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quarta-feira, 1 de junho de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA - PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|05


PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 

Isa Corgosinho


            Ao final da leitura do livro de Vania Clares, veio-me a vontade de sistematizar questões que fui anotando durante a leitura. Assim, deixo aqui registrados os meus devaneios interpretativos de suas Permanências Outonais.   

A prosa poética de Clares deixa entrever em suas fontes a ambivalência das personagens femininas de Clarice Lipector.  Com essa chave genealógica, ousamos mergulhar no processo de estranhamento intencionalmente construído numa temporalidade, cuja noite tem a mesma duração do dia. O resultado é o mergulho conjunto no equinócio intensamente vivenciado pela constante alteração do estado de consciência da personagem outonal. A gangorra do tempo malbaratado situa esse romance entre aqueles dinâmicos e interativos, também adepto à viagem pelo fluxo de consciência. Após um esboço quase perfeito para um desfecho trágico, seguem-se cenários que entrecruzam vida adulta, infância, juventude e proximidade da velhice.




Permanência da estação outonal pode parecer, mas não é um paradoxo: a personagem narradora imprime seus rastros no entre lugar do verão e o inverno. A estação outonal é aquela da transição, sacudida por fortes ventanias existenciais que marcam os capítulos Alternativas para um adeus e Passos de um esboço quase perfeito.  Tomada por uma consciência profunda da inexistência de sentido em tudo que pulsa, a mulher despe-se para a queda ou voo final. Anestesiada pela dor construída no vazio congelante, debruça-se no parapeito e pinta seu último quadro outonal, entretanto, seu corpo recebe o sopro da possibilidade e se recolhe na dualidade e desordem, viver é quase uma ordem, mesmo no limbo. As folhas que rolam ao vento, as cores delineadas, um tênue fio, o vento frio, as geadas alternam-se com a estação das frutas, dos tapetes de folhas, que caem e se renovam.  Essa ausência de sentido da existência é confrontada por uma marcada oposição entre leveza x peso. O exercício de autodeterminação é realizado cotidianamente pela personagem em oposição ao irremediável, inelutável peso de viver; a mulher confronta o acaso, a imprevisibilidade dos acontecimentos dramáticos que cercam a sua existência pintando os quadros reflexivos da leveza em matizes da travessia.

Italo Calvino, no livro Seis propostas para o próximo milênio, lançado no Brasil em 1990, nos apresenta alguns valores literários que deveriam ser preservados como lições imprescindíveis, no curso do próximo milênio. As conferências foram escritas para serem apresentadas nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures na Universidade de Harvard, em Cambridge, mas infelizmente Calvino nos deixou no ano de 1985. As palavras de Calvino, no entanto, continuam reverberando eloquentes:

Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio.  (CALVINO, 1990, p. 11)

Entre essas lições, que falam para a posteridade, A Leveza parece-me aquela inerente à prosa poética de Clares. Vários aspectos desse romance nos leva ao encontro da Leveza, tal qual a entende o escritor italiano. A própria escolha da estação outonal está repleta dos sentidos da leveza em oposição ao pesadume dos dramas vivenciados pela narradora. Mesmo nos momentos em que o peso da existência parece enredar o destino da personagem, como no capítulo Alternativas para um adeus, um esboço perfeito para o suicídio, o leitor se depara com um quadro pintado pela imaginação da personagem, em que as imagens da leveza sustentam a narrativa:

Fico a imaginar a tela que pintaria numa noite como esta, em que as folhas rolam ao vento, e em que me domina o impasse da decisão. Hoje as cores no desenho estariam bem delineadas e definidas, divididas por um tênue fio, unindo os dois lados. (CLARES, 2010, p. 19)  

A leveza aqui comparece nas imagens das folhas que rolam ao vento, pela divisão de tênue fio, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio, o que ficou no filtro das permanências sutis. Essas imagens se contrapõem à mágoa e ao amargo da boca. A visão sincrônica de imagens sutis atua como um filtro do fel que pesa no paladar, mas não é o fel da fealdade.

A imagem do fio nos remete ao ofício das Moiras de fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida; as três irmãs determinam tanto o destino dos deuses quanto o dos homens. A narradora encena o ofício de Átropos, a que corta o fio, mas é detida por Cloto que segura o fuso e tece o fio da vida, ora é Laquesis, que puxa e enrola o fio tecido, e é a figura da leveza, impressa em sua narrativa, que mantém Átropos distante, mas não ausente. Há uma inversão e reversão do ciclo vital: tudo que vive morre, tudo que morre vive. A personagem é o próprio fio nas mãos do destino, mas depois assenhora-se dele.    

Estou entre romper o tênue fio e nunca mais conseguir me reaver. Estou entre romper em duas eternamente. E não seria nada verdadeiro. Ser uma das partes ou as duas separadamente. Porque sou o próprio fio. (CLARES, 2010, p. 20)

Hoje eu sou o adubo do meu fio. O que escolherá entre sucumbir na lama ou fundir-se à semente, reiniciando o ciclo constante. (CLARES, 2010, p. 24)

            É no seio da própria literatura, com epígrafes da escritura sagrada e versos de autoria da própria Clares, que a narradora personagem lança possibilidades dialógicas para a complexidade da vida da linguagem: sobretudo ao recorrer à ironia com as citações bíblicas e ao retirar peso à estrutura da narrativa, investindo na precisão das imagens poéticas, evitando tudo que é vago ou aleatório.

A sabedoria ao buscar o pincel mais fino, a tela mais suave e clara.  A resistência à sufocação das tintas. A moldura mais perfeita.  A adequação ao expor a consistência de um fio retocado. Pelas sábias mãos da vida. (CLARES, 2010, p. 24)

A narrativa é concisa e confronta as dualidades com as ambivalências do entre lugar, a travessia. A personagem narradora oferece ao leitor um processo psicológico no qual interferem elementos sutis, situados em momentos marcantes em sua vida: os traumas da infância, os primeiros desejos, o amor, os sonhos e os acontecimentos dramáticos, a vontade de viver e o desejo da morte, a intensidade e a resiliência.

Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios.

Sirenes de fábricas, embargo de crepúsculos.

