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terça-feira, 18 de outubro de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A CASA DA JOAQUIM NABUCO, POR RITA ALENCAR CLARK



LIÇÕES DE SILÊNCIO|05

POR RITA ALENCAR CLARK

A CASA DA JOAQUIM NABUCO


                                                                               [Para Alencar e Silva]


        Quando penso naquela casa, a casa de meus pais, vou embrenhando em histórias que se confundem com a própria história da cidade. Nos dias tumultuados da minha juventude, vividos na casa da Joaquim Nabuco, em Manaus no começo dos anos oitenta. A época “pré-direta já” explodia em manifestações artísticas, movimentos literários e pensamentos vanguardistas, revolucionários. Para muitos resistência, para outros necessidade de expressão, para todos o desejo de retomar nas mãos a liberdade de um país sequestrado pela ditadura. Ali, no porão da casa, a Democracia já se instalara. Esse era o propósito da casa.


        Às 11 horas da manhã de sábado, invariavelmente, começavam aparecer os primeiros convidados, aqueles que de fato tinham recebido o convite de meus pais para o almoço, precedido de aperitivos no “Porão do Poeta”. Mas isso não impedia que outros, não convidados formalmente, de passagem adentrassem atraídos pela alegria, pela música e pela poesia ou para se deliciar com as iguarias que saiam da cozinha de minha mãe. Entre amigos e parentes havia vários grupos interagindo, os poetas, os artistas em geral, primos que já eram de casa, mas tinham os primos e amigos que estavam de passagem pela cidade, vinham do Rio, de São Paulo, Fortaleza, Recife… a família parecia não ter fim.


        Nesses encontros, a casa era plena, na parte de cima ficavam os quartos, as salas e a biblioteca. Pé direito de seis metros, as portas eram altíssimas, com uma espécie de claraboia vazada  por cima para o ar circular e formar uma corrente de vento, bem ao estilo Português do começo do séc. 20. Era desconfortável e mal dividida, meu pai a reformou e mandou construir mais um banheiro na parte de cima. Imagina, uma casa de 300 metros quadrados com apenas um banheiro… no entanto, lá no porão havia mais dois banheiros geminados. Fiquei sabendo tempos depois que, antigamente, o costume era apenas as mulheres usarem o banheiro de cima, os homens usavam os outros, que, pasmem, não eram cobertos  totalmente e ficavam em área aberta no quintal. Nos dias de sarau eram disputadíssimos!


        Num desses dias, um sábado de manhã, chega Luiz Bacellar, poeta amigo de longa data, tocou três vezes a campainha, batendo palmas e já impacientando-se com a demora. Meu pai gostava de atender, mas até ele escutar… usava aparelho para surdez e, poeta, nem sempre estava sintonizado com o mundo aqui fora. Tínhamos que avisá-lo. As risadas já começavam a se insurgir no portão. Vai ter festa na casa da Joaquim Nabuco. Depois, quem quisesse ficar era bem-vindo, quem não queria, estava livre desde que arrumasse a casa e deixasse as camas feitas. Regras da casa, afinal eram cinco filhos. Eu ficava quase sempre. Nesse dia teria um passeio de barco com amigos. Bacellar era muito curioso e sem rodeios perguntava, enquanto eu  fazia retoques na maquiagem, “Vais para onde?” Preciso fazer uma pausa aqui para explicar, na sala de jantar ficava um móvel, uma cristaleira imensa que teria sido da mãe de meu pai, devia estar na família havia uns 30 anos, calculo, era ótima para se maquiar, tinha uma parte central, que imagino ter sido criada para ser um bar, todo espelhado por dentro com pequenas lâmpadas. Um camarim perfeito no lugar errado. Que seja. Continuando a conversa com o poeta “Estou indo passear de barco”. Ele fazia cara de quem iria embora e voltava “ Com quem vais?” “Com meu namorado” Ai… me arrependia sempre, agora viria a inquisição. "A que família pertence esse namorado?” “Ele não é daqui, é de São Paulo.” “Huuum sei…forasteiro!” Ríamos juntos e ele saía em busca dos tira-gostos na cozinha. Bacellar era uma figura!


