a predominar!

Tinha arrasta-pé aqui e acolá.

O destino do povão era o Arraiá!

Não faltavam o milho, a canjica, o amendoim e o licôr.

Todos forrozeavam: criança, adulto, vovó e vovô!

O braseiro da fogueira assava o milho a todo vapor.

Êta tempo bom, Sô!

Maria do Carmo Silva

Poeta, professora e escritora.

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Maria do Carmo Silva é professora, poeta e escritora. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências" e "Recomendações Poéticas". Tem participação em diversas Antologias Poéticas. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo. Integrante do Coletivo Mulherio das Letras.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

CRÔNICA SOBRE O DIA DOS NAMORADOS... POR ROSANGELA MARQUEZI


SOBRE O AMOR... 

Rosangela Marquezi

Sempre que datas comemorativas se apresentam no calendário estático da parede [porque, definitivamente, não é no dinâmico calendário da vida] pressões se fazem para que os celebremos.

E, soltas as pressões externas, internas também vão sendo criadas e logo se avolumam no peito e na alma. Se é Natal, lá vamos nós comprarmos presentes para amigos e família... Ou seria comprarmos amigos e família com presentes? Se é Dia das Mães ou dos Pais, lá vamos nós mostrarmos nosso amor carregado de culpa por falta de atenção em forma de pantufas e pijamas. Se é Dia dos Namorados... Bom, se é Dia dos Namorados, lá vamos nós, também, comprarmos amor em forma de presente, mais caro, é certo, pois o ser amado e o ser amante andam cada vez mais exigentes, só não sei se verdadeiramente de amor ou de sinais de amor. 

Mas, me pergunto, quem, afinal, instituiu que o amor precisa disso? Lembro Fernando Pessoa, em seu heterônimo Alberto Caeiro, que dizia que agora, que estava a sentir amor, interessava-se pelos perfumes das flores, simples assim, como deveria ser. Canta o poeta que, antes, só sabia que elas existiam e que tinham cheiro. Agora, ele sabia, “[...] com a respiração da parte de trás da cabeça. / Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. / Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.” 

Amor, para mim, é isso: simplicidade, no ver e no ser e no estar e no fazer e no demonstrar. Um ver o que antes só existia em si mesmo. Um ser eu num outro eu, mas mantendo, eu, o meu eu, e o outro o seu eu [Talvez sem vírgulas, mas mantendo cada eu no seu lugar]. Um estar no mundo com um outro, mas respeitando esse outro e esse outro a mim. Um fazer de cada dia uma festa, não de fantasia, mas de verdades. Um demonstrar de sentimentos-atitudes mais do que exagerados presentes muitas vezes sem estar presente.

Há um bom tempo sozinha, só amando o que não exige reciprocidade, percebo à minha volta uma busca angustiante de manutenção desse sentimento. E, nessa busca, vejo perdas de rumo, paradas no tempo, chuvas ácidas de desejos não realizados a encher caldeirões borbulhantes. Eu, que hoje me creio mais livre disso, só observo, mas confesso que, muitas vezes, em outros tempos, me vi também presa em um algum desses caldeirões. Já amei. Se acreditei no amor, não sei. Não sou crente, mas também não descrente, porque, como diz o ditado castelhano: "No creo en brujas, pero que las hay, las hay".

[É fechar os olhos que me vejo, às vezes, parada na estação esperando a correspondência do amor. Mas, ao ver o vagão vazio, o maquinista me avisa que ele saltou um ponto antes. Talvez, na próxima semana.]

Enfim, que cada amor tem um jeito. Enfim, que quem quer amar, ama, não pede opinião. Enfim, que amar é bom. Enfim, que reciprocidade nunca é na mesma medida. Enfim, que o comércio no Dia dos Namorados continue vendendo rosas, perfumes, dixes e que também haja muito diz-que-me-diz sobre o amor. Enfim, que essa reflexão já tomou outros caminhos e o que era para ser crítica virou análise para divã, então, viva o amor de forma que ele ainda lhe permita arrepios, de prazer ou de alegria, pois este talvez seja o sentimento que verdadeiramente buscamos...

Abraço. Seja feliz.

Rosangela Marquezi

Professora de formação e atuação que, às vezes, acredita, por mais que não o digam as palavras e as ações, no amor...


DICAS DA RÔ

1. Ouça Naquela estação, música de Adriana Calcanhoto, e veja – e está tudo bem – que amores se vão...

                                “E agora, tudo bem
                                 Você partiu
                                 Para ver outras paisagens”

2. Deguste os poemas de meu silêncio lambe tua orelha, da poeta amazonense Marta Cortezão. Em versos que dialogam com outros tantos versos de outras tantas mulheres, Marta nos permite adentrar no âmago de palavras e sentimentos que há muito nos podem parecer perdidos, mas que estão aí... A lamber nossas orelhas... Entre essas palavras/sentimentos, o amor também aparece. Vivo, latente e palpável. Está presente, por exemplo, nos versos de hermetismos, em que dialoga com a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís.