Querência de amanhecer

e distante sensação de sonho e brisa. (CLARES, 2010, p. 65)

 

Nas reflexões existencialistas, a personagem nos remete aos diferentes recortes históricos, marcados por experiências que acompanham a sua formação e as transformações culturais e políticas que marcaram as gerações do final da década de 60 até o final da década 80, aproximadamente. As citações de fragmentos musicais, nomes de bandas, astros do cinema nos remetem aos anos de intensas lutas pelas liberdades coletivas e individuais. Como um imperativo categórico, a narradora personagem constrói como medula de sua narrativa o desdobramento do evento amoroso, que marcará como uma nódoa indelével o inacabamento da travessia. 

O feedback narrativo figurativiza, apresenta citações e alusões sobre as utopias coletivas que estão subjacentes a igualmente utópica história de amor. Na dialética das liberdades amorosas, a mulher das permanências outonais deseja o mais profundo e desafiador que é o viver juntinhos como nossos pais:      

[...] e vamos sair pela Augusta de madrugada comer churrasco no Eduardo´s às cinco da manhã e vamos ver o dia nascer com as luzes rosa-azuis enquanto as pessoas correm para o trabalho porque algumas pessoas não são artistas e não se dão o direito de ver o dia nascer assim sem dormir como nós que somos poetas seresteiros e poderemos ser agora tão namorados e apaixonados que você sentirá que não poderá deixar de me ensinar a ser mulher a sua mulher para a vida inteira porque nós podemos ficar velhinhos.juntos numa casa com uma varanda cheia de plantas com um cachorro vira-lata dormindo aos nossos pés [...].  (CLARES, 2010, pp.43-44)

Do grande caldeirão das utopias, ao qual São Paulo forneceu e temperou com os seus melhores ingredientes, restou também o caldo amargo das orgias libertárias, principalmente no tocante ao uso das drogas. O romance refrata, sobretudo, a distopia marcada pelo vírus da AIDS: da década de 80 até 2012, as fontes de pesquisa apontam 656.701 casos de AIDS, atingindo principalmente uma geração que se dispôs de corpo e armas a mudar o mundo. O vírus ataca justamente os centros do gozo do amor e do prazer. 

porque nós aproveitaremos as noites filosofando muito relembrando a Augusta e a guitarra de Jimmy Hendrix junto com a voz rouca da Janis Joplin e quem sabe faz a hora não espera acontecer junto com nossos porres de amor e nossos abraços de verdade quando e porque não precisávamos nem falar nada e pela vida inteira esse abraço sempre dirá tudo que queria mesmo dizer porque o amor é tão inadiável e urgente em meio às brigas que não serão nossas mas consequências do mal de uma geração inteira que ficou tão doente e inconsciente da sua própria doença maldita disfarçada em sonhos que vêm em saquinhos branquinhos comprimidos brancos destilados envelopinhos marrons sequinhos cheirosos tal esterco enfumaçando entorpecendo o sonho que não acabará nunca assim como um sonho nas acabará sim a condição da conveniência diante da realidade das limitações fazendo assim tão encantado o sonho das varandas entupidas de samambaias e fores de maracujá de balanço com almofadas coloridas e os cabelos brancos voando ao vento num por de sol alaranjado...)   (CLARES, 2010, pp. 44-45)     

Jean Baudrillard[1] interpreta o final desse período como uma pós-orgia. A orgia está inscrita na modernidade: o da liberação em todos os domínios – liberação política, sexual, da mulher, da arte, das forças produtivas e de destruição, das pulsações do inconsciente etc. Assim como em Baudrillard, o romance de Clares figurativiza o percurso da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. A pergunta que nos espreita ao final é: o que fazer após a orgia?

Não sei quando aconteceu, nem como, mas aconteceu. [...] Fiz uma loucura. Lá em casa, sabe, peguei uma seringa do lixo e a usei. Tinha muita gente lá. Depois veio aquela febre alta, os tremores. Pode ter sido nessa loucura. Ou naquelas compulsões de vários dias em que não tinha noção nenhuma do que fazia. Em que eu acordava dormindo ao lado de gente que eu não conhecia, ou às vezes, no chão de qualquer rua, tendo de perguntar aos outros onde estava, ou todo machucado com as roupas sujas, assaltado, ou dentro do carro batido em um muro qualquer. Pode ter sido qualquer um desses dias. Mas o fato é esse. Estou com o vírus, sou um portador. (CLARES, 2010, p. 55).

O filósofo francês busca respostas ao constatar a contaminação respectiva de todos as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão dos gêneros. O sexo circula em toda parte, menos na sexualidade. O político já não está mais no político, mas infecta todos os domínios: a economia, a ciência, a arte, o esporte. Baudrillard enfatiza: o esporte já não está no esporte _ está nos negócios, no sexo, na política, no estilo geral da performance.

Aqui parece que encontramos rastros do percurso do corpo do homem amado, contaminado pelo vírus: a AIDS corresponde menos a um excesso de sexo e gozo do que uma descompensação sexual por infiltração geral em todos os domínios da vida. No entendimento de Baudrillard, é em todo o sexual que a imunidade se perde, que se perde a diferença sexual e, portanto, a própria sexualidade. É na difração do princípio da realidade sexual, no nível fractal, micrológico e desumano, que se instala a confusão elementar da epidemia, conclui o filósofo.




Como conseguir falar de nossa época, de acontecimentos tão recentes, representando-os com a ideia de leveza? Clares encena a busca da leveza como um objeto inalcançável, como uma busca sem fim. Assim como Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, em Permanência Outonais é possível constatar dramaticamente o inelutável peso do viver: também no romance da escritora paulista, o peso de viver está em toda forma de opressão; na obscura rede de constrições públicas e privadas que acaba por aprisionar cada ser em suas tramas cada vez mais cerradas.  Os episódios entrecruzados dos períodos da descoberta do amor adolescente, do amor na juventude; dos projetos de profissão, da criação dos filhos, do sonho de envelhecer juntos, ou seja, todo um conjunto de coisas que apreciamos e escolhemos na vida por tudo que representa de beleza e leveza, resulta, revela-se bem cedo de um peso insustentável. 

A superação acontece gradualmente pela vivacidade e inteligência, a personagem descobre o incessante ciclo da vida nas estações e isso a impede à queda final. A mudança do ponto de observação da vida pela ótica da poesia, muda sua imagem do mundo, recriando-o pela observação indireta da palavra poética. É na relação amorosa com as metáforas que o amor profundo pelo amado atinge o estado de leveza.