        Começava o sarau, quando eu ficava em casa, tinha que trabalhar, era copo e prato para recolher o tempo todo. Nessa época tínhamos sempre pessoas para nos ajudar, gente que vinha do interior, da terra de minha mãe, meninas e meninos que estavam vindo para estudar com vislumbres de uma vida melhor. Minha mãe, assistente social, não negava acolhimento em nossa casa. Arranjava um colégio, um internato, ajudava nos livros, roupas, aconselhamentos…até seguirem seus rumos. Havia um menino, que foi destacado para a função de "babá" do irmão temporão; o Joaquim. O único que aguentava o pique do irmãozinho, o único que tinha pernas e malandragem pra correr atrás do lourinho fujão pelas calçadas da Joaquim Nabuco, quando algum descuidado esquecia o portão aberto. Joaquim, “o babá”, fazia resgates memoráveis! “Pega o lourinho…”


        Agora a gente ri, mas na época nós surtávamos! Lá pelas tantas, depois de muita cerveja e bolinho de pirarucu com molho de tucupi, vinham as bandas de tambaqui e a caldeirada salvadora.


        Minha mãe tinha esperanças que após tanta comilança, partiriam felizes para suas casas. Só que não. Uns remanescentes ficavam e se alongavam como se nunca mais fossem se ver…era  a poesia brotando em carne viva naquele espaço de tempo, agora eu sei, era a própria história da nossa literatura se tornando eterna naquelas tardes; versos de Tufic, com seus aromas do Líbano, Elson Farias e seus cantos lendários, Luiz Bacellar com sua "Frauta de Barro", Antísthenes Pinto, já meio alterado, explodindo em versos e  meu pai já em êxtase galopando os versos de seu “O cavalo de Brahma”. Porão do Poeta efervescia! ah… e tinham os músicos, dedilhando canções inéditas entre pérolas da nossa música genuinamente Brasileira, Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Cartola e tantos outros. A forma que dona Nair tinha de “expulsar” os retardatários, uma delicadeza inventada por ela, era servir um pudim de leite ou doce de cupuaçu entre copos de guaraná ou, pior, de coca-cola.  Dizia ela: “ para repor a glicose e conseguirem chegar em casa”... muxoxos de descontentamento se ouvia em uníssono! Mas, quem iria ousar desfazer dos doces da dona Nair?


        Hoje a casa está fechada, muitos anos se passaram, como dizia Fernando Pessoa no poema "Aniversário",  foram-se criando “grelado nas paredes”, aquela vegetação improvável e indiferente às condições climáticas, que brotam entre rachaduras causadas pelo tempo no muro das casas, pondo abaixo o telhado, as escadas, as tábuas pretas e amarelas do assoalho, as portas seculares da casa que um dia foi viva.


      "O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

       O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

       Pondo grelado nas paredes...

       O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)..." 


        Passo por lá de vez em quando e o coração aperta vendo sua decrepitude e impotência diante aos descasos imobiliários. Casa está à venda há pelo menos cinco anos e nenhuma proposta de compra e venda se concretizou. Dizem que a área não favorece, o lugar  está perigoso e tal… Então, a casa da Joaquim Nabuco, fincada no centro histórico de Manaus, junto a outras no mesmo estilo Belle Époque do quarteirão, está obsoleta e destinada ao esquecimento, ao apagamento, como os versos dos “poetas mortos” que um dia a frequentaram? Penso. Mas, ainda assim, ela resiste, alquebrada e imponente, resiste como pode. Há quem diga ouvir barulhos de vozes, risadas, bater de copos e panelas, quando de passagem pela frente, em noites  de lua cheia…devem ser as paredes exalando alegria, cantando a poesia esquecida em sonetos, versos livres e notas de jasmim. Mas, aí já é lenda! 





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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: DEUS ME DEFENDA E GUARDE, POR RITA ALENCAR CLARK



LIÇÕES DE SILÊNCIO|04

POR RITA ALENCAR CLARK

DEUS ME DEFENDA E GUARDE  


“Deus me defenda de mim e da maldade de gente boa, da bondade da pessoa ruim…” Juliette ressuscitou a música de Chico César pra nos dar voz, nós os desencantados esperançosos. Da maldade de gente boa é fácil se safar, basta um pouco de malandragem. Mas da bondade de gente ruim… dessa precisa ter corpo fechado.