"O fenômeno mais herético é o amor. Ele não é bem recebido nem tolerado porque é uma força sem desistência e que não se revoga a si mesma." (Agustina Bessa-Luís)

                            hermetismos

o amor disse-me mistérios
regozijou-me primaveras
e tudo é doce enigma em mim
 
o dia levantou crepúsculo
em meu coração semente
era chuva começo flores
porque o amor passarinho
segredava hermetismos
cantando águas distantes
 
ele ainda chove decidido
nas noites estrelas lua grande
quando o amor travessia longe
nunca não e sempre sim

3. Leia O amor nos tempos do Cólera, do escritor colombiano, ganhador do Nobel de Literatura de 1982, Gabriel García Márquez, o El Gabo, e entenda que há amores dentro dos quais se vivem outros amores e que há amores que nunca se esquecem...

“Florentino Ariza sabia disto e nunca fez nada para desmenti-lo. [...] Tal como as outras mulheres incontáveis que amou, e mesmo as que lhe agradavam e o achavam agradável sem amá-lo, aceitou-o como aquilo que era na realidade: um homem de passagem.”
                          
“Florentino Ariza, por outro lado, não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem aplicação depois de uns amores longos e contrariados, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não tivera que manter a conta do esquecimento fazendo uma risca diária nas paredes de um calabouço, porque não se havia passado um dia sem que acontecesse alguma coisa que o fizesse lembrar-se dela.”
                     
"— E até quando acredita o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho? — perguntou. 
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.  
— Toda a vida — disse.”


4. Leia o conto Pomba Enamorada ou uma história de amor, da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles. Na história, a protagonista se enamora por Antenor, com quem dançou apenas uma vez, mas se apaixonou ao ponto de, mesmo sendo rechaçada por ele, continuar a amá-lo vida afora. E tanto que, mesmo casada, com outro, ela continua a amar essa imagem de homem que projetou sobre Antenor... No final, já velha, acreditando em uma cartomante, vai novamente ao encontro dele... A nós, leitores, fica a possibilidade de criarmos um desfecho: haverá um reencontro ou uma ruptura definitiva? Enfim... Leia e perceba como ficar amarrada a uma ideia de amor é frustrante.

“Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar ele pra sempre.”

“Quando engravidou, mandou-lhe um postal com uma vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz numa casa modesta mas limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado Perereca.”

“[...] disse que tudo isso era passado, que já estava ficando velha demais pra pensar nessas bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre, vestiu o vestido azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não podia ser melhor) e foi.”


5. Leia poemas do livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, do poeta chileno Pablo Neruda, ganhador do Nobel de Literatura de 1971. É o segundo livro do autor e, mesmo tendo sido publicado pela primeira vez em 1924, é o livro de poesia mais vendido em língua espanhola. O poema n.º 20 é um dos mais belos/tristes sobre amor que se perde.

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite. 
 
Escrever, por exemplo: a noite está estrelada,
E cintilam azuis, os astros, desde longe. 
 
[...] 
 
Já não a quero, é certo, mas quanto a quis.
Minha voz buscava o vento para tocar seu ouvido. 
 
De outro. Será de outro. Como antes de meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos. 
 
[...] 
 
Porque, em noites como esta, a tive entre meus braços,
minha alma não se contenta em havê-la perdido. 
 
Ainda que esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo."

6. Leia A insustentável leveza do ser, do escritor tcheco Milan Kundera. Uma história muito marcante sobre o que se busca verdadeiramente em relacionamentos. Tomas, um dos protagonistas, busca alegria, e quando não encontra parte em busca dela em outros corpos/amores. Mas essa busca também lhe causa tristezas...

"Mas seria possível ainda falar de alegria? Assim que ele saía para encontrar uma de suas amantes, perdia o interesse e jurava a si próprio que seria a última vez."

7. Aprecie a pintura Os amantes (The Lovers, 1928), do pintor surrealista René Magritte (1898-1967). Pintura perturbadora que nos traz a ideia de um amor proibido, um amor que nos cega, representado pelos rostos que se unem em um beijo, mas que estão cobertos por véus brancos... Caso esteja passeando em Nova Iorque, aproveite e visite o Museu de Arte Moderna (MoMA) e veja in loco a pintura, que está lá exposta.

Fonte: https://www.moma.org/collection/works/79933?artist_id=3692&page=1&sov_referrer=artist

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Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que, às vezes, acredita, por mais que não o digam as palavras e as ações, no amor... Nas horas vagas poucas da vida, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. É membro da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR.


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