LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|17
Tenho escrito pouco. O tempo escorre por entre meus dedos como areia ou água quando tentamos segurá-las. Mas é incrível como certas memórias resistem ao tempo.
Há alguns anos atrás ouvi uma história encapsulada em curtas frases dentro da universidade em que me graduei. Nunca fui capaz de esquecer, tampouco podia fazer algo com ela — o que alguém pode fazer com frases que ouvimos por alto? Escrever, talvez. Não tinha coragem. Me sentia — e ainda sinto — como uma invasora das histórias de um desconhecido, ou melhor, desconhecida. Porém, é na minha perspectiva de mulher que decidi desenterrar essa memória. Não sei se estou fazendo a melhor escolha, mas os tempos são bons para a reflexão que ela traz. Sigamos.
No meio da minha graduação, talvez 2018, estava no ônibus universitário sentada na frente de quatro rapazes tão jovens quanto eu que comentavam sobre a última Calourada (festa universitária de recepção aos calouros). Apesar de jovens, não pareciam calouros. Eu não estava dando grande atenção aos comentários até que certas frases ditas pelo rapaz sentado atrás de mim silenciaram meus pensamentos:
— Eu nem acredito que peguei aquela gostosa. Eu metendo fundo e ela vomitando. Ela nem sabia o que estava acontecendo! Foi ótimo!
A broderagem dos outros três amigos do rapaz trouxeram um silêncio que abriu espaço para as gargalhadas do dito cujo.
Fiquei em silêncio por dentro e por fora. Não podia acreditar no que eu tinha ouvido e onde eu tinha ouvido.
Quando o ônibus parou e senti que eles iam descer, eu tive que olhar para trás. Eu tinha que saber quem ele era. Quem eles eram.
Quatro rapazes de camisa polo impecável, jeans novinho, sem um pelo de barba ou cicatriz de gilete no rosto — carinha de neném —, cabelo bem cortado, alinhado. Você, e nem eu, jamais apontaria para um rapaz daqueles e diria "estuprador", porém um deles o fora, e os outros que sabiam, calaram.
Provavelmente essa garota até hoje não sabe o que aconteceu com ela. Provavelmente esse rapaz não se considera estuprador e nem é visto assim por seus pares. Deve ser um cidadão de bem.
Eu escrevo, falo e luto, mas nunca vivi nenhum tipo de violência física — psicológica acho que todas vivemos só porque nascemos. A dor do outro, da outra, me basta para escrever sobre, pensar sobre, lutar por.
Dar voz a essa memória anos depois não diminui o nó da garganta, e sei que é só mais uma história entre tantas outras. Infelizmente ainda tantas… Infelizmente em um ambiente que deveria ser seguro, já que levianamente associamos violência à uma simples ignorância… Mas como disse Audre Lorde: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas".
Quantos desses jovens, infelizmente, estão a "atuar" em nossa sociedade :( !
ResponderExcluirPois é... Preocupante :(
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