Um dia, lá no meu passado, conheci Wanda, uma menina amiga da minha filha, era vizinha de condomínio, brincavam juntas no play. Wandinha gostava de chocar a todos, fazia perguntas indiscretas, abaixava a saia das amiguinhas e cravava a cueca dos meninos daquele jeito cruel e sádico. Ela ria… ria quando todos a reprovavam! Um dia deu um tapa na cara da minha filha, assim sem nenhum motivo, a mãe, lívida ao meu lado, nada fez. Corri com ímpetos de vingança, mas pude me controlar a tempo de um desastre… “Você tá louca, garota?” “Ela me provocou!” A filha em estado de choque. Wandinha sorria com o canto da boca enquanto fazia escorrer uma lágrima falsa daqueles olhos de gente ruim. Olhei para a mãe, enquanto abraçava a filha em prantos, um olhar absorto como se fosse surtar ou sair correndo. “Wandinha, meu bem, você não pode bater nos amiguinhos…” Olhei firme na pupila dos olhos da garota e vi uma escuridão profunda, por instantes correu-me um calafrio, mas retomei o duelo, trêmula por dentro, nada consegui dizer. Tive pena da mãe. Não era um olhar de criança aquilo, eram olhos de gente velha, ruim e dissimulada.

Tem gente assim. Índole, espírito ou maldição? Não sei, sei que Wandinha muitas vezes fingia ser boazinha, gostava de mim a peste, acho que fui das poucas que a enfrentei. A questão é que gostava de me contar seus planos para o futuro. “Tia, não vejo a hora de crescer, sabia?" "Por que Wandinha?... tão bom ser criança." "Bom nada! Bom é ser adulta… quando eu crescer vou ter dois maridos! Um pra me dar as coisas, outro só pra namorar mesmo!" "Como?!" Ela ria, gostava de chocar, como já disse, continuava nos delírios…"joias, carros pelo menos dois dos bem grandes, viagens e claro, roupas! Muitas roupas!"...e saltitava rodopiando, rindo, talvez, da minha cara. O queixo já estava deslocado neste momento, não podia acreditar na desenvoltura criativa daquela pequena ambiciosa. Os olhos de velha ruim cravados nos meus…"Você também tem dois maridos, tia?" "Não, Wandinha, no momento tenho nenhum mesmo…"  "Ué então como você faz pra viver, tia?!"  "...eu trabalho, Wandinha, eu trabalho." "Coisa mais sem graça…Deus me livre!" Os olhos da anciã reviraram em desaprovação.

Não sei por que fui lembrar dessa história agora… deve ser pelo fato de estar passando por uma tempestade financeira. Não, pior, bem pior, um terremoto de magnitude 4, talvez, qual a escala máxima?! Bom, esse estado de coisas que me encontro trouxe Wandinha de volta ao meu universo criativo, assim como a canção de Chico César renascida na voz de Juliette, aliás Chico deu uma declaração linda outro dia onde dizia que colou a foto de Juliette na porta de sua geladeira pra nunca esquecer de agradecer quem ajudou a colocar comida de volta dentro dela. Gente, quase chorei… Gratidão, que palavra delicada. Obrigada Chico, obrigada por me reacender a chama da gratidão dentro da alma. Mas, voltando à Wandinha, a garota dos olhos de velha ruim… hoje, deve ter mais de 30 anos, idade da minha filha mais velha, qual terá sido seu destino? Confesso que deu vontade de fantasiar um pouco a respeito.

Terá conseguido realizar seus delírios de ter dois maridos? Carros? Viagens? Se ela hoje está feliz… Nunca saberemos.

Wandinha nos afrontava, nos incomodava com suas tiradas, penso eu porque, não havia muito tempo ainda, lutávamos pelas causas feministas e pagávamos alto preço pela liberdade, afronta e ousadias. "Bobagem, bobas são vocês sonhando com essa tal de aposentadoria!!"...Deus, ela não nos dava trégua! Continuando, a verdade é que convencidas e doutrinadas para sermos independentes, autossuficientes, mães responsáveis, heroínas da aldeia etc. e tal, corremos nós o risco (vejam só) de acabar, uma hora dessas, cheias de certezas insólitas, numa noite de tempestade qualquer, uma taça de gin tônica na mão, com a testa colada à janela e pensando: "...e se a Wandinha estivesse certa, afinal?" Bom, agora, meu bem, agora Inês é morta! Tá feito, e bem feito! 