Sim, é só um passo para o universo, deixarei que partas, sempre foi teu sonho: uma nave de portas abertas, do tamanho da praia iluminada de luar. Vai, minha vida, que está terra é pequena demais para tua ansiedade, é densa demais para tuas asas, é frouxa demais para o teu grito, é abafada demais para sua liberdade. (CLARES, 2010, p. 65)

O leitor não encontrará nesse romance nenhuma forma de julgamento, condenação, mas atos de coragem na sustentação dos caminhos e descaminhos da relação amorosa, também ausente está o discurso reivindicatório de vítima de relações abusivas. Há uma espécie de renascimento na morte do amado. É o que nos declara uma voz intrusa, que substitui a narração em primeira pessoa. Ocorre uma transferência mais forte da pulsão de vida, herdada do amado: o gosto pela vida, a sua alegria ostensiva, escancarada, indiscriminada, inconsequente, que se derramava em noites, olhos e gargalhadas. A personagem abraça seu processo de autodeterminação, extrai coragem da potência lírica, do amor materno, da aceitação da vida como permanências outonais: as folhas que se renovam ao vento, os dentes ficados na fruta madura e o gozo insustentável da leveza do ser, o ser da poesia. O romance de Vania Clares é um presente edificante para nossas almas femininas, por isso meu coração atento escuta essa voz.  

Na aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da noite. É nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a desordem não é senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no êxtase. (CLARES, 2010, p. 73).  

Hoje, num voo leve, me vejo.

Dispo-me sem medo dos disfarces tolos.

Sinto a centelha divina. Memória de luz.

Reconheço-me. (CLARES, 2010, p. 93)

                

 

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal _ ensaios sobre fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1996.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CLARES, Vania. Permanências Outonais. São Paulo: Sarasvati Editora, 2010.





[1] BAUDRILLARD problematiza a AIDS no contexto dos fenômenos extremos no livro A transparência do mal.

 

terça-feira, 22 de março de 2022

A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES, POR ISA CORGOSINHO

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|04

A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES

Isa Corgosinho

 

O livro que desenha os cursos das amazonidades nos indica, logo no título, uma das possíveis chaves interpretativas: seguir as gestas das águas. Seguindo os fluxos dos braços dos rios que deslizam sob a linguagem poética, adentramos um mundo que em nada refrata o modelo como a ciência moderna percebia o homem e seu ecossistema. O relógio, metáfora da forma mecânica de descrição deste mundo, é incapaz de marcar a complexidade da união sistêmica dos afluentes gestados nos capítulos, unidades unas e potentes, que formam um todo. O eu lírico, que se desdobra nas experiências vivenciadas no e pelos rios, não é um mero observador do curso e concurso das águas. Se vê refratado e refrata para o leitor as relações intricadas da objetividade dos rios e a subjetividade do poeta: os elementos constituintes da realidade desse ecossistema vivem nas alteridades complexas do sistema.

Edgar Morin (2006), ao discorrer sobre o paradigma cartesiano, faz uso do termo "simplificador". Assim, a simplicidade põe ordem no universo, expulsa dele a desordem e a ordem se reduz a uma lei, a um princípio. Segundo o filósofo, este paradigma simplificador vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução). Em resposta a esse paradigma, Morin apresenta o Paradigma da Complexidade, cujo postulado está na relação entre a parte e o todo: não é apenas a parte que está no todo, mas o todo que está igualmente na parte.

O conhecimento adquirido com as vivências nos rios, que no livro de Cortezão é o todo, volta-se sobre a parte população ribeirinha, formando um ecossistema múltiplo da floresta e região. As amazonidades nos convidam a uma visão das dimensões holísticas da região pelos rios Negro e Solimões que atravessam as vidas dos ribeirinhos do norte do país.  Os perfis humanos, herdeiros dos povos originários, são seres-em-relação e o EU lírico se define sempre diante de um Tu, esse TU significativo e caudaloso, que é o rio.   

Para girar a chave e abrir a compreensão que nos permite uma melhor interpretação do livro de Cortezão, a afirmação de Luhmann (1987) nos é muito bem-vinda. Para ele, o desenvolvimento do pensamento sistêmico percorreu três distintas fases históricas: na primeira, os sistemas eram arquitetados como totalidades fechadas; na segunda,  aconteceu uma mudança radical em comparação à primeira, e os estudiosos passaram a conceber os sistemas como abertos, em outras palavras como sistemas que realizam trocas com o seu meio; e terceira, também chamada a fase dos sistemas autorreferenciados ou autopoiéticos, é defendida principalmente por Maturana e Varella (1995).       

A fase sistêmica que pulsa nas trovas das Amazonidades forma sistemas autopoiéticos, que se definem como configurações vivas que se constituem e mantêm a si mesmas. Seus componentes interagem num processo circular, produzindo mais componentes necessários para a autopreservação e constituindo-se em uma unidade delimitada que necessariamente é um ser vivo. Esse sistema nos parece apropriado para compreender a arquitetônica dos cinco rios que gestam em suas águas a pluralidade regional, cultural de sua gente.

O Rio I – DOS ACESUMES são trovas que entoam o vasto campo semântico da dupla chama amor e erotismo, sob a cumplicidade do rio, na ribeira do Negro o lamento do amigo que partiu caboclas águas: é o rio da presença e da ausência, nos incertos destinos heracletianos do rio como um devir a ser do homem.  A água e o fogo são as matérias compostas das temperaturas que sobem do rio e penetram o corpo desejante, exaltam a dupla chama: o rio é fálico, é o amante que penetra suas águas no cio sob a saia:   

Quando caniçava as águas,

e me remava de rios,

sacava-me o vento a saia

           na fértil relva de cios.        

Mas a amante deseja a chama do amor perene, e propõe acordo com o amado, encarnado no rio. Oferece os bens necessários terra, fogo, alimento e um interminável sentimento:

           Dou uma roça de meia

           três latas de querosene

           e o que tiver no paneiro

           por um rio de amor perene.

