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domingo, 11 de agosto de 2024

CONTAR A PRÓPRIA HISTÓRIA É UM ATO POLÍTICO, POR MARTA CORTEZÃO

                           Por Marta Cortezão

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
Pela primeira vez, na história das Olimpíadas, o Brasil levou uma delegação, em sua maioria, composta por atletas mulheres.  Um registro significativo dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, que tem suscitado profícua discussão sobre paridade de gênero pelo mundo. Até o momento que escrevo esse texto, são 14 medalhas olímpicas, sendo duas de ouro, 5 de prata e 7 de bronze. Nesta conta que não fecha, o destaque é das esportistas mulheres com 9 medalhas, mas o protagonismo é negro, assim como é negro o ouro do Brasil machista, misógino e racista.



Fonte: @artivistha - Thais Trindade
No contexto desta equação machismo + discurso de ódio + aversão às mulheres e a tudo que é relacionado ao universo feminino, temos como resultado a crescente violência contra as mulheres que multiplica o número de feminicídios e os casos de estupro. Os registros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam a brutal cifra de 83.988 casos registrados, em 2023. É assustador pensar que uma mulher é estuprada a cada 6 minutos e que as maiores vítimas do crime de estupro são meninas negras de até 13 anos.


No momento que escrevia o parágrafo anterior, lembrava do poema Não há oásis no deserto, da escritora gaúcha Cátia Castilho Simon, publicado na coletânea Se Essa Lua Fosse Nossa (Ser MulherArte Editorial, 2021):

Fonte: Pinterest

Não há oásis no deserto 

Hoje foi a vez da diarista e outras mais

O jornal anunciou o assassinato de cinco mulheres por seus homens

Outro dia uma juíza foi morta na frente das filhas

Em outros dias, horas, meses, anos,

Agora, agorinha

Por séculos dos séculos, amém e ai de nós

Elas têm se revezado como em uma corrida em meio ao deserto

Uma a uma acredita no oásis e sucumbe:

A bruxa

A frentista

A cabeleireira

A advogada

A professora

A escritora

A costureira

A médica

A manicure

E assim vão morrendo de morte matada, todas

Não há filhas nem filhos capazes de salvar daquele que se entende escarnecido, ainda que seja o pai

Era necessário esfaquear dezesseis vezes para que voltasse ao seu lugar

Sucumbir diante das filhas ou filhos é um morrer sem fim,

É cortar o osso e segurar a dor

Doca Street, o assassino de Angela Diniz, morreu aos 86 anos há poucos dias. Morreu de morte natural, 44 anos após o crime, como um justo que nunca foi.


Fonte: @artivistha - Thais Trindade
É nesse palco, onde a tragédia da vida real segue sendo representada initerruptamente, que os feitos olímpicos de Paris 2024 ganham relevância nas vozes das protagonistas atletas mulheres: “Mulherada, pretos e pretas é possível”, disse Beatriz Souza quando recebeu sua medalha de ouro; a ginasta Rebeca Andrade, após vitória reafirmou a sua felicidade em “representar a negritude”; Dayane Santos, após pódio de Simone Biles e Rebeca Andrade, não economizou palavras para falar desde esse lugar-de-dor-ausência da mulher negra, trazendo para a cena do discurso a questão necessária sobre a representatividade preta: “Ela representa todos. Mas a representatividade de 56% de uma nação, que é excluída, subjugada, que muitas vezes quando ganha é pertencente. [Mas] e quando não ganha? [...] Tomara que as pessoas reconheçam o valor dessas mulheres pretas”; ainda, para delírio dos racistas, a imagem preta, no pódio, da reverência de Simone Biles e Jordan Chiles à brasileira Rebeca Andrade correu o mundo, selando, com medalha de ouro, mais um capítulo histórico que marca o lugar de fala como um ato político de resistência, de luta e, especialmente, de pertencimento.