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Rita Alencar Clark
[foto arquivo pessoal da autora]
Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

sábado, 24 de setembro de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: MAYA, POR RITA ALENCAR CLARK



LIÇÕES DE SILÊNCIO|03

POR RITA ALENCAR CLARK

MAYA  


    Chega um momento na vida de uma pessoa que de tanto sofrimento vivido, a fé e a esperança de dias melhores são quase  delírio, miragem... eu, ele, tu, todos sempre estaremos lutando, silenciosamente, contra o coração. Somos crianças  rebeldes e inocentes. Quando chega este momento, somos confrontados frente a nós mesmos! Não há como fugir nem ignorar. Nesse momento, há que se ter coragem de aceitar a  derrota pois a alma chora. E dói! Uma dor fina e silenciosa que começa nas células do  coração. Ela vai rasgando a carne como raízes que crescem rasgando tudo, como a rasgar ambas as pernas ao meio... e ela se agiganta por todo o corpo e jorra cuspindo um choro convulsivo e abandonado. De joelhos dentro de um box blindex, talvez, às lágrimas jorrando sob a ducha fria e o grito surdo abafado pelo vigor das águas do chuveiro... quantas vezes ?! - Meu Deus!!!...Eu me rendo à Vossa vontade... me tira daqui !!! Quantas ?! 


    Sim, vivi vários momentos assim, ao longo da vida e sobrevivi! Melhor, estou sobrevivendo, hoje vivo a vida que sempre estive sonhando viver, um dia após outro dia, um passo na frente do outro. O sonho e o coração como bússola, muita insegurança num caminhar silencioso, ousado e livre!


    Porém, o salto é muito grande. O medo te olha nos olhos... o ego te olha nos olhos. Mas só o teu coração  sabe a verdade. O ego fala também. Sabe?... aquela voz secreta que muitas vezes nos torna deselegantes, oportunistas, simuladores, corruptores, mal intencionados... aves de rapina que se alimentam da dor humana?! Essas vozes aprendi a não  confundir, uma com a outra, vivendo, rolando nas pedras.


    Às vezes penso que é tudo uma grande peça de teatro. Quando tem que fazer o seu papel, mas a questão é que não há roteiro escrito. Temos que improvisar.   


    -- Siga seu coração! Sempre há essa voz... mas existe a outra, a do ego também pra te confundir, pra te trançar as pernas.  George Harrison, um artista que tenho respeito pela busca que fez dentro da  alma humana, tem uma música boa pra gente entender certas coisas "Beware of Darkness". Beware of Maya, cuidado com a Ilusão!


    Sempre haverá  um novo ciclo, uma nova forma  de viver por aí, pelo ar, pelos sonhos, pela paixão... e que isso nos torne  mais despertos e confiantes, respeitados e prósperos em nossos sonhos,  que sejamos luminosos, mesmo  sob  brumas espessas, mesmo em tempos mesquinhos, tempos de Maya

  

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Rita Alencar Clark
[foto arquivo pessoal da autora]


Rita Alencar Clark é poeta, contista, cronista e ensaísta amazonense, membro da ALB/Am, membro do Clube da Madrugada e do Coletivo Mulherio das Letras, tem 2 livros publicados e várias coletâneas.

domingo, 28 de agosto de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO|02: SOTÃO, POR RITA ALENCAR CLARK

 


LIÇÕES DE SILÊNCIO|02

POR RITA ALENCAR CLARK

O SÓTÃO


Nas horas quentes de uma tarde azul 

O vento vem e se deita comigo 

Calo-me e escuto, naturalmente inquieto-me, 

É que há sempre algo a ser dito por 

Brisas suaves ou tornados absolutos 

Inquieto-me. 

Breve estarei sozinha, de olhar ao longe... 

Debruçada à janela esquecida do sótão 

Navios que partem e que chegam enquanto meus olhos veem. 

Os sótãos são momentos e guardam segredos eternos 

Nossos e de ontem, dos outros e secretos. 

Inquieto-me por não saber o destino de tantas 

Esperanças inscritas em cadernos e folhas de blocos avulsos, 

Ensaios delirantes e impublicáveis meus,

Nessa hora azul de silêncio, e sofro.