O Rio II – DAS COMILANÇAS. Aracu, Jaraqui, Pequiá e uma série de alimentos que provêm direta ou indiretamente dos rios: os peixes; a mandioca que produz a farinha; as frutas do café, do açaí, do maracujá são alguns dos ricos e variados alimentos que fazem a festança da cunhatã. A mãe natureza provedora e seu filho rio com sua fauna e flora abastecem, nutrem os povos originários, as famílias ribeirinhas. Os rios são amantes e são também provedores. O modelo sistêmico autopoiético aqui também comparece evidenciando uma de suas características que é produzir por si mesmos o que necessitam para a sua organização, acolhem tudo que é necessário para sua subsistência e autorreprodução.  

O Rio III – DAS LESEIRAS. O afluente das leseiras é rico nas caracterizações do rio e do clima quente e úmido, que invocam os fluidos, temperamentos, as malícias, as espertezas dos caboclos. A leseira não é apenas um modo macunaímico de ser, está presente na língua afiada dos abelhudos, pissiqueiros, tagarelas. Tudo cabe na sintaxe metafórica dos ditos populares: o humor afiado estampa a ambivalência do riso, presente nas relações brejeiras dos ribeirinhos.

 

Vai a canoa à deriva

florindo-se em doce brisa

devaneios na peneira...

Eita, mormaço leseira!

  

Amizade de invejoso

e ferrada de mutuca!

Eu num quero é nem com nojo:

Sorve a alma e o sangue suga!


Considero o Rio III um dos mais instigantes. No meio das leseiras, uma trova entrava o riso: é o curumim que sobe a ladeira com o bucho pinhado de lombriga. O descaso com a saúde dos povos originários e seus descendentes mostra que o projeto de extinção desses povos segue seu curso, jamais interrompido. A morte lenta, gradual por doenças, fome, matanças.  

Outro aspecto que o torna marcante, talvez nuclear entre os rios, é a deliciosa, sensual e brincante reflexão autoconsciente que Cortezão faz sobre o ritmo da trova, como o mais adequado para musicalizar as amazonidades, gestantes das águas. Reafirma uma poesia que ultrapassa a cor local e se coloca em plena segurança sobre o jogo de enunciações que rementem à comunicação metapoética.

Caniçar verso é custoso:

se o verbo-isca do arrebol

não flertar vivo, viçoso,

os versos fogem do anzol.

 

Pesquei um  verso porrudo,

desses de esticar caniço,

separei-o em pés miúdos

só pra fornicar com isso! 

 

Fornicando com o verso,

descobri pelo cansaço

da vulva, que o ritmo ereto

não desabrocha cabaço.

 

Rio IV – DAS CABOQUICES. Em ritmo que beira o melancólico, as trovas insinuam a dança da despedida, a saudade antecipada das relações profundas como o chão inalcançável dos rios. O lugar do eu lírico é o entre: não partiu ainda, mas já não está mais aqui, onde sua identidade compunha as alteridades complementares. A cabocla vai partir e pressente a falta do todo sistêmico do qual era parte viva e pulsante. A poesia é o lugar do resgate, da memória e das reminiscências do vivido, por isso a trova se faz mais vigorosa, estende sua quadra e forma o novo chão a caminhar.

 

Das barrancas do meu Norte,

trago todas as bonanças.

Quando o peito aperta forte,

abro o pote das lembranças.        

 

Tomar o melhor atalho

é poupar braços e forças

para as difíceis remadas.

De mãos dadas, quilha e proa.

 

Construí canoa alada

que não tem quilha nem popa.

Mas para que águas passadas,

se o destino vai à proa?   

 

Ela costurou palavras,

remendos e poesia;

caiu na rede dos sonhos,

no embalo da nostalgia.

 

As caboquices estão misturadas nas lembranças, formando um sentimento ambivalente onde as alegrias da vida, gestadas nas águas, são assaltadas pelo sentimento de perda, distanciamento, despertencimento. O ritmo das trovas faz a cabocla chorar, sentimento de exílio. As águas doces dos rios estão temperadas com o sal da saudade. Os temas mais ligados a “Peneirar horas escuras” impedem que As amazonidades tropecem na visão ufanista, radiosa da cor local, alheia às adversidades, às sombras, às dores que também movem os cursos dos rios.      

 

RIO V – DOS ENCANTADOS. Para expulsar a melancolia, tomemos o curso do Rio V, parte constituinte da cultura da região norte, os ricos e dialógicos personagens lendários não poderiam ficar de fora das gestas das amazonidades. Dialógicos porque se encontram com os mitos e figuras lendárias de outras culturas, inclusive, a clássica. Os mitos e lendas perpassam todas as culturas humanas, por isso são universais, são lendas, histórias fundantes da origem dos tempos, da vida cíclica da natureza e dos homens, da qual fazem parte. As trovas que encerram as gestas dos rios ratificam a relação sistêmica dos encantados com a natureza. Representam os elementos fundamentais e estão em relação simbiótica com o fogo, o ar, a terra e a água.               

                   

Iara, se ouvisse Orfeu

doce e ledo canto teu,

a lira te brindaria;

de ti vassalo seria.

 

Oh, Pandora Macuxi,

por que abriste tal cumbuca?

Agora o meu quiriri

carrega o peso do mundo.

 

As relações entre mitos e personagens lendários da região norte não são absolutamente castas, são versos revestidos de carnalidade sensual, erótica. Há uma declarada antropofagia das figuras do folclore brasileiro em carnavalizada devoração dos mitos clássicos e modernos.

 

Olhos de fogo rasgando

carnosa pele do verso;

boitatá me devorando

entranhas e estro (po)ético.

 

Japu, gatuno do fogo!

Ave, Prometeu Tapuio

fez-se pássaro e seu logro

grande façanha do mundo!     

 

Um sexo seco e mirrado

devorou Macunaíma,

fruto mulher excitado

cuspiu o herói rindo, rindo...

 

Fechando a gestas das águas, resta-nos afirmar aqui um último princípio do pensamento complexo de Morin: a poesia opera a reintrodução do sujeito cognoscente. Ao poetizar o seu chão de águas da infância, da adolescência e da vida adulta, a poeta é resgatada no processo de conhecimento como autora de sua história e, consequentemente, como coautora de construções coletivas junto aos ribeirinhos de sua terra. Reafirma-se: o sujeito e o meio onde ele está inserido tornam-se codependentes, ressaltando que este meio não é entendido como algo predeterminado, mas sempre uma construção em dialógica interação com o sujeito. O caminhar sobre As amazonidades só acontece quando existe a interação entre os passos deslizantes da poeta e as gestas das águas. Privilegiados somos nós, seus leitores, que bebemos nos igarapés, nos braços e fontes dos rios que não cessam de nos maravilhar, ensinar sobre o potencial criativo de suas águas.


