quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

ELES LEEM ELAS: UMA GUERNICA INACABADA, POR ODENILDO SENA



ELES LEEM ELAS|07

"Uma Guernica Inacabada", de Myriam Scotti 


Por Odenildo Sena


Há livros que fisgam o leitor pelo arranjo envolvente da linguagem simples, despida de grandes pretensões metafóricas. Livros outros há que fisgam o leitor pela engenhosidade da trama, com pontos de intersecção que calam fundo na alma de quem o lê. No primeiro caso, muitas vezes o leitor empreende a travessia se sentindo recompensado, mas ao final do livro é invadido por uma estranha sensação de incompletude, daquelas que o fazem pensar que faltou alguma coisa para fechar aquela jornada. No segundo caso, atraído pelas pequenas pistas que o escritor vai deixando ao longo do caminho, o leitor avança com ambição rumo ao propósito de desvendar a trama, mas ao final se dá conta de que a travessia bem que poderia ter sido menos sofrida, se embalada pelas ondas de uma linguagem gostosa e cativante. É claro que eu estou falando de leitores chatos!


Pois nesses dias me caiu nas mãos um livrinho (no sentido carinhoso mesmo, porque também de leitura rápida) que me encantou pelas duas virtudes ao mesmo tempo: a linguagem simples e envolvente e a trama absolutamente sedutora. Quando bati os olhos nas primeiras linhas do texto, logo abandonei meu espírito de leitor comodista. Dali por diante, deixei-me conduzir pelo prazer da leitura:


“Sofri um AVC. Um infeliz acidente vascular cerebral do tipo hemorrágico. Não voltei mais da escuridão profunda a que fui condenado durante dois meses, até o meu corpo esmorecer por completo a fim de cumprir o ciclo de retornar ao pó.”


Com esta incrível concisão, que cabe em apenas três frases, Myriam Scotti não apenas fisga o leitor, como também traça para ele todo um feixe de expectativas a serem percorridas e vividas até o final do romance, que, a princípio, mas só a princípio, lembra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, do velho Machado de Assis. A autora cria uma vertente narrativa bem particular. Concede à personagem principal a prerrogativa de transformar o quarto de uma UTI em um espaço de recorrentes sessões de análise, onde, mediados pelo silêncio dos interlocutores, cada um é terapeuta de si mesmo. É nessas circunstâncias que, embora em estado de coma, o narrador acompanha de sua profunda escuridão um verdadeiro desfile de confissões, desabafos, reconsiderações e arrependimentos que, se nada representam para ele, que não mais retornará do coma, acabam por impactar a vida dos que ficam, como sua mulher, seus filhos, seus pais adotivos, seu irmão e, até aquele momento, seu suposto melhor amigo. Mas esse diálogo, mediado pelo silêncio, como eu afirmei acima, é apenas um pouco do muito que o romance proporciona aos leitores mais exigentes. Ou chatos mesmo.


Por outro lado, além das duas virtudes que a Myriam reúne em seu romance, há uma terceira que merece consideração: a inteligente escolha do título, num simbolismo que perpassa todas as páginas do livro. “Uma guernica inacabada”, em referência à famosa obra de Pablo Picasso, ao mesmo tempo em que pode sinalizar as diversas fraturas, muitas das quais expostas, daquelas vidas que se reencontram na UTI de um hospital, permite também a viagem em inferências que evidenciam a incompletude de suas existências, aflorada naquelas confissões em que, diante de um morto-vivo, não há razão para não dizer a verdade.


Por fim, conhecendo meu espírito comodista de leitor, que exige muita provocação para se animar, posso dizer com segurança que “Uma guernica inacabada”, da Myriam Scotti, é leitura certa para quem gosta de se deixar seduzir por uma linguagem simples e cativante, por uma engenhosa trama na narrativa e por um título inteligente e oportuno.




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