Sofro as dores do ficar, do não partir a vida ao meio, 

De entender e desistir das jornadas e aventuras 

Aguando os olhos com a tristeza de uma saudade 

Desconhecida, de um futuro que jamais terei ou conhecerei. 

Tudo, tudo haveria de permanecer intacto 

Naquele sótão, naquela tarde azul 

Sufocante e de mormaço letárgico, quieto. 

Apenas eu, eu e meus pensamentos, 

Apenas nós permaneceremos inquietos.

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Rita Alencar Clark
É poeta, contista, cronista e ensaísta amazonense, membro da ALB/Am, membro do Clube da Madrugada e do Coletivo Mulherio das Letras, tem 2 livros publicados e várias coletâneas.


terça-feira, 9 de agosto de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: O PROPÓSITO, POR RITA ALENCAR CLARK



                                            LIÇÕES DE SILÊNCIO|01

O PROPÓSITO

POR RITA ALENCAR CLARK


Diante dos meus olhos, o luxo, a pompa e circunstância, gente bonita transitando em trajes de gala, o convite do casamento chegara com bastante antecedência. “Ministro fulano de tal e Senhora convidam para o enlace matrimonial...” muito bem, agora só precisaria ficar atenta onde pisar. Não estava disposta a ser alvo daqueles velhos endinheirados, bem vestidos e amorais que circulam por entre os eventos importunando as incautas. Não, não dessa vez! Naquele evento pomposo eu não estava sozinha. Estava noiva e meu noivo era um cara legal, um dândi, como eu gostava de imaginá-lo. Só precisava, agora, saber que tipo de música se "dançava" naquela festa.

Devia estar por meus 22, quase 23...linda, crédula, culta, alma flamejante e romântica, fazia poemas. E vou relembrando...olhando de fora, hoje, com os olhos dos meus 58 anos.

Nessa noite conheci o Ateliê de Francisco Brennand, o mestre pernambucano. Uau...um casamento lá! Éramos convidados, padrinhos, uma distinção ao meu noivo dândi. O casamento ocorreu como um daqueles shows do Pink Floyd com formas, luzes, sensações, jardins com enormes esculturas que brotavam do chão, dos telhados, em formas fálicas... como a delimitar fronteiras naquele universo paralelo dos ricos, dos muito ricos, gerações, dinastias de ricos, pensei.

Sentei-me, obviamente, aonde me conduziram a sentar. Lado oposto à mesa, como era de bom tom, ao meu noivo. Achei péssimo. Falávamos por gestos e olhares. Alguns fulminantes! Sentou-se ao meu lado a esposa do ministro. Por alguns momentos me diverti pedindo ao garçom pra deixar a garrafa de espumante...do outro lado da mesa ele fazia um gesto de tampar a taça, sabe como é? - A pessoa, naquela festa glauberiana, não vai beber?  Pior, um noivo dândi querendo me regular a loucura, querendo lógica no absurdo?! O garçom deixou a garrafa. Ela entreolhou-me e sorrindo perguntou, antes de dar o desejado gole, “Você já sabe qual é o seu propósito, não  é  meu bem?... “. Ainda envolvida pelos ares dos jogos de domínio e sedução, estanquei diante de seus olhos; verdíssimos, com ímpetos subliminares de sabedoria e decadência, realçados pelos cílios borrados deixando marcas esfumadas, controladas ao olhar. Respondi meio no impulso, “Nessa festa?” Ela deu uma boa gargalhada, rimos juntas e brindamos. Havia uma corte ao seu redor, percebi depois, pessoas com rádios nas mãos, falando em códigos...Gente, por falar em código... procurei-o tentando demonstrar certo enfado de minha parte, apenas para confortar o ego do noivo. Ela insistia, olhos cravados em mim. “Já sabe o seu propósito?” E começou a me dizer do seu próprio propósito, como a desenhar os rudimentos da vida de uma mulher que casa com homem poderoso. Foi um tapa no meio da cara, pra acordar. A esposa do ministro desfiava um monte de mágoas e frustrações, ódios tardios, humilhações e raivas ancestrais. 