         

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
A importância destes eventos contraditórios é perceber que há um movimento de mulheres conscientes da vida fronteiriça que nos subjuga e nos maltrata, mulheres conscientes das lutas necessárias e que sabem do poder de transformação dos discursos e das ações e causas políticas, feministas, antirracistas que caminham na contramão de tudo o que representa o patriarcado. E não estamos sozinhas, pois como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Sueli Carneiro se une a Davis quando toma a palavra e diz, em primeira pessoa: “Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social”. A poeta ativista, feminista, Jeovânia P., também entra neste importante diálogo com o seu poema:

Falsa igualdade

Aqueles que pensam que o vírus é igualitário

Se enganam

Ele tem endereço certo para levar a morte

Os corpos estendidos na frente dos hospitais lotados

Sabem bem que eles são alvos de extermínio

Quem nada tem para comer

Com o corpo fraco

Com baixa imunidade

Sabe o quanto lhe cabe e é para si essa morte

Que ronda as cidades

São os pobres

São os pretos

Que ficam lançados no vazio do descaso

Que nem contabilizados são

Apenas restam mais um e um… corpo no chão

(fonte: https://revistaacrobata.com.br/anna-apolinario/poesia/4-poemas-de-jeovania-p/)

         

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
Contar a própria história é um ato político. Falar da repressão de nossos corpos é libertador, é uma potente ferramenta de luta feminista. É preciso nunca esquecer que o patriarcado se coloca como ordem e se propaga através da linguagem com sua eterna narrativa simbólica. O racismo, assim como todos os preconceitos, é um ato de fala, portanto, contradizer o patriarcado será a nossa canção monódica, no sentido de que é um canto triste, porém, uma Canção dos corpos imprescindível, como sugere a poeta macapaense Leacide Moura, a ser entoada por uma legião de bruxas-mulheres (e desejamos que também seja entoada por homens que se unam à causa) que se sublevam e que não se calam diante do projeto patriarcal que é silenciar mulheres. O objetivo será sempre problematizar para avançar nas conquistas e reconquistas. Será esta atitude que nos colocará no caminho de um Feminismo Humano, esse lugar do exercício linguístico como forma de resistência.

 

Canção dos corpos

 

Sob o luar

Ao longe

Ouço o uivo das lobas

Bruxas em círculo de irmandade entoam

Canções de liberdade

Entre as árvores

As estrelas brilham

Enquanto o patriarcado ataca                                      

Elas atiçam o fogo

Em danças circulares

Acordam ancestralidades

Declaram que seu corpo

Não tem proprietário                 

Num coro ritmado

Entoam

As canções dos corpos

Que falam.

          Somos mulheres sobreviventes de um sistema que oprime e mata. A nossa revolta é legítima e política porque, não só nos conecta com outras mulheres, mas com nossa própria essência. Que nos emancipemos do patriarcado, que nos autorizemos a dizer sem medo, a construir espaços para diálogos conscientes através de nossas lutas. 

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Cátia Castilho Simon é escritora, doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Publicações solo: Nos labirintos da realidade – um diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis (Prêmio UBE/RJ, 2014); Por que ler Clarice Lispector? (POA:TDA, 2017); Rastros de Estrela (contos), 2022; Não há oásis no deserto (poesia) – Venas Abiertas, 2023; Brigite – (infantil), ilustração Liana Tim, 2023. É coorganizadora do Digressões Clariceanas, desde 2021. Integra o Mulherio das Letras/RS, é vice-presidenta cultural da AGES, 2023/2024.


Jeovânia P. é escritora, professora, mestre em Filosofia. Nasceu em Natal/RN, vive em Bayeux/PB. Publicações: seis livros poesias, um de contos, e organizou nove coletâneas. Tem o selo e o canal no YouTube Literatura Feminina, onde desenvolve o projeto “Bom dia com literatura feminina!”. Faz parte da UBE/PB. É patrona da cadeira 27 da Academia Bayeuxsse de Ciências, Letras e Artes. Participou da XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.



Leacide Moura nasceu à meia noite, no meio do mundo, na lua nova, às margens do Rio Amazonas, em Macapá/AP, pelas mãos de parteira tradicional. É mãe, avó apaixonada de Maria e Arthur, professora, sindicalista, ativista da literatura, meio ambiente e empoderamento feminino. É da prosa e do verso, organiza obras e tem participação ativa na literatura nacional.

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