Bibliografia

GRZYBOWSKI, Carlos Tadeu. Por uma teoria integradora para a compreensão da realidade. In.: Revista Psicologia em Estudo. Maringá, v. 15, n. 2, p. 373-379, abr./jun. 2010.

LUHMANN, N. Soziale systeme, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1987.

MATURANA, H. & Varela, F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.

MORIN, E. Epistemologia da complexidade. In.: D. E. Schnitman (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artmed, 1996.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Trad. E. Lisboa. Porto Alegre: Meridional/Sulina, 2006.

MORIN, E. Complexidade e a ética da solidariedade. Trad. E. Lisboa. In.:  Ensaios de Complexidade.  Porto Alegre: Meridional Sulina, 2006

 


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE





FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|03

A POÉTICA DO ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: A CASA – O INFINITO PARTICULAR

 POR ISA CORGOSINHO

 

Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do oculto. (...), basta uma observação preliminar: uma gaveta vazia é inimaginável. Pode apenas ser pensada. E, para nós, que temos que descrever o que se imagina antes do que se conhece, o que se sonha antes do que se verifica, todos os armários estão cheios.                                                                    

(BACHELARD, 1994, p. 21)

A epidemia COVID--19 que assombra a humanidade nos cinco cantos do mundo, enlutando os continentes com as cifras desestabilizadoras de milhares de mortes, aumentou, sobremaneira, a responsabilidade das mulheres pelo coletivo familiar. O duro e pesado fardo feminino agravou-se ainda mais pelo desemprego que atinge os mais vulneráveis na já penalizada classe trabalhadora. No mundo todo, mas principalmente no Brasil, o feminicídio atinge índices alarmantes, fomentado pela familícia fascista que desgoverna o país. 

Os movimentos sociais criam meios e modos de organização para confrontar o caos sanitário e o total descaso governamental que impera de norte ao sul do país. As organizações de resistência, que em contexto de normalidade expressavam-se nas manifestações de rua, apropriam-se das mídias virtuais, que ganham força devido às medidas de segurança. O Projeto Enluaradas nasce nesse complexo e desafiador contexto, com posições estéticas vinculadas ao ético, com militância firmada nos movimentos feministas e em outras bandeiras dos movimentos culturais.

Se pensarmos num lugar de fala, ele certamente será traçado em geografia complexa, numa espiral centrípeta de comunicações poéticas; pontilhado, marcado por fragmentos incisivos de um discurso amoroso afirmativo e transgressor.

A arte é o front principal da resistência do coletivo Mulherio das Letras e suas ramificações, como o Projeto Enluaradas: a poesia é a força motriz do processo criativo. A partir de chamadas para publicações nos diversos Grupos do Mulherio, poetas dos diferentes cantos do mundo escancaram suas gavetas e lançam, enviam seus poemas para publicação e divulgação em meios impressos e virtuais. Outras ações são desencadeadas com o propósito de fortalecer os canais de criação, escuta, circulação e trocas entre as poetas participantes.      

Embora recente, o Projeto Enluaradas marca posição de protagonista, vanguarda no crescente fluxo da literatura feminina contemporânea, e já nos oferece profícuas possiblidades reflexivas sobre suas coletâneas de poesias. Ao nos debruçarmos sobre alguns poemas do projeto, ocorreu-nos a vontade de refletir teoricamente sobre a constituição de algumas imagens reincidentes na poética feminina que merecem um início de conversa. 

Além das marcas ideológicas, a riqueza imagética que transborda dos versos das enluaradas nos movimentou em direção a uma obra que parece se localizar na constelação das filhas de Selene: A poética do espaço, de Gaston Bachelard.  Por que essa obra mobiliza nossa atenção? Primeiro, porque a casa, local por excelência de abrigo, tornou-se, no contexto pandêmico, um complexo sistema espacial: isolamento, lazer, esconderijo, prisão, escritório, escola, ateliê, retiro, oficina e, sobretudo, território propício aos vários tipos de violência e neurose. Segundo, porque a casa voltou a ser habitada vinte e quatro horas pela família que ali estava quando começou a pandemia. O isolamento, por mais tristonho que seja, pode nos dar um ganho inesperado, e as dádivas dele são inúmeras: aguça a intuição, erradica as lamentações, elimina as fraquezas com os golpes, proporciona um insight penetrante, assegura o poder incisivo da observação e de visão de perspectiva jamais alcançadas nas pessoas que o negam e o rejeitam. Finalmente, porque foi nesse espaço de isolamento, tirando proveito de suas dádivas, que parte significativa de mulheres se debruçou sobre a escrita criativa, buscando na linguagem literária o refazimento do caos em cosmos.      

Na Poética do espaço, Bachelard apresenta a casa como um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Constrói uma ideia de casa que diverge da noção de um objeto, apresenta uma reflexão sobre as relações simbólicas pelos trilhos da relação realidade e imaginação, na concepção de um ideário fenomenológico. Para um fenomenólogo, as nuanças de nosso apego a um lugar predileto não são colorações superficiais suplementares. É necessário dizer como habitamos o nosso espaço vital em conformidade com as dialéticas da vida, como nos enraizamos, cotidianamente, “num canto do mundo”.   

 

Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.  

(BACHELARD, 1993, p. 24)

 

Destacam-se, nesses trilhos, as relações oníricas que simbolicamente transcendem os espaços físico e material, normalmente pensados em seus predicados utilitários, e nos leva a interpretar a ideia de que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (1993, p. 25).  Interessa-nos muito a fala de Bachelard quando afirma que na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, por meio do pensamento e do sonho.

É nessa forma expandida da simbologia da casa que nos orientamos para interpretar os sentidos enunciativos da poesia: abrigos, aposentos, refúgio – elementos de unificação e integração do homem frente ao mundo de dispersão dos sonhos, das lembranças e do pensamento; avassalados por inundações de imagens exteriores e pelo medo da morte, enlutados por perdas de entes queridos.   