Quanto mais ela falava, mais ela bebia, whisky, cowboy, alguém providenciava gelo, ela não queria, nem a Perrier. Queria papo, queria passar mais uma festa, e se divertia comigo, talvez com minha total inconsciência de tudo que ocorreria diante de mim naquela noite. Ela adorou minha espontaneidade, minha alegria genuína... talvez até tenha visto uma sombra de pena em seus olhos, mas não era o que seu sorriso luminoso demonstrava. Curiosa, queria saber que propósito é esse que se autoalimenta de sua dor, deixando marcas ao redor dos olhos que não saem com demaquilante?... Valeu(vale) a pena?!  Ela quer saber de mim. “Eu quero casar, ter filhos, estudar mais, escrever, namorar, viajar... fazer bodas de prata... ficar velhinho e cuidar um do outro.” Ela pediu mais uma dose, dupla, sem gelo, um charuto? “não, obrigada”, enquanto ria, ria pausado, aos poucos, explodia uma gargalhada, dava um gole, outra gargalhada, outro gole... comecei a desconfiar que ria de mim, de minha incorrigível sinceridade.” O seu propósito não conta para acompanhá-los, o seu propósito será o propósito que ele decidir, pensou que era passe livre, minha querida? ” Imagina, eu”... Ela não me dava trégua. “Precisa aprender a fazer o jogo do nada sei, não quero saber. Há pactos que surgem após o início do jogo. O jogo do silêncio.”

O jantar estava indescritível de tão bom, as bandas, as luzes, a elegância das pessoas, esse perfume de riqueza e poder, tudo criava, em mim, uma atmosfera de sonho. Pensei na iminência de um desmaio... socorreu-me o noivo, levou-me para o jardim, deu-me água e algumas broncas pelo meu mau comportamento social! “Você sabe que está sentada ao lado da esposa do ministro? Ela não pode beber, fica agressiva e vulgar, faz o ministro passar vergonha!” Sério? Ela não pode beber? Já tomou pelo menos 3 duplos, sem gelo. Está divertidíssima! Ele voltou, a contra gosto, ao seu lugar.

Hora do brinde. Tim tim tim! Os noivos estavam tensos, não se olhavam, o microfone já estava aberto e a mulher do ministro dava tapinhas checando, olhei para o outro lado da mesa e vi o noivo enxugando a testa. “Boa noite...” a mulher estava embriagada, completamente, não havia o que se pudesse fazer! Um clima de pânico já se instalara no ambiente, tive pena, mas ao mesmo tempo estava ansiosa para ouvir o que tinha a dizer, uma espécie de sarcasmo íntimo, inconfessável. O ministro, blasé, olhava para o nada. Antes que conseguisse falar alguma coisa, a mulher caiu sobre a mesa, tremendo e esbravejando, louca de raiva ao tentar arrancar a garrafa de whisky das mãos do garçom. Uma tropa de assessores tentou contê-la, porém antes de ser retirada ainda teve tempo de pegar o microfone e xingar o marido: “Assassino de alma, corno de merda, matou minha vida...me larga eu vou beber!! Eu vi você passando a mão nas coxas daquele rapazola, eu vi! Esse é o verdadeiro propósito menina, olhava cambaleante para mim, o silêncio! O meu silêncio, em troca de uma boa vida!!” E gargalhava! Nesse momento os fogos de artifício espocaram nos céus de Brennand (para alívio de todos) e a festa rolou solta até de manhã. Não ficamos para o café da manhã.

Pensei por muito tempo nessa mulher... tinha horror de um dia transformar-me nela - numa metamorfose kafkaniana - tão rica, tão bela, tão infeliz! Serviu de lição, sempre pensava no tal propósito. Mulher não tem direito a ter um propósito de vida só dela, afinal? Um casamento sem propósito comum era apenas um pacto? Ainda penso naquele noivo dândi, poderia não ter desistido dele tão rápido, poderia ter insistido mais... não consegui. Tive medo de acordar no meio da noite, velha, bêbada, triste, sem propósitos na vida, sem autoestima, apenas uma triste figura de olhos borrados e verdes. Uma mulher que não se reconheceria no reflexo, cheia de mágoas e raivas rochosas. 

Agora, estou eu aqui, nesta noite chuvosa, a vida veio e passou, deixou suas marcas em mim, levou anéis caros, casa de praia, obras de arte..., mas deixou-me o que importa, afinal: os filhos desejados, a poesia e os gatos. 


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