Bachelard esclarece que não é apenas em sua positividade que a casa é verdadeiramente vivida, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado; a antiga locução: “Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos” tem mil variantes (BACHELARD, 1994, p. 25). E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória. A casa, como o fogo, a água, nos permitirá evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar, ambas trabalham para aprofundamento recíproco e constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem.  De tal modo, a casa não vive somente no dia a dia, mas no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Por outro lado, a casa possui espaços que representam o refúgio das emoções - sótão, porão, corredores – que são desvendados pelo estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida íntima. A literatura feminina está carregada de enunciados poéticos que associam a intimidade aos espaços físicos da casa e suas adjacências.  Assim compreendida, a casa configura um corpo de imagens que dão ao indivíduo razões e ilusões de estabilidade, constância. É preciso reinventar constantemente sua realidade: distinguir suas possíveis imagens é perseguir a alma da casa; perseguir uma psicologia da casa.  O resultado dessa ordenação está na representação da casa como ordenação de imagens que a torna um ser vertical, muito ligada à ideia de consciência ou, por outro lado, a imagem da casa como um ser concentrado em que se enfatiza a “consciência de centralidade”. A relação consciente e inconsciente - realidade da casa e do espaço de forma concreta e realidade do espaço de forma abstrata - indicam a relação junguiana com a realidade e seus símbolos.

A poética do espaço de Bachelard oferece-nos reflexões importantes para a interpretação de alguns poemas, que situam o lirismo numa relação estreita com as dimensões metafóricas da casa e as ambivalências dos seres ali representados. Nota-se que, na poesia, o espaço adquire o caráter de poética ao estabelecer relações simbólicas que envolvem os dramas e aspirações dos seres em seus espaços habitáveis ou desejados, sonhados. Esse mundo simbólico funde elementos do eu lírico a espaços que transcendem o material e acenam para representações arquetípicas junguianas.  Trata-se não apenas do consciente, mas das relações entre espaço e inconsciente, em que a leitura da realidade transcende para camadas psicológicas que denotam e conotam informações cruzadas sobre a relação entre o ser e o espaço.  São os poetas e escritores que nos levam a refletir sobre a diversidade de imagens associadas à memória, à infância, à passagem do tempo e à precariedade do mundo de representações. O canto nos leva à tomada de consciência frente ao universo e à significação da vida, a partir de pequenos olhares sobre espaços dos detalhes e da simplicidade.  Por outro lado, a imensidão reflete uma busca existencial numa espécie de meditação exaltada, cuja transação da espacialidade poética produz infinitos particulares, em buscas de grandezas relativas. É nessa tentativa de compreensão de espaços, pela via de uma poética, que se chega a uma noção mais amplificada dessas relações e as aproximam das reflexões filosóficas e psicanalíticas e que buscam na imagética e na fenomenologia os alicerces para as complexas relações entre o homem e o espaço.

 

C(ASAS)

                Nic Cardeal

 

Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,

verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,

telhados que acolhem chuvas esparsas,

uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,

chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

 

Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidas

a habitar minhas casas por trás das retinas

que corressem livres, cantantes, felizes

– esses meninos e essas meninas –

entre o balanço das redes e a colheita das amoras,

fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...

 

Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,

depois das costas, das omoplatas,

dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,

passeios noturnos indo dar na janela da alma,

quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito

e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.

 

Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,

e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,

sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,

amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,

no centro, nos cirros, nos nimbos,

cirandas e rodas e poesias e prosas,

risadas rosadas, espécies de esperanças eternas

em casas etéreas com tetos tão ternos,

deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...

Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada

– depois da lama, além do lótus –

haverá de nos caber um respirar em amor

onde ‘meus meninos e minhas meninas’

sejam sementes e brotos e flores e frutos

de um deus mais decente.

 

O eu lírico expressa no signo casa um continente que contém asas, aprisionadas na ambivalência dos parênteses, mas libertas pelas janelas do olhar, que não está doente dos olhos.  A imagem da casa desdobra-se em vilas com quintais projetados nas asas do desejo da refração. A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. É um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. Os elementos telhados, chaminés, vento projetam a casa como espaço de ascendência, o telhado metonímico onde descansam os pássaros, em meio às intempéries. Na vida do homem, a casa afasta contingências. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma, segundo Bachelard. Sem ela, a infância é um ser disperso, desprovido, denuncia o poema. A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade, ela é o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no mundo, o homem é colocado no berço da casa.  Mas os meninos e as meninas estão ao relento, desapropriados do grande berço que é a casa e suas adjacências lúdicas para a infância. O ser é um valor e reclama um tratamento digno, e a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada e feliz no regaço de uma casa. É o que os olhos da poeta desejam, para estarem plenos de estrelas.  O desejo de acolhimento expressa-se na denúncia da injustiça reinante. A infância sem-teto, ainda mais diminuída no mundo exterior, despossuída dos valores da intimidade de um lar, mas também das possibilidades oníricas que esse espaço favorece, que as experiências dos sentidos podem oferecer.  O corpo metamorfoseia-se expressando o sentimento do mundo, prepara-se para acolhimento do universo particular “de toda essa 'minha gente'.”   Por fim, a integração com a mãe Terra, a grande casa-útero, onde se processa o ciclo vida-morte-vida. A transmutação da matéria humana convertida na árvore da vida, mas protegida por outro paradigma de justiça divina – é uma metafísica que passa por cima das preliminares em que o ser é o bem-estar, em que o ser humano é colocado num bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser.   

A casa cosmológica no poema de Nic Cardeal está em luta, em ação terrena pelo acolhimento social dos vulneráveis. Bachelard diz em seus devaneios que uma metafísica completa, que englobe a consciência e o inconsciente, deve deixar no interior o privilégio de seus valores.  No interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe o ser, envolve-o. O filósofo reafirma que o ser deveria reinar numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece, diz ele, que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens materiais. Para além das metafísicas, o poema de Cardeal denuncia a vulnerabilidade de toda essa nossa gente sob um sistema que se mantém às custas de graves, medonhas injustiças sociais.  O lúcido anseio, desejo de libertar as crianças da precariedade material, em dialógicos cruzamentos artísticos e cósmicos faz coro com a música Comida, dos Titãs  diversão, arte e a liberdade de viver em casas etéreas com tetos, tecidos por uma sonoridade do ser, a poesia fala no limiar do ser, ser-Tão.  

 

INSPIRAÇÃO

                                             Patrícia Cacau

Mulheres

somos iguais em tudo que é invisível aos olhos.

E nas lágrimas nos encontramos.

Nada é tão banal

E o pouco é tão importante quanto o essencial

Um universo em fios

unindo-se para reconstrução do grande ventre de sustentação

da divina mãe.

Eu sou porque muitas foram,

Tu serás e outras serão após.

Recebi e agora entrego o que foi por herança.

Permanece aquele que se entrega.

Olhado pra ti, me vejo cada vez mais mulher.

E o que antes foi solto agora está ligado.

Passado e presente reconectando com o futuro.

Seja um ser que reconhece o seu papel nessa fazedura.

Independente do corpo que habita.

Não se distraia, seja MULHER!


O poema de Cacau é um canto ancestral da sororidade. A casa aqui se desenha na ciranda das mulheres sábias. Seus versos conjugam, evocam todas las madres, as muitas mães para que nos orientem a perseguir a profunda vida criativa. Resgata o conceito da mãe selvagem que, Segundo Clarissa Pinkola Estés, não deve jamais ser abandonado, pois a mulher estaria abandonando sua própria natureza profunda, “a que detém todo o conhecimento, todos os sacos de sementes, todas as agulhas de espinheiro para os remendos, todos os remédios para o trabalho e o descanso, para o amor e a esperança” (ESTÉS, 1994, pp. 228-229).  A mãe selvagem é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, na qual também ensinamos. Os rituais de ancestralidade são retomados nos versos de Inspiração: embora as mulheres mais jovens tenham idade suficiente para gerar sua cria (seus projetos artísticos) e bons instintos que a orientam corretamente, elas precisam do estímulo, da atenção e do apoio das “deusas-mães”. Durante muitos séculos, as velhas das tribos e aldeias compunham um sistema básico de nutrição de mulher-para-mulher que apoiava em especial as mães jovens, ensinando-lhes a alimentar, por sua vez, as psiques e as almas de seus filhos. As mulheres mais velhas eram repositórios do comportamento e do conhecimento instintivo e podiam transmitir os mesmos para as mais jovens. Elas passavam esses conhecimentos por meio de palavras, mas também pelo olhar, um toque com a palma da mão, um sussurro ou um tipo especial de abraço que diz “sinto carinho por você”.  O self selvagem que nos espreita, no poema de Cacau, é também aquele que nos convoca a resistir aos condicionamentos de uma cultura perversamente adoentada pelo sistema patriarcal. É preciso confrontar esse sistema com arrojada sensibilidade, e a criatividade é a capacidade de sensibilizar tudo que nos cerca. A poesia faz a escolha entre pensamentos, ideias, sentimentos, ação e reação, cria um ser de linguagem capaz de reações inigualáveis, que transmite ímpeto, paixão e determinação. É a ciranda das mulheres sábias em pleno processo de criação.          

 

MATRIOSKAS 

                              Cátia Castilho Simon

 

Antes de mim

Houve um rosário

de sim

 

Em clausuras

ad infinitum

formatado

 

No eterno

jogo

das matrioska

 

As Matrioskas russas constituem-se de uma série de bonecas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). São pintadas com cores vivas e desenhos variados. A palavra provém do diminutivo do nome próprio Matriona. A imagem das Matrioskas pode ser entendida como pequenas casas, metáfora onde habitam nossas ancestrais. O poema de Simon pode ser compreendido no jogo de ressonâncias, que se dispersam nos diferentes planos de nossa vida no mundo; e a repercussão, que nos convida a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A morfologia das bonecas, o oco das ressonâncias das matriarcas nos obriga, nos impulsiona à repercussão, ao aprofundamento de uma escuta ancestral e o repensar de nossa própria existência. A exuberância e a profundidade impulsionadas pelo jogo dialógico da ressonância e repercussão reanimam as profundezas em nosso ser. É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso passado.  Mas a imagem atinge as profundezas antes de emocionar a superfície.          

Para compreensão dos consentimentos, forjados na clausura, é necessário o restabelecimento da intimidade com a natureza instintiva. A metáfora das Matrioskas nos revela o aprendizado das histórias das quais fazemos parte, não existem fora de nós. Imaginemos uma longa história pela porta de escuta de cada uma das Matrioskas, responsável por novas gerações de mulheres. A última geração representada pelo eu lírico que se define “Antes de mim” denuncia o enclausuramento ad infinitum, mas a própria denúncia do rosário de consentimentos, abre canais através das mulheres. É uma forma de luta da mulher selvagem para reerguer suas descendentes, por mais que sejam proibidas, silenciadas, podadas e enfraquecidas, torturadas, rotuladas de loucas, perigosas e de outros depreciativos, elas voltam à superfície. É o que revela o ser pungente da linguagem poética de resistência do feminino selvagem. Essa imagem, que a leitura do poema Matrioskas nos oferece, torna-se realmente nossa; enraíza-se em nós mesmas.  Como almeja o saudoso poeta e semiólogo Décio Pignatari, a imagem poética torna-se um ser novo da nossa linguagem; expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa – isto é, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e uma devir de nosso ser.     

 

SÉCULOS

                                    Flavia Ferrari

 

Querer não basta

É preciso rastejar pelo território sem trincheiras

Sob as balas que cruzam e tiram a pele

 

Sonhar de nada vale

É preciso subir ao palco e assassinar o rei

Desligar o som e encerrar o show

 

Viver não é suficiente

É preciso morrer cem vezes

E outras tantas

Para que o tempo seja generoso

 

E restaure o humano revolucionário

Que possa enfim descansar

Sem sentinelas

Sobre a terra que lhe foi devolvida

 

As imagens poéticas lançadas pela poesia de Ferrari colocam a emergência da linguagem, que está, sobremaneira, acima da linguagem significante. Ao vivenciar os versos, temos a revigorante experiência da emergência. Ainda que seja uma emergência de pequeno alcance, essas emergências renovam-se; a poesia força a linguagem a um estado de emergência. A vida se expõe nela pela sua vivacidade; a poesia reclama, para o descanso do humano num porvir generoso, que as ações sejam realizadas na dialética inseparável das ações: querer, sonhar e viver são complementares e urgentes. Para confrontar o estático espetáculo do mundo dos déspotas, a ênfase é na coragem que se arrisca nos territórios do perigo e avança sem idealizações no desmonte do palco: O rei é morto! Um grande verso pode ter uma grande influência na alma de uma língua, prova disso é a acertada alusão desta expressão no poema. Ele desperta imagens apagadas no show emudecido da vida e sanciona a imprevisibilidade da palavra. A imprevisibilidade intencional das palavras, além de ativar a tonificação da vida, é uma aprendizagem da liberdade, de retomada da terra, a grande casa-útero. Que força, que potência a imaginação poética encontra na ironia sobre os totalitarismos! Aqui a poesia coloca a liberdade no próprio corpo da linguagem; ratifica seu lugar como um fenômeno de liberdade e justiça social. É preciso perseverar na cíclica jornada de lutas: só assim o humano revolucionário pode descansar, sem medo, sobre a parte que lhe cabe desse latifúndio.       


ALCATEIO-ME

                           Marta Cortezão


uma alcateia me habita

multitudinária presença

que, em noite de lua cheia,

me devora e me expande

me dilacera e me liberta

me uiva e me assume

alcateia-me

em espetáculo ritualístico...


a loba já não corre

pode vislumbrar

o lume dos anseios 

Pode apreciar e uivar poesia

aos cantos cinzas do mundo

gozando em alcateia


O poema de Cortezão evoca as questões da imaginação poética, enfatizando que é impossível receber o benefício psíquico da poesia sem a participação dialógica destas duas funções do psiquismo humano: o real e o irreal. Cortezão oferece-nos uma arquetípica terapêutica de ritmanálise pelo poema que tece, transfigura e conjuga o real e o irreal, que dinamiza a linguagem pela dupla atividade da significação e da poesia. O engajamento, na poesia, do ser imaginante é tal que ele deixa de ser simplesmente o sujeito do neologismo verbal alcateio-me. As condições reais já não são determinantes. Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos. Os mais alienantes dos automatismos, os automatismos da linguagem são quebrados, rompidos quando penetramos nos domínios da sublimação pura dos versos de Alcateio-me.      

O poema realiza uma conjugação profunda com a natureza do feminino selvagem. A alcateia é a casa da mulher: ela viceja na mais profunda alma-psique das mulheres. O ritual de devoração, transmutação acontece na linguagem poética e no mundo dos sentidos. A poeta conclama a presença do arquétipo de La Loba, aquela que conhece o passado pessoal e o passado remoto, pois ela vem sobrevivendo gerações afora e é mais velha que o tempo: pode apreciar e uivar poesia/aos cantos cinza do mundo. Segundo Clarissa Pinkola, ela é a memória arquivada das intenções femininas: pode vislumbrar/ o lume dos anseios.  Pinkola assegura, em seus estudos, que a biologia dos lobos Canis Lupus e Canis Rufus são como a história das mulheres, naquilo a que se refere à sua vivacidade e à sua labuta. O poema de Cortezão reafirma características psíquicas comuns às mulheres e aos lobos: percepção aguçada pelos ciclos da lua, onde ocorre a transmutação da mulher em loba, o renascimento antropofágico da mulher loba com extrema coragem e determinação feroz.   Outro ponto de conexão entre lobos e mulheres é a capacidade intuitiva e a adaptação a circunstâncias em constante mutação. O poema está sutilmente denunciando o processo predatório contra os lobos e as mulheres por parte daqueles que os acossam e perseguem, atribuindo-lhes adjetivos ameaçadores como voracidade e agressividade. No entanto, o processo de entrega do corpo feminino ao gozo coletivo da alcateia faz coro com a dimensão cíclica de Gaia: tudo que vive morre, tudo que morre vive, viceja na comunicação poética. A poesia de Cortezão nos coloca em sintonia com o corpo selvagem: aquele que tem dois pares de olhos, um para a visão do prosaico, o outro para a vidência, os segredos; dois pares de orelhas, um para melhor escutar o som do mundo, o outro para ouvir as delicadezas e a fome da alma; dois tipos de força, a dos músculos e a inquebrantável força da alma. Encontramos essa potência do feminino selvagem no corpo multilíngue da poesia, que a amazonense, filha da floresta e do rio, nos oferece.      

 

ORAÇÃO

Francis Mary

 

Rasga meu peito depressa

Planta na minha terra

Árvores fortes a me enraizarem.

 

Dá-me de beber da seiva

Que alimenta as abelhas.

Desperta-me com o tecido das maritacas

em seus gritos.

 

Liberta-me nas corridas dos veados

Solitários nas estradas.

Pinta-me com o colorido alegre das araras

E me acalma com as águas dos igarapés.

 

Joga em meu colo, em minha sombra, a luz.

Acorda a minha vontade de amar

e no rio do amor incondicional

inteiramente ser e navegar!


A ORAÇÃO de Mary nos apresenta a imagem da casa como um grande habitat natural. A poética do espaço se configura na dialética do grande e do pequeno, nas experiências sinestésicas com natureza, no espaço onde a imaginação desfruta, sem o intermédio das ideias, quase naturalmente, o relativismo da grandeza. A imensidão no poema encena não apenas a meditação diante do espetáculo grandioso da natureza, mas a relação simbiótica do ser, as imagens aparecem com seus valores ontológicos, a dialética do interno e do externo, a impressão da imensidão fica impregnada em nós. Aqui encontramos uma participação mais íntima e integrada dos movimentos das imagens. Os elementos da fauna e flora avançam sobre nossos sentidos: ouvimos os sons, vemos as cores e tocamos as texturas generosas das imagens sinestésicas do poema. A fêmea despe sua vestimenta civilizatória e reivindica seu habitat natural; a integração profunda com a mãe terra; a necessidade de restabelecer o contato profundo com natureza selvagem. Existe aí o desejo de desapegar-se do mundo da superfície, onde reina soberano o ego civilizado.    

O corpo oferece-se num ritual de vida-morte-vida. O mergulho no útero da terra e seus mistérios representa os ciclos de renovação e os portais iniciáticos para um renascimento profundo. Gaia é a grande casa onde habita o feminino selvagem, e o seu desejo é formar um grande santuário de união com o sagrado.  Acordar a vontade de amar é um pedido para o restabelecimento da pele da alma, a cura profunda para o corpo anestesiado por um processo desenfreado de doações exaustivas: tudo que o corpo precisa para alcançar a sublimação líquida do rio e seu destino de correnteza, deslizamento.   

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ESTÉS, Clarissa. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.     

 





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